São João del Rei Transparente

Publicações

Tipo: Artigos / Cartilhas / Livros / Teses e Monografias / Pesquisas / Personagens Urbanos / Diversos

Escopo: Local / Global

 

Zé do Ferro Velho . Entrevistado por Lucinha Guimarães, José Alberto Ferreira e Messias Neves

Descrição

Local: residência do Sr. Zé do Ferro Velho, nas Águas Gerias, São João del-Rei
Museu da Pessoa. Inverno Cultural São João del Rei . setembro de 1999

Transcrito por Helaine Maristela de Oliveira Ferreira e Lucinha Guimarães

Meu nome é José Maria dos Santos, sou filho de escravos e nasci em 1904, no Cajuru, distrito de São João del-Rei e fui vendido aos cinco anos para uma fazenda lá em Santa Rita, cujo dono era o Senhor Cristino Esteves. Naquele tempo a gente não era registrado, só depois de muitos anos eu fui registrado. Eles fizeram um registro a "moda deles lá", porque não podia registrar, senão o fazendeiro tinha que pagar o salário para todo aquele povo que estava lá trabalhando. A escravidão já tinha acabado mas na fazenda estava continuando. Até que um dia o filho dele, que era o Doutor Manuel Esteves disse: "Oh papai, o senhor tem que libertar esse povo, do contrário o senhor pode ser preso e vai ter que pagar indenização". A minha certidão foi tirada em 1919 depois do meu batizado. Eu fui batizado aqui em São João del Rei. Na fazenda, no tempo da escravidão, não eram todas as pessoas que eram ruins. Existiam pessoas boas mas ninguém podia sair das fazenda. Se saísse o capataz que tomava conta dos escravos, ia atrás com o cachorro e o cachorro sentia o faro. O capataz era o pior, já o senhor, que era o Cristino Esteves, não era ruim pessoa não. Tratava bem, olhava a comida se estava de acordo, se não tivesse ele chamava a atenção. Já o Zé Emídio, o capataz, esse que era pior, ele castigava demais os escravos. Eu tinha duas irmãs: a Zenaide e a Madalena. Parte da minha família ficou nu Cajuru.
A vida na fazenda
Lá na fazenda tinha muito gado onde e eu campeava vaca, juntava bezerro e montava cavalo. Eles faziam manteiga para ir para o Rio de Janeiro, eu rapazinho mexia com terreiro, tratava de criação, juntava bezerro, juntava vaca. Lá tinha lavoura de café e os escravos trabalhavam lá, tinha mais ou menos uns 60 escravos. Cristino tinha seis fazendas, era muito rico. Todos os filhos dele estudaram em Belo Horizonte. E nas férias eles chegavam. Ele tinha 4 filhos: Doutor Lindorico, Doutor Jesus, Doutor Zé Augusto e Doutor Manuel Esteves. O filho que se chamava Seu Zé, estudou mas não seguiu carreira, ficou na fazenda e era muito bom. Na fazenda tinha muitos carros de boi, tinha 4 carros de boi, tinha um carro de 50 balaios, outros de 25, 40 e 30 balaios. Este carro de 50 balaios era puxado por 18 bois, os outro eram puxados por 8, 12, 10 bois. Matavam muito porco, para ir para o Rio de Janeiro, levavam os porcos, para estação e embarcavam direto para o vagão na estação de Santa Rita, hoje Ritápolis. Lá tinha também, muito gado leiteiro, nós começávamos a tirar o leite às três horas da manhã. Quando acabávamos aquele retiro a gente ia pro outro retiro. Eles mandavam o leite pra fazenda e desnatavam para fazer o queijo. Na fazenda a comida era boa pros escravos. A gente comia angu, feijão e carne de porco, e tinha a cachacinha aos sábados e no domingo o patrão dava um golinho também.  
Festa na fazenda
Tinha festa de vez em quando para a minha gente. A festa geralmente era no final do ano. Eles faziam uma festinha, matavam um garrote ou dois conforme a quantidade de gente,e faziam churrasco no carvão para assar. Lá havia um pote de pinga, destes de 200 litros era de madeira de óleo bálsamo. Nós ficávamos bebendo, comendo, dançando, cantando e tocando sanfona, bate-caixa, eu gostava de bater um tambor.
Infância e escola: brincadeiras e contas de cabeça
