a cidade com que sonhamos é a cidade que podemos construir

la ciudad que soñamos es la ciudad que podemos construir

the city we dream of is the one we can build ourselves

la cittá che sognamo é la cittá che possiamo costruire

la ville dont on rêve c’est celle que nous pouvons construire

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Tipo: Artigos | Cartilhas | Livros | Teses e Monografias | Pesquisas | Lideranças e Mecenas | Diversos

Escopo: São João del-Rei | Tiradentes | Ouro Preto | Minas Gerais | Brasil | Mundo

 

Samba . Magali Simone Oliveira

Descrição

Jornalista

Janeiro. Nos primeiros dias do ano, os sons dos batuques, dos tambores, os choro das cuícas invadiam ruas estreitas e centenárias, repletas ao mesmo tempo de tradições barrocas e da ousadia e inovações dos anos 70. Muita, muita gente, crianças, jovens, integrantes da terceira idade invadiam os recantos de São João del-Rei ensaiando, afinando, aprendendo o samba-enredo de sua escola preferida para não fazer feio no Carnaval, festa profana que sacudia a cidade tão famosa por sua religiosidade.
Aos sete, oito anos, São João del-Rei, era para mim, menina da capital que estava morando em Divinópolis, cidade do Oeste de Minas, uma concretização das lendas e histórias que minha avó e meu pai contavam. Da Dona Maria José de Oliveira, matriarca de uma família de 16 filhos e moradora da casa de número 61 do Largo da Cruz eu ouvia histórias assustadoras, como as da sinhazinha má que , por ciúmes cozinhou o coração de uma de escrava por quem acreditava o marido estar apaixonado e enterrou o corpo em local desconhecido, fazendo desse segredo nome do bairro que abriga hoje uma das sedes esportivas do centenário Athletic Clube.
Já do meu pai, o advogado Eli Fernandes de Oliveira, que mora hoje próximo à Igreja de São Francisco, eu ouvia as histórias de Tiradentes, dos Inconfidentes, barões, escravos e de Bárbara Heliodora, poetiza rebelde cuja casa se tornou sede de um museu que hoje está em reformas.
Como cidade mágica, cenário de histórias reais e imaginárias? (não se sabe se as lendas são ou não reais), eu vivia o Carnaval dos anos 70 como mais uma possibilidade de experimentar, sentir o gosto da magia. Na Rua Artur Bernardes, próximo à Getúlio Vargas, onde acontecia e ainda acontece a concentração dos blocos, diversas famílias, entre elas a de Dona Maria José, colocavam suas cadeiras para que pudessem assistir àquele espetáculo maravilhoso com pouco de comodidade. Tão mágicos eram aqueles dias que ninguém, mais ninguém mesmo, ousava assentar na cadeira alheia, roubar ou fazer qualquer tipo de depredação. Assistíamos dali espetáculos maravilhosos.
Aos meus olhos infantis, o bloco Disneylândia, onde desfilavam os personagens das histórias que mais me encatavam como Branca de Neve, Cinderela, o Pateta, Mickey e tantos outros, era o mais esperado. Ficava ansiosa por sua apresentação. E, muito apreensiva, com a apresentação do bloco seguinte, que era sempre o dos “Caveiras”. Tinha vontade de correr, de sumir, de me esconder. Minha mãe, Marli Simone de Oliveira, que tanto tempo trabalhou na Minas Caixa, na sede da Avenida Presidente Tancredo Neves não deixava que eu, meu irmão, o hoje advogado Lenine Augusto de Oliveira, fugíssemos dali, para que apreendessemos a superar nossos medos e resguardar nossos lugares.
Naquela época o Carnaval era também oportunidade de ver de perto estrelas da tevê como Elke Maravilha que tantas vezes desfilou na escola de Jota D´Ângelo grande ator, dramaturgo, poeta, cronista e produtor da cultura de nosso Estado. Por mais sono que eu tivesse, por mais que o desfile demorasse, nos dias de desfile das escolas eu, quenormalmente era obrigada a dormir antes das 22horas, todas as noites (inclusive nas férias), podia conhecer a madrugada, o seu ar fresco e a efervescência de uma manifestação cultural única e singular. A cada ano, tudo era diferente. Era como se eu experimentasse aquela magia pela primeira vez.
Aos 12 anos, já em 1983, me mudei para um apartamento, em cima do Bico de Lacre, na Rua Getúlio Vargas, coração pulsante de São João del-Rei (por ali também passam quase todas as procissões e manifestações culturais), palco da concentração dos blocos e escolas. A mudança, trouxe um pouco de frustração. Como eu estava ficando mocinha, meu pais preferiam que eu assistisse à festa em casa. Do terceiro andar, via a beleza das alegorias por outro ângulo. Observava mais cabeças, pés e barrigas das pessaos que passavam. Não dava para compartilhar com elas, o brilho dos olhos, o empurra-empurra, a aflição, ansiedade e vontade de aproveitar tudo, cada pedacinho daquela festa.
