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Tipo: Artigos / Cartilhas / Livros / Teses e Monografias / Pesquisas / Personagens Urbanos / Diversos

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Euclides da Cunha visto através de Gastão da Cunha . Notas de um diário inédito

Descrição

Centenário do nascimento de Gastão da Cunha
...

In: O Jornal

Raros acontecimentos despertariam entre nós tanta curiosidade quanto a publicação de um “diário” do embaixador Gastão da Cunha. O eminente diplomata passa, com efeito, por ser um dos nossos mais perspicazes e desabusados observadores da vida. Emprestam-lhe mesmo certa malícia à maneira de olhar as coisas deste velho planeta, e há quem tenha argüido de perversidade, nos comentários que formulou sobre os seus patrícios.

Essa reputação de epigramista é que, provavelmente, determinaria o maior movimento de interesse em torno do seu trabalho.

E, fosse este, acaso, anunciado como compêndio de elogio dos contemporâneos, há noventa e nove probabilidades sobre cem de que teria procura sensivelmente inferior.

O público, realmente, mais que o próprio ironista, compraz-se na malícia, e é pura hipocrisia a censura que, de quando em quando, se julga no dever de exprimir a um autor em cuja mordacidade se deliciou.

Este, em verdade, se reage e se [se] irrita contra as imperfeições dos homens e das coisas, é que o fazem sofrer; só as verbera com amargor, porque tem desses homens e dessas coisas uma noção superior e ideal. O ironista é um ferido da vida. E o seu pecado, se existe, deriva apenas de ter nascido com a vista mais apurada que a nossa. Que culpa tem ele se os olhos penetrantes se chocam às desarmonias que a nossa miopia nos poupa?

O público é que não teria tantas razões para justificar o seu instinto malicioso.

No caso do embaixador Gastão da Cunha, por exemplo, inúmeros outros motivos se lhe apresentam de admirá-lo, a par daquele talento de humorista. Entretanto, é este só que o fascina.

Bem seria, pois, que principiasse a julgar melhor uma personalidade, que se habituou a considerar apenas por certa face, como se ela se tivesse imobilizado nessa atitude única de ironia. O sr. Gastão da Cunha vale mais que os seus epigramas, por melhores que sejam.

Assim é que ninguém estaria mais indicado do que sua excelência para a delicada tarefa de fixar, nas folhas de um “diário”, os vários aspectos do quadro nacional contemporâneo. Não, talvez, com a preocupação de realizar obra literária ou sociológica; mas com o propósito de pintar a cena brasileira destes dias, com os seus homens e as suas coisas, numa forma precisa, natural, perversa, às vezes, como convém à matéria, muito mais própria ao homem de espírito que ao profissional de letras.

De fato, o sr. Gastão da Cunha conhece profundamente o seu meio. Tendo nascido, de uma família fidalga, em uma velha cidade de Minas Gerais, ele realizou uma carreira excepcionalmente movimentada e brilhante. Formando-se em direito pela Academia de São Paulo, foi sucessivamente promotor e juiz em várias comarcas de seu estado natal, diretor da Imprensa e do Diário Oficial do governo mineiro, advogado, professor de direito, subprocurador-geral do Estado, deputado federal, representante do Brasil em duas conferências pan-americanas, enviado extraordinário e ministro plenipotenciário junto aos governos do Paraguai, Dinamarca, Noruega, Espanha, Santa Sé, subsecretário das Relações Exteriores, embaixador em Lisboa, junto ao Quirinal, em Paris, enfim presidente do Conselho da Liga das Nações.

