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Ouro contemporâneo . Luiz Cruz

Descrição

Ao completar 300 anos, a cidade de Tiradentes possui, à parte, uma história igualmente rica, a de sua culinária, que atravessa sabiamente os séculos.
Umbigo de bananeira. Banana verde refogada. Mandioca cozida, frita ou ensopada. Milho - verde, pamonha, fubá, mingau, broa, cubu. Farinha de mandioca e farinha e milho. Angu doce, com canela e recheado com queijo curado, servido aos nacos com café. Refogados de broto de samambaia, broto de abóbora, broto de bambu, chuchu, caruru. Ora-pro-nóbis. Inhame e cará. Taioba rasgada refogada. Abobrinha batida e refogada. Abóbora madura. Doce de abóbora. Garapa, melado e mel. Sal e açúcar muito pouco, pois custava muito dinheiro. Tatu, gambá, capivara, jacu, inhambu e outros da fauna silvestre ajudavam a completar o menu.
Mais ou menos isso compunha a alimentação dos homens que saiam de várias partes de São Paulo e Bahia e si entranhavam pelas florestas das Minas Gerais, para conquistarem as sonhadas jazidas de ouro. Sonhos de ouro, pesadelos de ouro. Todo tipo de gente delirava com o precioso metal. Boa parte da gente era detentora de currículos de assustar qualquer cidadão, eram os criminosos degredados de Portugal. Mesmo assim, aqueles que não queriam compor as forças armadas da nova colônia, viajavam em busca de aventuras, ou seja, de “riqueza fácil”.
Atualmente, com a floresta da Serra de São José se reconstituindo dos desmatamentos e dos incêndios florestais, está ficando mais difícil de se observar, em Tiradentes, as acentuadas erosões provocadas pelas minerações de ouro. Somente aqui, em meados do século XVIII, mais de cinco mil escravos derrubavam a floresta, escavavam, revolviam a terra, desviavam os leitos dos córregos, represavam, construíam mundéis para lavar a terra e catar o ouro. Milhares de negros trabalhando dia e noite, só procurando ouro e transformando o meio ambiente em verdadeiro desastre ecológico. E, como diziam os viajantes, produzindo uma tristeza de paisagem.
Se tanta gente só procurava ouro, quem produzia os alimentos? Quase tudo vinha do Rio de Janeiro, aqui não havia tempo para isso, o ouro era mais importante. Fumo, querosene, sal, tecidos, carne seca e as demais iguarias, tudo transportado em lombo de burro, percorrendo as serras, trilhas, cortando os rios, em carregamentos que viajavam por mais de três meses. Os tropeiros chegavam a Tiradentes pela Calçada da Cruz do Carteiro e iam logo até ao Chafariz de São José dar água à tropa e logo distribuir o carregamento às lojas de secos e molhados da Rua Direita, onde se concentrava o maior número de comerciantes.
Porco, boi, galinha. Carne de luxo, só para acontecimentos especiais como casamentos e batizados, ou ocasiões importantes como a Páscoa e o Natal. Galinha, fora isto, só para a sopa de mulher parida, bem forte, para as parturientes se recuperarem dos esforços e o leite vir em abundância. A carne vermelha, quando usada, era quase um complemento, para render, por isso: mandioca com carne, quiabo com carne, canjiquinha com carne. E a proteína rendia mesmo e estava sempre presente à mesa.
Uma vez visitei um lugarejo realmente encantado. Um vale com algumas casas e todos habitantes descendentes de uma única família. As casas eram cercadas por várias árvores e em cada tronco havia uma carcaça de tatu, todos adultos. Sinal de que se tratava de caça seletiva. Ao redor da casa havia muitas galinhas e uma hortinha cercada para manter os pés de couves, salsas e cebolinhas protegidos das aves ciscadeiras. Intrigado com a presença de tantas penáceas se contrastando com as carcaças de tatus, perguntei porque não comiam as galinhas, ao invés dos silvestres tatus. Prontamente, a matriarca me respondeu que buscar tatus era tarefa dos homens. Das galinhas, se alimentavam com os ovos. Comer galinha é só nas festas e quando tem “neném novo”. Um costume autêntico do século XVIII, mantido até o presente momento.
