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Barroco expõe rainhas em duas procissões: a do samba e a do Enterro . Edson Paz

Descrição

Fátima e Márcia, quando desfilam no carnaval ou encarnam Verônica na Sexta-feira da Paixão, reinam. Como sentem esses momentos?

Enquanto subiam aos céus o batuque eletrizante e o refrão do samba-enredo, as são-joanenses Fátima Lopes e Márcia Silva oscilavam quadris defronte as igrejas do centro histórico, aguardando o foguetório anunciador do desfile de suas respectivas escolas. No findar da Quaresma, ruas antigas transformadas em Via Dolorosa, corpo antes reluzente de purpurina agora vestido de negro e face encoberta por véu preto, quadris imóveis, Fátima ou Márcia – cada uma a seu ano – fazia subir do céu da boca ao céu aberto do centro histórico, comovente lamento em meio ao magistral silêncio.

Fátima e Márcia, quando desfilam em escolas de samba ou cantam de Verônica na Procissão do Enterro na Sexta-feira da Paixão, reinam. Como sentem esses momentos – contrastantes? antagônicos? – de rebolarem imoderadamente as cadeiras e cantarem festivamente, e, dias depois, uma assumir quadris radicalmente contidos – que os carnavalescos chamam de “cintura dura” – e canto cortante, funéreo? De num dia alçarem festivamente os braços contagiando a arquibancada e, mês e semana depois, a uma erguer lenta e cerimoniosamente o lenço estampado ‘com o suor e sangue do rosto de Cristo’, subirem dezenas de lenços e mangas de camisa, a enxugar lágrimas? De imperarem no trovejar sincopado da bateria e, quarentena depois, uma centrar a atenção com seu canto pesaroso em procissão melancólica?

 “São situações diferentes: carnaval é liberação do corpo e da mente, momento de brincar. Semana Santa é outro clima: de recolhimento, penitência, coisa séria, momento de respeito. Para mim é assim desde criança. Morava ao lado da Matriz, meu pai trabalhava nela. Percussionista da Banda Municipal, ele abria o carnaval oficial, ao lado de clarins. Na Quarta-feira de Cinzas, tudo lá em casa mudava da água para o vinho: não podia restar sombra de carnaval, se não virávamos mula-sem-cabeça. Era dia de jejum”, lembra Fátima Batista Lopes, casada, três filhos, auxiliar de enfermagem no centro cirúrgico da Santa Casa.

Márcia Valéria da Silva, cabeleireira, um filho, tem raízes sambístico-musicais e concepções semelhantes: “Fui criada no meio carnavalesco e litúrgico. Meu pai tocava na banda do quartel, na orquestra Ribeiro Bastos e nos bailes carnavalescos do Minas Futebol Clube. Minha mãe e tias também tocavam ou cantavam na Ribeiro Bastos. Meu pai me levava às matinês do Minas, e na primeira vez que uma escola de samba abriu uma ala de crianças, desfilei. O carnaval e a Semana Santa são explosões de emoções contrastantes: a do carnaval é de alegria, liberdade, não tem outro sentimento. Você põe os demônios pra fora, é uma descarga elétrica. Você ali exposta, corpo solto, só pensa em coisas boas. A Semana Santa é totalmente o oposto, ainda mais na minha situação, de verônica, que vivenciei três anos”.

O que caracteriza, marca essa vivência? “Mexe profundamente com o emocional, desde o momento do convite”, revela Márcia. “Daí em diante, durmo e como, dia e noite, a Semana Santa. É um frio permanente no estômago. Muitas vezes a gente adoece, cheguei a ficar rouca na fase da preparação. Ser verônica não é brincadeira. É bom, e meio assustador. Além da responsabilidade de, com meu canto, chamar as pessoas a ‘olhar e ver como foi tamanha a dor de Cristo na hora da morte’ [letra do cântico da verônica], há o lado extra-religioso. A verônica tem que fazer bonito porque a cidade está lotada, tem a obrigação de extasiar os turistas, para que chamem outros. É como carregar o mundo nas costas. Há cobranças. Se a verônica se sair bem, é cumprimentada, parabenizada o ano todo. Se vai mal, é crucificada pelo resto da vida”.