Naquela época depois de chegar a noite a gente brincava, pois de dia a gente não podia brincar. A noite a gente brincava com os colegas de Cocotinho Queimado e pique. Pique era o seguinte marcava um lugar e o que chegasse primeiro e colocasse a mão ali, ai não era pego, uma criança corria atrás da outra pra pegar corre daqui corre dali e Cocotinho Queimado era assim nós escondíamos uma prata e depois passava a gente gritando " "Cocotinho queimado!" aí as crianças saíam para procurar aquela prata uns caça daqui outros dali e se ia chegando perto falava "tá quente" e longe falava "tá frio", era uma brincadeira muito boa, muito alegre.
No meu tempo de menino, não existia escola para a gente ir, portanto não aprendi a ler, só assino meu nome. Mas conta eu faço de cabeça ninguém me passa manta e quando é nos dedos fico ainda melhor.
Casamentos
Eu casei em 1940 com uma mulher chamada Geralda Santos, com a qual tive 3 filhos e morreu um e tenho um neto, mas dessa eu me separei. Hoje estou casado com outra e tem quase 50 anos que estamos juntos. Ela se chama Sebastiana de Rezende da Cruz, com ela tive 15 filhos 9 estão vivos e sete netos, morando conosco está uma neta de dois anos. Ela veio comigo de Barra Mansa pois eu trabalhava comprando e vendendo ferro velho e fui conhecer ela lá em Barra Mansa.
Profissão e outras Atividades
Meu apelido Zé do Ferro Velho, foi porque eu comecei a mexer com compra de ferro velho, comprava e ia vendendo de casa em casa, tem mais de 40 anos, eu andava muito por Barra Mansa procurando ferro velho, barco velho, cobre, metal as a minha principal profissão é a de tirador de ouro. Para trabalhar na beta a gente saía cedo, tirava o entulho para fora até chegar no ouro, depois furava com dinamite as pedras. Até hoje faço isso.
Tenho aqui em casa todos os instrumentos que preciso para trabalhar. Também costumo vender doces nas ruas da cidade, para ganhar um trocado.
Quando eu era mais novo, cheguei a ajudar muito no carnaval. Tinha um bloco aqui no Bairro do Tejuco chamado Custa mais Vai. Eu tirava diversos tipos de cantos, samba, eu saía no cordão, eu tocava caixa, foi mais ou menos em 1938-39, nós andávamos nesse cordão de carnaval, nessas brincadeiras, até 1939 quando ainda era solteiro.
Quero falar para vocês de um tambor que eu mesmo fiz de lata, e de couro de cabrito preso com tarracha. É igualzinho aos outros, a gente estica o couro com calor do fogo, de tanto esquentar ele fica melhor. Eu usava este tambor tanto para tocar nas festas como para mexer com espiritismo. Trabalho um bocadinho de Pai de Santo, benzo, atendo a qualquer dia e hora Meu pai era raizeiro, entendia destas coisas de raiz, dava erva pros escravos que estavam doentes, fazia muitos remédios e benzia também. Eu sei benzer também, que aprendi com ele ainda. Rezo para tirar quebranto, mal olhado, equizema, erizipela, corta cobreiro e sei também uma reza para tirar feitiçaria. Eu vou orar um pouco para vocês: "Deus nosso Pai, que tem tanto poder e bondade. Dá força aquele que passa pela provação, dá luz àquele que procura a verdade, dá no coração do homem a compaixão e a caridade. Deus, dá ao viajor a estrela guia, alívio e consolação ao doente em repouso, Deus dá ao culpado o arrependimento, ao espírito a verdade, à criança o guia, ao orfão o pai. Senhor que a Vossa Bondade permita o espírito consolador, derramai por toda parte a paz, a esperança e a fé. Deus, um raio de uma faísca do Vosso amor pode abrasar a terra, deixai-nos Senhor beber da fonte desta Vossa Bondade fecunda e infinita. e toda lágrimas se secarão e todas dores se acalmarão.".
Histórias da família, e casos de Assombração
Meu bisavô contava uma história de uma beta de ouro. Antes dele ganhar a liberdade era escravo de um português chamado Arculano que era padeiro e fazia pão para vender aqui em São João para os tiradores de ouro, pros encarregados, e pros feitores, pros escravos não. Eles tiravam ouro na beta onde é a Igreja do Carmo. Trabalhavam muitos escravos ali, e o meu bisavô trazia o pão para fornecer. Ele contava que quando davam 10:00 horas, tiravam os escravos para ir almoçar e tiravam também os mortos e feridos que lá morriam, entre mortos e feridos eram mais ou menos uns 8 escravos todo dia. Lá trabalhavam muitos e muitos escravos e todo mês vinha da África um comboio