Naquele tempo, qualquer quantidade de carne durava muito, pois a carne cozida ficava guardada na banha. O torresmo apertado ia sendo adicionado à farofa ou ao tutu de feijão. Aproveitava-se, aos poucos, de tudo, o toucinho reservado ficava pendurado sobre o fogão à lenha, recebendo fumaça, para ser degustado mais à frente. Depois, sobrava a pele que salgada se transformava em pururuca ou num gembê de pele (refogado suculento), que recebia os temperos verdes dos quintais. Ainda sobre o fogão à lenha, ficavam vários metros de lingüiça, recebendo fumaça e que aos pequenos pedaços iam sendo consumidos. As partes menos nobres do porco, como: focinho, orelhas, pés, joelhos e rabo também ficavam salgados sobre o fogão, para mais tarde comporem a famosa feijoada. Carne salgada, carne seca, carne de sol. Uma verdadeira multiplicação do alimento.
Para as viagens, a comida dos tropeiros tinha que ter proteína: feijão tropeiro - o alimento seco, que podia ser sacolejando sobre os lombos das mulas, subindo e descendo serras infinitas. A receita se compunha de: feijão inteiro, ovo, torresmo, lingüiça - mexidos. O tutu: feijão, farinha, torresmo, coberto por couve refogada. Tudo feito em panelas de barro, de pedra ou de ferro. Dos fornos feitos com adobe ou de bossa de cupim, eram assados biscoitos que duravam longos dias e eram transportados nos embornais dos tropeiros.
A criatividade e a necessidade fizeram com que a população buscasse alternativas para saciar a fome. Por isso, desenvolveram um cardápio tão original. Mesmo assim, em Minas, milhares de pessoas passavam fome, e em Tiradentes, houve uma tão acirrada que as pessoas tiveram que se alimentar dos próprios animais domésticos, para não sucumbirem pela fome.
Nas primeiras décadas do século passado, antes de ser descoberta pelo turismo, Tiradentes vivenciou décadas de extrema pobreza. A alimentação era simples e como no século XVIII. Quando eu era criança, gostava muito de conversar com o Sr.Antônio Nogueira (músico e compositor local), que contava me sobre as dificuldades que as famílias de Tiradentes tinham no período de 1920 a 1950, quando a absoluta decadência imperou na cidade. O Sr. Nogueira contava que as pessoas pescavam no Ribeiro Santo Antônio, que corta a cidade, para trocar os peixes por fubá ou arroz. Outras colhiam frutas, sendo algumas nativas da Serra de São José, como: jambo, araticum, gabiroba e outras, para vendê-las em São João Del Rei e com o dinheirinho conseguido, compravam alimentos.
Com a riqueza ou com a pobreza, a tradição alimentar ficou enraizada no nosso dia-a-dia, mesmo com a forte presença de enlatados, de tecnologias e novidades que não param de surgir. No século XVIII, quando Tiradentes viveu o apogeu do ouro, a comida foi escassa, mas criativa e conseguiu romper três séculos de história. Hoje, quando a cidade está revitalizada pelo turismo, a tradicional comida mineira vem marcar expressiva presença. Aqui, o visitante não corre o risco de se encharcar de comida gordurosa e sem alternativas. São mais de cinqüenta restaurantes. E, há, sem dúvida, um grande esforço em oferecer um bom cardápio e ambiente agradável. Temos até restaurante que figura entre os melhores de comida regional do País, como o Viradas do Largo, de Beth Beltrão. Mas temos, também, opções internacionais: comida francesa, italiana, escandinava, portuguesa, chinesa, espanhola. Ou seja, em Tiradentes, é possível viajar através dos tempos, saboreando uma suculenta galinha ao molho pardo, feijão tropeiro ou tutu à mineira ou, ainda, deixar-se conduzir pelos caprichados cardápios internacionais. Quando Tiradentes completa seus 300 anos de existência, um novo ciclo, o da boa comida que está representando parte do nosso ouro contemporâneo. Após as refeições, não se esqueça dos doces saborosos: doce de leite, de laranja, de limão capeta, de mamão verde, de cidra, de coco, de abóbora, de tronco de mamão, de amendoim, de batata doce, de goiaba, de banana, de abacaxi, de figo em calda ou cristalizado, de coco com leite, cocada branca e cocada preta. Ambrosia - o autêntico manjar dos deuses. Ao longo do ano, quando Tiradentes está se tornando uma tricentenária cidade, é possível conferir sua culinária e se deleitar.

Luiz Cruz, residente e natural de Tiradentes é professor, artista plástico e bombeiro voluntário. 

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