Esteve, assim, primeiramente, em contacto com todas as camadas sociais do país. Viu de perto a vida arrastada e pitoresca das velhas cidades mineiras; de um lado ao outro do seu estado, percorreu e habitou inúmeras localidades, observando-lhes cuidadosamente os costumes e aspectos, além de, por força dos cargos que ocupava, conhecer e tratar com toda gente, desde os ricos senhores de fazendas titulados e os chefes políticos, até as baetas, os rábulas, os oficiais de justiça e os criminosos. E, quando tomou assento na mais alta assembléia política internacional, sua excelência podia lembrar-se de haver passado pelas assembléias municipais, estaduais e federais de seu país. A esse profundo conhecimento do interior, ele juntou, vindo para o litoral, uma completa familiaridade com o meio carioca, privando com o que de mais interessante e notável lhe podia proporcionar o sociedade do Rio de Janeiro.

Enriqueceu, depois, esse opulento cabedal de observações com as que foi colher no estrangeiro: viu a severa etiqueta das cortes escandinavas, o tumultuoso jacobinismo paraguaio, o Vaticano, sob pio X e Merry del Val, as majestades católicas da Espanha, a agitação ultra-republicana de Portugal, as reuniões itinerantes do Conselho da Liga das Nações, etc. Mais do que isso, adquiriu uma noção clara e precisa da índole dos povos com que conviveu, uma opinião segura sobre as suas instituições, uma idéia pessoal acerca de cada civilização.

Dessa forma, pôde multiplicar os pontos de vista e os termos de comparação, assim como dispor do recuo necessário para apreciar com justeza e elevação o quadro nacional.

Acresce, porém, que o seu espírito, seduzido ao mesmo tempo pela análise delicada das minúcias e pelas generalizações mais dilatadas, habilitava-o, de há muito, a um trabalho como esse, a que se aludia, de fixar o essencial e o pitoresco da hora que se passa. Só, em verdade, quem teve a ventura de ouvir e conversar o embaixador Gastão da Cunha poderá avaliar ao certo a agilidade de sua inteligência, a finura de suas faculdades de observação e o dom excepcional que possui de surpreender a singularidade ou o ridículo das situações e das pessoas. Tudo isto faria de um “diário” escrito por sua excelência um documento do mais vivo interesse, independente de quaisquer traits maliciosos.

Mas há ainda, par-dessus le marché, a prodigiosa espontaneidade de sua palavra, que se adapta maravilhosamente a todos os assuntos, e afina com todos os tons, — viva, pictural, nervosa, irônica, comovida ou eloqüente.

Para o sr. Gastão da Cunha, realmente, o verbo tem sido um engenho de efeito imediato, antes de ser a incubadora de ações e pensamentos remotos. A inania verba, chorada pelos poetas, essa tortura da expressão de que tanto padecemos, ele nunca experimentou. Ao contrário, resultava-lhe uma fonte inesgotável de prazeres aquilo mesmo que, para nós, é tanta vez um sofrimento. Vinha-lhe a frase sempre pronta e colorida, traduzindo o pensamento mal se esboçava, sublinhando-lhe as intenções, iluminando-lhe as sutilezas e dando-lhe força e vibração, graça e originalidade.

As palavras não lhe fugiam, como a nós outros, antes acorriam-lhe docilmente ao apelo, como aqueles pardais que um homem convoca do gesto de todas as frondes de Luxemburgo. Sua facilidade verbal, porém, em nada se assemelhava à abundância vocabular comum dos sul-americanos. Não era essa verborragia que tantas vezes ouvimos, sonora como um tambor e, como um tambor, vazia.

No sr. Gastão da Cunha, se havia ensejo de se lhe admirar a expressão formosa e rara, é que esta vestia sempre um conceito justo, um belo pensamento ou uma observação arguta. Ao inverso do que muita gente pode supor, ele não estimava a virtuosidade verbal: o que prezava, antes do talento de dizer bem, era a virtude de bem pensar. Cultivava, sim, a clareza e a originalidade nas idéias, a lucidez e a verdade nas observações, e dessas poderia orgulhar-se.

Eis por que realizaria melhor que um profissional de letras a tarefa a que me referia de princípio.

