Violência e promessas de ações culturais dominaram os discursos da reabertura do patrimônio histórico abandonado há duas décadas
Trinta e poucos policiais militares perfilados, alguns com colete de segurança, mais a Banda do Exército, compuseram o cenário da cerimônia de reinauguração da nonagenária estação ferroviária de Chagas Dória, patrimônio arquitetônico mais antigo (1911) do bairro de Matosinhos. Agentes da segurança pública e banda retratavam com perfeição o contexto de necessidades locais. Violência e promessas de ações culturais dominaram os discursos. “O problema da violência é preocupante. Um tiroteio aconteceu há poucos dias aqui”, disse de cara o vice-prefeito Cristiano Tadeu da Silveira, morador do bairro, ao abrir a solenidade na manhã de terça-feira, 1º de março. “Com a Estação recuperada – antes usada como banheiro –, a população ganha espaço para eventos, apresentações culturais”.
Berenício Carvalho, administrador do Complexo Turístico Ferroviário de São João del-Rei, nas mãos da concessionária Ferrovia Centro-Atlântica desde setembro de 2001, reafirmou: “foi reformada pela FCA para ser utilizada para eventos, agregar valores ao bairro”, acrescentando que “a recuperação deste patrimônio [ferroviário] não é só de São João del-Rei, mas de Minas, do Brasil, do mundo”.
Apesar das intenções, a Estação – que perdeu sua razão inicial de ser com o assassinato do transporte ferroviário no país – foi ocupada desde a véspera da inauguração pelo Posto da PM do bairro. A Associação de Moradores de Matosinhos – Asmat – reivindica o uso e gestão do local. “É uma promessa do prefeito Sidinho”, diz José Cláudio Henriques, diretor de imprensa da entidade, que cita como primeiro exemplo de utilização da plataforma de embarque e desembarque, aulas de ginástica para idosos do bairro.
“Vida cultural fica muito a dever”
“A vida social em Matosinhos se resume a bailes e bares. Não há teatro nem shows. Temos muito pouco de vida cultural”, diz Eduardo Antônio Pitt, 26 anos, estudante de Filosofia na UFSJ, integrante da banda de rock “dos anos 70” Encruzilhada. Morador há 15 anos no bairro, diz que Matosinhos “tem gente que faz música, teatro, poesia, mas todos ficam perdidos, não se unem. As bandas ensaiam em casa, entre amigos, mas não se apresentam em público por falta de local. A Estação vai ajudar demais, se for bem usada. Precisamos de mais iniciativas: cursos e mais áreas destinadas à vida cultural”.
O contabilista Sherman Portela Ribeiro, 47, morador há 15 anos no bairro Pio XII, na área de Matosinhos, lembra que “apesar do bairro ter escolas municipais, estaduais e até há pouco uma instituição de ensino superior – o Iptan –, não tem incentivo à cultura. A praça é mal aproveitada. Esse espaço da Estação é muito interessante para atividades culturais, como exposições, feiras”.
O “radialista, compositor, congadeiro, sanfoneiro, ex-maquinista” Luthero Castorino de Andrade, o ‘José Mineiro’, 49 anos, sentencia: “Matosinhos tem 35 mil moradores, mas sua vida cultural deixa a desejar”. Ele credita o fato à “concentração cultural no centro da cidade”, e exemplifica com o comércio local, que “só agora se diversifica”.
Mas, nascido e nunca migrado do bairro, passa logo a citar os bens culturais locais. “Recuperamos em 1998 a Festa do Divino, que havia sido paralisada em 1924 por ordens da Igreja. Os mais de 30 congados e folias anualmente convidados fizeram surgir no bairro, há dois anos, o Congado de São Benedito e São Sebastião, na avenida Santos Dumont, e duas folias: a do escultor Osni Paiva e a do Tãozinho”. Falante, prossegue: “Esta Estação de Chagas Dória deu nome à Escola de Samba Unidos de Chagas Dória, nas décadas de 40 e 50, liderada pelo ‘Zé da Igrejinha’”, lembrando que o bairro possui hoje duas escolas, “a Girassol, criada em 1985, e a Arco-Íris, em 2000”.
E bandas? Luthero reconhece: “Santa Cruz, aqui ao lado [município a 1 km da praça], que tem 8 mil habitantes, 4 vezes menos que nosso bairro, tem a Corporação Musical de São Sebastião, criada pelo regente Claudionor, residente em Matosinhos”. A que isso se deve? “Lá ele teve o apoio do poder público. Não temos uma banda por falta de iniciativa, de apoio do poder público”. Mas logo a seguir, apontando para um imóvel desocupado defronte à Estação, diz: “Temos a banda Pakto [de baile], com ônibus e tudo, que ensaia aí”.
Os três entrevistados na inauguração da Estação Chagas Dória dizem, cada um a seu modo, que a vida artístico-cultural do populoso Matosinhos é, figurativamente, uma chaga [penaliza, produz males ou prejuízos, é um infortúnio]. Crêem que a Estação pode aportar ações culturais iniciais. Quando o secretário(a) de Cultura, ainda não indicado, ouvirá os moradores interessados e com eles formulará um projeto que estimule a vida cultural em Matosinhos?
Fonte: Jornal Cultura Local . Editora Ponte da Cadeia
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