de escravos para fornecer mão-de-obra. Eles tiravam ouro em pedaço, pepita de todo tamanho, eles levavam pro Tanque pra fazer as barras de ouro de 62 kg e levavam para o Rio de Janeiro. Havia muito perigo nas estradas, aqui tinha muita pirataria,eles roubavam o ouro dos tropeiros que iam para a Serra da Mantiqueira. E em Barra do Piraí tinha um capitão chamado Capitão Mata Gente que foi preso e mandado para Portugal onde morreu. Meu bisavô contou também que um belo dia explodiu uma água de dentro da beta. A água foi crescendo, subindo e ficaram muitos escravos lá no fundo d'água. Saíram só os que estavam nas galerias, foi quando parou de tirar ouro lá naquela beta. Eles fizeram aquela Igreja por mandado do Rei, a Igreja de Nossa Senhora do Carmo.
Tinha um ditado que dizia: "o escravo que tinha canela fina era preferido para ser vendido. era o bom de serviço". Os que tinham canela grossa eram preguiçosos, os preguiçosos ficavam em casa, eram o cozinheiro, o arrumador. Toda vida tive muita força, tenho 1, 85 m e sempre fui magro. Quase não vou a médico e tenho muita saúde, graças a Deus!
Desde menino que acredito em assombração. Naquela época, a gente ouvia falar muito, em muitas casas apareciam fantasmas, você ia pela estrada afora, ia indo, chegava na beira daquelas casas e as vezes lá vinham os fantasmas. Fantasma é um homem que vai crescendo, crescendo, se a gente não corria ele caía em cima da gente. Também existia o Lobisomem, era um porco de um olho só no meio da cabeça, ele batia com a orelha e com os dentes assim "bate, bate..." e se ele morde na pessoa ela também vira Lobisomem. Vou contar um caso que aconteceu com a gente aqui nas Águas Gerais. Nosso cachorro começou a latir, ai eu fui ver o que era e vi o dito porco, mas ele desapareceu quando a gente falou em machado, faca e foice. E a Mula sem Cabeça também existe, dizem que ela solta fogo, rincha tipo um "potrim". Eu já escutei o rinchado dela no Rio de Janeiro, eu morava numa rua coberta, quando lá pelas 1:00 da manhã, passou a mula sem cabeça rinchando, no outro dia todo mundo falava: Você viu? Viu a mula sem cabeça rinchar? Era na quaresma que ela aparecia, ela rincha tipo um "potrim", rincha fundo "pipipipipi"
Religião
Sou católico, freqüento a Igreja, o espiritismo é uma ciência que vem de cima, do além que a gente fala, mas não sabe diretamente da onde este espírito vem, só sabe que pelo pensamento a gente atrai o espírito e ele manifesta na pessoa, ele manifestado, ele dá a comunicação. Existem dois tipos de espírito um atrasado, que é o Exu e o adiantado que é o Caboclo, preto velho. Eu e minha mulher somos médiuns. O espiritismo existe sim, ninguém morre diretamente, a pessoa morre assim: o espirito nunca acaba ele continua existindo no meio de nós, porque os espíritos atrasados estão aqui na terra vagando, o espírito que já venceu o tempo dele e recebeu a glória, ele vai para um lugar determinado por Deus e não volta mais. Uma pessoa que morre matado fica vagando por aí até o dia que vence o seu tempo, não perturba. Mas se você eleva o pensamento, e ás vezes está passando um naquela hora ele vem e manifesta e começa a contar de sua vida, como partiu pro outro lado, conta seus sentimentos. Eu não freqüento centro, mas já freqüentei como o de Miguel Arcângelo em São João del Rei e no Rio de Janeiro o de Bangu na rua das Pedreiras.
Atualidade e sonhos
Hoje moro na rua Santa Rosa, Águas Gerais, continuo mexendo com ferro velho neste depósito na minha casa, tenho uma carroça e um cavalo para transportar as coisas que negocio. Tenho um sério problema que é o esgoto. Ele causa uma espécie muito ruim na frente da casa. A prefeitura disse que ia arrumar até na Gameleira e parou por aí. E até hoje ninguém veio arrumar nada, sumiram com as manilhas. Apareciam pessoas com caminhão e levavam as manilhas embora. Quem poderá me ajudar?
O meu maior desejo é poder continuar tendo muita saúde para poder ser um tirador de ouro, pois é a coisa que eu mais gosto de fazer na vida!
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