Um artista, realmente, um homem de métier, empenhado em colher, para um “diário”, flagrantes de seu meio e de seus contemporâneos, falsearia freqüentemente a verdade dos caracteres e das situações, orientado pelo gosto do pitoresco e do inédito, pelas exigências da forma, quando não arrastado pela força mesma de sua imaginação. Terminaria sempre for fazer literatura.

Por isso é que o Journal de Marie Bashkirtseff tem muito mais interesse humano que o dos Goncourt.

O excelente, na hipótese, seria, como se dá com o embaixador Gastão da Cunha, que o autor possuísse as qualidades do escritor, sem os seus preconceitos e maneirismos. De tal sorte que a forma, não correndo o risco da imprecisão ou obscuridade, não incorresse também na falta da afetação ou do chinesismo.

De justiça, não se fará nenhum favor ao ilustre diplomata reconhecendo-lhe dons excepcionais de escritor. Com efeito, malgrado não lhe tenha ainda sorrido à fantasia publicar um volume de poemas ou novelas, como o faz toda gente neste país, ele ofereceu muita vez oportunidade de se lhe admirar um raro talento literário. E, em cada oração que pronunciou houve sempre um cabal desmentido àquela observação de que “Il n’y a rien de si mal écrit e’un beau discours”.

Em verdade, num simples folheto de “razões” que publicou, como subprocurador-geral do estado de Minas, já lhe podemos admirar o talento, pelo brilho da argumentação, pela ironia ágil e polida, a sugestão das imagens, a harmonia dos períodos, a concisão e a lógica dos raciocínios.

Assim, também, na sua magnífica passagem pelo Parlamento Nacional e, sobretudo, em certo discurso, dito na discussão do orçamento do exterior. Aí, realmente, o soberbo orador se compraz em mostrar-se em toda a gama de seus recursos verbais. De um meio-tom suave, em que a ironia se dissimula, ele passa, gradativamente, à nota grave e erudita, ao tom descritivo e pictural, ao sarcasmo e à invectiva, até altear-se aos acentos esplêndidos e generosos da eloqüência. E em toda a extensão do discurso, apesar da diversidade numerosa dos “motivos”, ele consegue manter uma rara unidade de estilo, como na orquestração wagneriana. É que todas as passagens saem-lhe fortemente marcadas da personalidade dominadora, e em cada uma delas transparecem, inconfundíveis, a vivacidade da sua maneira, o sabor peculiar de sua ironia, a graça e força de suas imagens e a acuidade de seus pontos de vista.

Outro documento magnífico do talento do embaixador Gastão da Cunha é uma entrevista que escreveu para a revista Atlântida de Lisboa e onde aplica a sua inteligência amante do pitoresco e do inédito à matéria mais vasta e mais complexa dos problemas sociais. Vê-se bem aí como ele se sente perfeitamente à vontade para discutir as árduas questões do após-guerra, com a mesma superioridade e o mesmo conhecimento de causa que teria revelado, comentando um acontecimento mundano ou o último romance aparecido. Essa entrevista, contém, efetivamente, uma das mais elevadas e justas apreciações que se tenham feito do panorama social europeu, ao terminar da grande conflagração.

Para citar-se, enfim, um último exemplo da obra escrita do eminente diplomata, que é ao mesmo tempo modelo de boa linguagem, concisa e harmoniosa, e de pensamento profundo e transparente, pode ser evocada a oração com que sua excelência encerrou uma das sessões do Conselho da Liga das Nações, realizada em Roma. É um breve discurso, de uma beleza grave e memorável, que, por si só, mereceria rejuvenescer o qualificativo tão gasto de “lapidar”.

Mas onde o estilo do sr. Gastão da Cunha aparece, talvez, mais pessoal e mais vivo e onde a sua visada d[a impressão de ser mais penetrante e desabusada é nas páginas desse “diário”, que, há longos anos, vem escrevendo, com as notas que a vida e os homens lhe têm inspirado ao espírito singular.