Fátima, moradora do Alto das Mercês, sambista que já desfilou na extinta Largo da Cruz, Bate-Paus e há anos é fiel aos Irmãos Metralhas, vê, na sua ótica, duas semelhança entre o desfile carnavalesco e a Procissão do Enterro. “Na procissão muitos correm para ver a verônica, querem acompanhá-la em todas as encruzilhadas onde canta. No outro dia, acabou, você volta a ser uma pessoa comum, ninguém te reconhece, pois seu rosto estava coberto por véu preto. É uma coisa do momento”. Para a cabrocha, se a fama é passageira, a missão da verônica não é temporária. “A intenção dos cantos é comover, passar emoção. É um vocativo [chamada, interpelação] para pessoas sem esperança se sensibilizarem e se converterem”, diz, mesmo reconhecendo que, para o público, “o sentimento de recolhimento e de penitência antes era mais forte; hoje é o espetáculo”.

Márcia, morena de olhos esverdeados, procura tanto transmitir emoção que se vê apoderada por ela. “O cerimonial, a teatralidade e o sermão que levam milhares aos pés da escadaria no Largo das Mercês me modificam, transformam meus sentimentos, provocam-me uma tristeza e emoção tão fortes que me transportam dois mil anos atrás. Me vejo naquela época e naquele momento. É muito emocionante. Na procissão, evito olhar para trás, a visão do Cristo morto dói. Tenho que tomar consciência e equilibrar as duas épocas, o passado e o presente, se não a vontade de chorar me invade, e eu não conseguiria cantar. A emoção que sinto tento passar para o público através da voz. Sinto que estou chamando, convocando. Vejo tristeza, pessoas chorando, é um mútuo contágio. Há uma união de sentimentos. Há pessoas que ficam rindo, não sentem a angústia da agonia de Cristo, não compartilham o momento. A partir do sermão na escadaria das Mercês até o retorno à Matriz, o sentimento que me domina é o mesmo, a emoção uma só”.

Mistério dos mistérios

Escolhida pessoalmente pela maestrina Stela Neves com um a dois meses de antecedência entre as cerca de 13 vozes soprano do coral da Orquestra Ribeiro Bastos, a verônica do ano é mantida em segredo. O que ela sabe ninguém mais sabe, não deve ser revelado a ninguém, a não ser no próprio dia da Procissão do Enterro, quando o oculto é desenterrado. “Todos indagam, mas ninguém sabe quem será a verônica”, conta Fátima. “Todo mundo quer saber, mas a gente não pode falar, não temos permissão. Quem tem vontade de ser verônica pode se oferecer, mas, feita a escolha pela maestrina, a expectativa tem que ser mantida até a Sexta-feira Santa. A escolhida sempre nega quando perguntada se foi a eleita, isso todos os anos, até hoje”, faz coro Márcia.

Verônica por três vezes no final dos anos 80 e início dos 90, Márcia repete que “não é brincadeira. Não gosto nem de pensar. Depois da terceira vez, quis distância. Me aposentei. É uma trabalheira”. Ligeira pausa. “Mas se precisar, visto a roupa preta”, emenda. Fátima encarnou verônica em 90, 99 e 2001. A irmã de Márcia, a também sambista Selma Regina, foi a última verônica, em 2004. Perguntar às três sopranos quem entoará os cânticos e levará o sudário é se condenar a ficar sem resposta, pelo menos até 25 de março.

Indagação que não fica sem resposta é se desfilarão no próximo carnaval, já que foram exiladas do desfile oficial de 2004, como outros milhares de foliões, pela inércia dos diretores das agremiações carnavalescas e do poder público municipal. “Ano que vem tâmo aí na fita”, anuncia Fátima verônica-passista. “Eu gosto de desfilar, é um momento único”, diz a que está pronta a, se convidada, se vestir de preto, revelando assim que também está pronta para se desvestir para percorrer a passarela presidencial Tancredo Neves. Coisas do mundo barroco, há 300 anos cultivado, mantido e, agora, estimulado - talvez mais do que culturalmente, turístico-economicamente.

Fonte: Jornal Cultura Local . Editora Ponte da Cadeia
www.editorapontedacadeia.com.br

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