Depois dos 15 anos, quando comecei a ter permissão para sair com minhas amigas e amigos , de novo a magia mudou. Percebi que além dos batuques dos ensaios das baterias, outro som bem característico dessa época era o das máquinas de costuras que, frenéticas costuravam lantejoulas, penas, os mais coloridos detalhes das fantasias que encantariam o público, nesse ritual profano, mas ao mesmo tempo místico, onde cada um, pelo menos por um momento, pode ser o que quiser.
Nunca desfilei, mas acompanhava as amigas mais corajosas na escolha da escola, das fantasias. Quem desfilava não ganhava a fantasia pronta. As escolas repassavam os desenhos, cada um comprava o tecido, encomendava o trabalho de uma costureira, ou por si próprio acionava a sua Singer e tecia com as próprias mãos o seu sonho carnavalesco.
Também descobri a magia do pré-Carnaval, que me transformou em uma adolescente muito boêmia. Na Terça-feira, saía no “Se a mamãe deixar”, na quarta, no “Lesma-Lerda”, na quinta no Doméstica (onde vi pais e filhos fantasiados de mulher) e na sexta, ficava dividida: ia o Pão–Molhado e ao Copo Sujo. Sem dormir nenhum pouco, por volta das 5h, saía pulando no Alvorada e voltava exausta, mas feliz, para casa. Dormia algumas horas e ia para as cachoeiras e clubes tentar fazer de mim uma bruxa sedutora, capaz de encantar os “princípes” que se apresentavam com os mais variados sotaques. Ora puxando o x, como todo bom carioca, ora carregando os erres como é caracterizado o falar paulista. Também conquistei muitos mineirinhos, sanjoanenses, entre eles, o pai de minha filha que, apesar da distância também fez parte das histórias de meus carnavais.
Como jornalista, fiquei assustada com os relatos de minha amiga e colega de profissão Jaqueline da Matta que me contaram que, no início desse novo século, em vez de encanto e magia, o Carnaval de São João del-Rei tinha se contaminado pelo terrível vírus da violência. Só se viam brigas, confusões, até assassinatos foram registrados nessa época. Embora seja natural de Belo Horizonte, sofri como qualquer mulher barroca, que traz dentro de sua alma um pouco do sagrado e um pouco do profano. Profanar o meu mítico Carnaval era tirar de mim parte da minha história, do meu passado, tirar de minha filha o direito de viver experiências que eu tinha vivido e queria que fossem eternizadas para as futuras gerações.
Há poucos anos, com a diminuição da violência, fruto do trabalho sério e engajado dos militares do Batalhão de Polícia Militar, aqui instalado em 2005 e com o trabalho do Governo Municipal (inclusive da administração anterior) e de entidades como a Atitude Cultural gerida por Alzira Agostini Haddad que promove o Carnaval de Antigamente. Com suas marchinhas, o evento dá ao público a oportunidade de brincar com artistas em pernas de pau, com os bonecos gigantes do mestre Quati e asssistir exposições diversas que mostram um pouco da história da folia antiga, dos anos 70, que tanto deve ao grande Jota D´Angelo e sua mulher Mamélia Dornelles. O espetáculo certamente traz um pouco da alegria e da animação dos antigos Carnavais que, pouco a pouco, ganham espaço nessa São João del-Rei que luta para conciliar seus rituais centenários à necessidade de modernização.
Espero que os sons produzidos por esse samba que ainda agita a Avenida Presidente Tancredo Neves, não voltem a desafinar. Em vez de simplesmente assistir aos desfiles das escolas, alguns integrantes da família Oliveira, da qual faço parte, também têm atuado com afinco para resgatar a alegria dos antigos Carnavais, por meio de iniciativas tão bacanas como as de blocos infantis como o “Unidos da Lata”, dirigido por minha prima Déborah Dias, ou da voz possante de “Pacote” seu irmão que agita o “Metralhas”; ou da animação da pequena Tatiana e a beleza da jovem Isabela que foi eleita “Rainha do Carnaval em 2009, também minhas primas. À esses Oliveiras, como a todos os Silvas (principalmente o José Leandro Fernando), aos Santos, aos Souzas, aos Melo, aos Marques, aos Frigo, aos meninos do Unidos da Cambalhota, do Copo Sujo, aos fundadores do Alvorada, do Lesma-Lerda, das Domésticas (que conta sempre com participantes como Alexandre Zanetti, um dos que arrasam sempre); à carnavalescos polêmicos como João Bosco e Roberto e Jaime Vieira, o meu obrigado. Continuem lutando para vivo a magia do Carnaval sanjoanense.
Com sua dedicação e força eles fazem da folia de São João del Rei, uma festa que mais do que lantejoulas e brilho, vive da dedicação e vocação de quem acredita que é possível fazer de ritos profanos rituais de demonstração do amor que sentem pela terra onde nasceram, onde se criaram e onde imprimem, com sua humildade e sonho várias páginas da memória de uma cidade que escreveu em suas ruelas e becos estreitos trechos fundamentais da história cultural, política, esportiva e econômica desse país.
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