Porque esse “diário”, de que se falava apenas como qualquer cousa hipotética, existe realmente e, hoje, se compõe de mais de uma dezena de cadernos espessos, capeados de couro claro.

Aí estão registradas, numa caligrafia minúscula e movimentada, suas idéias e sensações de cada dia; animam-se nessas páginas retratos fidelíssimos de indivíduos com que conviveu; e os sucessos, em que se achou envolvido ou a que assistiu, aí também se reproduziram, quentes ainda da impressão primeira. Há nesse “diário” caricaturas e grandes painéis, pintura de caracteres e estudos de massas e conjuntos. Diante dele, fica-se a imaginar se não representaria, acaso, para o nosso meio e os nossos dias, o que foram as memórias de Saint-Simon para o seu tempo.

O sr. Gastão da Cunha, entretanto, entende não passá-lo adiante e manifesta a intenção de destruí-lo oportunamente. Motivos que, decerto, serão os mais respeitáveis, o fazem desejar o desaparecimento daquelas folhas, em que recolheu os aspectos mais expressivos do que viu pelo mundo, com o diagrama quotidiano do que sentiu.

Não teremos, pois, o intenso prazer de saborear aquele documento que nos aparecia já como uma festa magnífica para o espírito.

Contudo, o ilustre embaixador, com a sua bonne grace habitual, consente-nos uma rápida leitura de um ou outro trecho dos cadernos, menos própria a nos saciar a curiosidade excitada, que a dar a idéia precisa do que perdemos.

Ainda assim, o que nos mostrou é digno do maior interesse, pois se refere a uma das figuras mais fascinantes de nossas letras: — Euclides da Cunha.

O soberbo escritor dos Sertões fora, em verdade, ligado ao sr. Gastão da Cunha pela amizade mais íntima e mais afetuosa e, por isso mesmo, o seu nome aparece freqüentemente nas páginas do “diário”. Referindo episódios de sua vida, comentando homens e livros, desenvolvendo teorias, ele ressuscita ali, a cada momento, com o seu verbo impressionante e a sua imaginação dramática.

Inúmeros são, portanto, os tópicos que lhe dizem respeito e a que a piedade do amigo se compraz em voltar, de quando em quando, como para ouvir de novo a voz querida que se calou. Entre eles, há este, que tem o valor de depoimento autêntico sobre um episódio célebre:

“15 de abril de 1906.
[...]
Janta hoje conosco, o Euclides, a quem acompanho, depois, à sua casa da rua Humaitá.
Ele me refere o incidente com Tomás Coelho, na Escola Militar, a 3 de novembro de 1888. — Nunca fora seu intuito desrespeitar o ministro. O ato que praticara, visava, antes, seus próprios companheiros de escola. É assim que ele narra o episódio: — Havia entre ele e alguns seis ou sete colegas o conchavo de não apresentar armas ao ministro e dar vivas à República. Quando formaram os alunos para a parada, já estes, amotinados, haviam afundado a coronhadas o assoalho da capela, Euclides e os outros companheiros esperavam, portanto, que o seu movimento fosse seguido por todos os demais, que estavam preparados para qualquer tumulto revolucionário, de sorte a qualquer ato de indisciplina ou provocação subversiva ser secundado, sem exceção, por todos. No pelotão da frente se achava Lauro Müller, que, é de notar-se, ignorava a combinação. Logo após o pelotão deste, vinha um, sargenteado por um Dória, da Bahia, e, depois, o de Euclides, que era o terceiro ou quarto na composição da brigada. Mas à ordem de apresentar armas, falham todos ao combinado e Euclides, num ímpeto de indignação contra a defecção dos companheiros, tira o sabre que trazia no cinturão (pois, como sargento, não usava baioneta calada) e intenta quebrá-lo no joelho. Não consegue, atira-o ao chão, — mas com todo cuidado para que caísse junto de si. Absolutamente não o atirou nem na direção do ministro.
O caso fez escândalo. — Silveira Martins, presente, teve um movimento de erguer o guarda-chuva, como quem quisesse defender-se. O comandante da Escola, — Clarimundo de Queirós aproximou-se, então do ministro, dizendo-lhe que aquele moço estudava muito e andava nervoso. — Entretanto, Euclides foi recolhido ao Estado-Maior. Aí foi ter o ministro, que o interrogou carinhosamente e, achando-o agitado e nervoso, fez logo sentir que ele nada sofreria.
Mas, alguns dias depois, entendeu F. de convencer a Euclides de que devia submeter-se a um exame médico, que o declararia padecendo das faculdades mentais, “fato que o não desonrava, etc.” — Ao mesmo passo lhe mostrava o regulamento do Conde de Lippe, pelo qual deveria ser enforcado. — Euclides reagiu com energia, asseverando que jamais se submeteria àquela farsa, que, sobre ser uma mentira, o inutilizaria no futuro. E reiterou o que já dissera a Tomás Coelho, isto é, que era republicano e às suas idéias políticas ligava o ato que praticara. — Por fim disse a F. que, se este conseguisse alguma declaração médica relativa à sua insanidade mental, ele iria no dia seguinte à Academia de Medicina provocar o exame de todos os lentes, para mostrar que estava de posse de plena integridade mental e, assim, desmoralizar o laudo dos médicos militares.
Diante dessa formal recusa, foi Euclides desligado da Escola e remetido para a fortaleza de Santa Cruz. Aí o mandara para a sala do Estado Maior; mas, sabendo que nesse lugar se achava um sargento assassino, ele protestou e pediu ao comandante — Dinis Santiago — que o mandasse antes para a abóbada, ao lume d’água, para a companhia dos forçados. Ao que o comandante retrucou: “Essa formiguinha [,] depois do que fez, ainda quer falar neste tom!” (Euclides fez-me rir com a indignação que ainda lhe causava a lembrança daquele qualificativo.)
Um Cunha Pires, hoje major de bombeiros, é que interveio no incidente e o levou para a sua casa, na fortaleza. Aí ficou um mês, até chegar a Santa Cruz um telegrama nestes termos: “Euclides da Cunha — liberdade”.
Foi ato do Imperador, disse Euclides. — Saiu e matriculou-se na Politécnica. — Proclamada a República, voltou à Escola Militar, a chamado de Benjamin Constant.
— Nosso plano, a 13 de novembro de 99, acrescenta ainda Euclides, era revoltar toda a Escola, aí prender o ministro e bater, depois, em marcha para São Cristóvão onde prenderíamos também o Imperador.
— A esse tempo, tinha apenas 17 anos e afirma que o animava a certeza plena, absoluta, de [que] a República estava feita, questão de dias’.
— Hoje se acha reformado no ponto de tenente do Estado-Maior. Não pede demissão porque, estando em débito com o Tesouro, teria que repor ao Estado cerca de cinco contos, despendidos com seu curso militar.
[...]”.

Como se terá percebido, é a anotação imediata de uma conversa, feita sem outra preocupação senão a de fixar o episódio digno de interesse. Na transcrição (que, esperamos, o embaixador Gastão da Cunha nos relevará fazermos sem a sua autorização) houve algumas supressões necessárias, de trechos contendo referência a indivíduos vivos. Mas foi quase o próprio texto do “diário” que reproduzimos. E por aí se verá quanto é esse documento despido de qualquer vestígio de literatice.

Ao longo dos preciosos cadernos, porém, muitas outras passagens se encontram, relativas ao grande escritor, e contendo traços excelentes de sua psicologia singular.

É assim que podemos acompanhar a tendência dramática da imaginação de Euclides da Cunha, revelada em circunstâncias curiosas. Ver-se-ia mesmo, talvez, que esta sua característica é mais marcada aí que nos seus escritos, de tal sorte lhe alteia constantemente o tom da palestra e a tão estranhos pontos de vista o conduz, a todo o momento.

O “diário” refere-se, por exemplo [,] a uma curiosíssima apreciação sua sobre J.N., feita em certo dia de verve em que o surpreendeu Gastão da Cunha.

“Este homem, dizia ele, adquiriu uma extraordinária reputação de orador e de apóstolo. Assim cresceu, no cenário nacional, imobilizado numa atitude dramática. E hoje, levado à carreira diplomática, quando as novas funções lhe reclamam feitio diverso ou oposto, ele não consegue mais modificar o gesto, nem arrancar a máscara que adotou. É um homem afundado.”

J.N., entretanto, longe de “afundar-se” no exercício do eminente cargo que lhe haviam confiado, obtinha triunfos novos. Mas, no fundo, Euclides tinha, talvez, razão, considerando-se em sua integralidade a vida do personagem em questão.

Não já da mesma forma em outro juízo seu, este acerca do R.B. e da importantíssima tarefa que lhe cometera no estrangeiro o barão do Rio Branco.

“— Veja, dizia Euclides, a distância que vai entre o grande homem do Governo Provisório e o homem irritado de hoje: — é uma decadência palpável. E essa nomeação, feita por um rival, não visa, talvez, senão abrir os olhos do país sobre a extensão do declínio do seu ídolo.” E concluía: “— É de uma perfídia florentina [...]”.

A “perfídia”, afinal, resultou para R.B. em vitória sem precedentes e incomparável galardão.

Mas nem por serem menos justas estas opiniões de Euclides, são menos interessantes. Antes pelo contrário.

É belo, em verdade, ver-se como a sua imaginação incandescente, aplicada a qualquer assunto, tem a propriedade de metamorfoseá-lo, e como o real, visto por seus olhos, toma proporções de um exagero atormentado. Poder-se-ia mesmo verificar aí que, freqüentemente, essa energia da imaginação em vez de falsear-lhe os juízos, enriquece-os de vivacidade e de pitoresco.

É o caso daquela frase que pronunciou, a propósito da reforma ortográfica e que o “diário” transcreve:

“— Nunca hei de escrever kilômetro com ‘q’, mas com ‘k’, que é uma letra já de pé e andando.”

Em variadíssimas situações teríamos oportunidade de surpreender Euclides da Cunha, no correr das notas de seu amigo, a discorrer sobre a matéria mais desencontrada, com essa energia e singularidade de expressão, quando não com rasgos de delírio.

Mas, imprudentemente, nos deixamos derramar além da medida razoável, andando à roda do assunto, em vez de atacá-lo onde cumpria. É que, como se compraz em repetir Gastão da Cunha, “não tivemos o tempo de ser breves”.

Conceda-nos, apesar de tudo, espaço ainda para transcrição de uma carta de Euclides da Cunha ao seu amigo, que, por ser inteiramente inédita como os outros trechos reproduzidos, tem a mais o interesse de referir-se ao ruidoso concurso em que tomou parte, no Colégio Pedro II:

“Rio, 8.8.1909.
Gastão da Cunha,
Escrevo-te com uma das mãos a bater um meã culpa sincero, que entretanto não me absolveria do pecado injustificável de deixar de responder à tua última carta.
Mas, felizmente, não é à toa que és meu amigo: só me estimam almas generosas e altas que não podem ser pequenas tortuosidades ou desvios. A verdade é que, no próprio dia em que fui nomeado [,] lembrei-me de telegrafar a duas pessoas: 1º, a meu próprio pai; 2º, a ti. E a intenção era tão boa que com certeza naquele dia o Diabo calçou uma avenida inteira. — Mas aqui estou a corrigir o erro. Infelizmente, não te poderei contar as peripécias do pitoresco concurso, insidioso ‘mundéu’, onde me debati, caindo, como um tigre de Bengala. Pergunta ao Coelho Neto e ao Chaves (careca) — (este ‘careca’ estraga-me um pouco a frase, mas é preciso respeitar a verdade histórica) [ — ] o que foi a minha argüição oral.
Comecei repelindo a atitude de subserviente de examinando; e malgrado a posição vantajosa dos que lá estavam ‘para perguntar e não para responder’ (como alegaram cautelosamente) mantive intactas todas as linhas de defesa que eu delineara com os ensinamentos de meu mestre Stuart Mill — tão incompreendido pelos presuntuosos filosofantes destes tempos...
Ao fim de duas horas de refrega, vi-os em plena debandada.
Depois veio a classificação, na qual dois avocati diaboli votaram pela minha reprovação” contribuindo para que galgasse o 1º lugar um pobre filósofo, cearense e anônimo, que há 25 anos (um quarto de século!) escreve uma Finalidade do mundo, estopante e indecifrável como a celebra Nova luz sobre o passado.
Vê agora como o Diabo as arma: estava o governo vacilante na escolha do candidato (porque, se a mau lado estava o Barão, ao lado do outro estavam três bancadas, inclusive a do Pará), quando estourou o desarrazoado lauto Alcorta — e entre os telegramas vindos de Buenos Aires apareceram vários noticiando a impressão que causará o meu Peru versus Bolívia, nas rodas diplomáticas. Alguns despachos diziam que certo ministro considerava-o um prodígio de argumentação, etc.
Assim o concurso de lógica tinha um remate adequado. E a nomeação se fez.
Sinto que estou confuso e atrapalhado, escrevendo-te às carreiras. Além disso, egoísta, só a tratar deste pequeno eu inútil.
Não tenho há três meses notícias da tua família. Sei que está boa porque me encontrei há quatro dias com teu sogro na Avenida. O velho está desempenado e lépido, e acha, como eu e todos os teus amigos, que deves ficar ainda algum tempo aí — sobretudo na quadra atual para teres jus a uma legação melhor, iniciando ao mesmo tempo a tua carreira de uma maneira eficaz e brilhante.
O nosso Barão continua triunfante e açambarcador das simpatias nacionais. A sua habilidade tem feito prodígios entre as duas facções que o disputam — como duas sultanas histerias disputam o lenço de um sultão. E ele tem realizado o milagre de não desagradar a ambas. Que assim seja até o fim.
Adeus, meu querido amigo. De ora em diante te escreverei por todos os vapores.
Aí vai um apertado abraço de
Euclides.”

Essa carta contém uma grande injustiça ao homem notável que foi Farias Brito. O escritor, porém, com a sua inegável generosidade, tê-la-ia reparado, se houvesse podido conhecer de mais perto o filósofo cearense.

Mas isso não lhe foi permitido, desgraçadamente, pois que, sete dias apenas depois de escrever ao amigo, perecia numa pavorosa tragédia o soberbo estilista. Consta ainda do “diário” o telegrama em que o barão do Rio Branco informa o sr. Gastão da Cunha, então ministro no Paraguai, do terrível acontecimento. Depois, há aí ainda algumas linhas de comentário melancólico, e esta palavra triste: — “Está perdido o meu prazer de regressar”.

Estimaram-se, em verdade, profundamente, esses dois amigos. E, malgrado a diversidade de temperamento, uniram-se, entre a multidão, atraídos um pelo outro, por insuspeitáveis afinidades de alma. Com a massa ignara dos homens é que não puderam nunca ligar-se. Mas a imaginação dramatizadora de Euclides da Cunha, que descobria aí monstros horrendos e abantesmas, recomendou essa legião desprezível “à ironia triunfal e vingadora de Gastão da Cunha”, como na dedicatória inscrita à primeira página de um volume dos “Contrastes e confrontos.

O “diário” vingou-o. É pena que não tenhamos esse incomparável espetáculo.

[1] No texto do jornal sorrido a fantasia

Colaboração: André Dangelo . arquiteto
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