São João del-Rei, Tiradentes e Ouro Preto Transparentes

a cidade com que sonhamos é a cidade que podemos construir

la ciudad que soñamos es la ciudad que podemos construir

the city we dream of is the one we can build ourselves

la cittá che sognamo é la cittá che possiamo costruire

la ville dont on rêve c’est celle que nous pouvons construire

ser nobre é ter identidade
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Tipo: Artigos | Cartilhas | Livros | Teses e Monografias | Pesquisas | Lideranças e Mecenas | Diversos

Escopo: São João del-Rei | Tiradentes | Ouro Preto | Minas Gerais | Brasil | Mundo

 

São João del Rei, memórias e encantos . Lucília de Almeida Delgado

Descrição

Peço-lhes também licença, para neste dia, no qual a Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas (FAPEMIG) presta homenagem a UFSJ - Universidade Federal de São João del-Rei, pelos seus vinte anos de existência, me dirigir a vocês, menos como Presidente do seu Conselho Curador e mais como uma cidadã nascida nesta terra.
Minha emoção é muito profunda pois, ao olhar para todos os presentes neste auditório, visualizo através de seus semblantes, o de tantas pessoas com as quais convivi. Seus nomes e feições nutrem minha memória com a doçura dos dias de minha infância e com a urgência e os prazeres dos tempos de minha adolescência. Cedo mudei de São João Del Rei para Juiz de Fora, mas sempre retornava a esta cidade, para aqui passar férias, comemorar feriados e aniversários.
Na época das férias escolares eu aqui encontrava não só o calor e o afeto familiar como também a possibilidade de, ao correr por suas ruas de paralelepípedos, viver aventuras infantis, que até hoje animam o que há de mais suave e prazeroso em minhas recordações.
Foi aqui em São João Del Rei, que no convívio com minha avó Sinhá Neves, com meu pai Roberto e com meus tios e primos aprendi as primeiras lições de civilidade, de respeito às outras pessoas, de generosidade e de valorização da causa pública, que a bem da verdade, nos anos da infância, eu ainda não sabia o quanto importante é.
Foi também nos dias da minha meninice que compreendi, talvez de forma ainda precoce, que existem diferenças sociais entre as pessoas. Diferenças profundas e injustas. Esse reconhecimento aconteceu em função de uma das diversões que mais me animavam. Eu adorava brincar com as meninas do orfanato, localizado a pouca distância da casa de minha a vó. Sempre que possível eu para lá corria e se pudesse lá eu ficaria o dia inteiro, cercada po r meninas ávidas de carinho e de um tempo livre para se divertir. Na verdade, todas as meninas do orfanato passavam as férias bordando toalhas de mesa e lençóis finos. Ou seja, dia após dia trabalhavam.
Ao compartilhar com Maria, Gláucia, Filó, Ana e tantas outras, o lanche rotineiro, que constava de café e pão recheado com goiabada eu ficava muito impressionada. Nem sequer atinava sobre qual era a razão que levava à repetição diária de um lanche "tão enjoativo". Mas lá no fundo do meu coração eu já compreendia a tristeza profunda daqueles olhares e alegria, mesmo que efêmera, daquelas que recebiam autorização para brincar com a neta da Dona Sinhá. Tão impressionada eu ficava, que em um bendito dia comecei a perguntar demais: Por que elas não podiam brincar na rua? Porque tinham que bordar todos os dias? Porque não podiam ir ao cinema? E ganhar balas? E andar de bicicleta? E ter vestidos mais bonitos? Perguntava também o que havia acontecido com seus pais. E com suas famílias? Tantas indagações sugeriram aos meus familiares que eu era muito sensível e que brincar todos os dias no orfanato não podia estar me fazendo bem. Criaram então uma regra: só podia ir até lá uma única vez por semana. É claro que a regra nunca foi cumprida, eram tantos netos, de tantas idades diferentes, correndo para lá e para cá, que era fácil escapulir por algumas horas. Mas também o que estava acontecendo não era grave, pelo contrário revelava, segundo meu pai, curiosidade e preocupação com as outras pessoas. No fundo, no fundo, todos fizeram vistas grossas e eu continuei atravessando os grossos portões da instituição e voando alto em suas gangorras. Até hoje guardo comigo uma foto, na qual apareço com o todo o grupo das meninas que ali moravam. Foram ternuras da minha infância, perdidas para sempre de vista. Perdemo-nos nos labirintos da vida, mas seus olhares carentes em mim ficaram cravados a sempre me lembrar, que existem injustiças e diferenças sociais no mundo no qual vivemos.
Foi também, aqui em São João Del Rei, que compartilhei com meus primos e primas o que eu considero ter sido uma das melhores delícias de meu tempo de criança. Bem cedo, às 6:30 da manhã, ficávamos todos a postos e lá íamos pelas mãos carinhosas de Tio Otávio viajar de Maria Fumaça até as Águas Santas. Lá nos divertíamos a valer em sua piscina de cimento e de águas correntes e em suas duchas vigorosas. Só era permitido a cada criança levar a mesma quantia de dinheiro. Valor que dava exatamente para comprar um pastel e uma limonada. Quem levasse mais ou escondesse alguma moedinha ganhava uma reprimenda, carregada de autoridade e de afeto Foi pelos braços vigorosos de Tio Otávio que aprendi a nadar e, como metáfora para vida, a mergulhar, a controlar os movimentos, a somar disciplina com prazer e a respirar fundo.
Mas com as boas recordações chegam também os registros dos dias de tristezas, que deixaram cicatrizes profundas. Foi somente através da psicanálise, que um dia vislumbrei uma enorme parede caindo sobre mim, ainda bebê. A babá, em um reflexo rapidíssimo jogou longe a cadeirinha na qual eu estava instalada e pulou em seguida para o cômodo contíguo. Tratava-se de alucinação? Não. Era tudo verdade. Verdade confirmada pelos tios para os quais incontinente telefonei. Uma verdade doída e protegida pelo silêncio dos anos. Uma verdade, que virou tabu. Sim. O sobrado construído pelo senhor André Bello - meu avô materno, imigrante italiano, artista e fotógrafo de reconhecimento internacional, estava condenado. Ao seu lado foi construído o único prédio alto de São João Del Rei. Os alicerces do requintado casarão em estilo italiano, não resistiram, naquela década de 1950, aos apelos da modernidade. Hoje, no seu lugar, vemos um posto de gasolina.
A babá continuou cuidando de mim, com amor profundo, por muitos e muitos anos. Era Eugênia Franco, a minha saudosa "mãe preta" que, juntamente com meu pai - puro carinho e dedicação, zelou por mim durante a infância, a adolescência e os primeiros anos da juventude. Minha mãe Gabriella, filha de André Bello e de Guilhermina Minecucci Bello, nos deixou poucos anos após a queda do sobrado. Talvez não tenha resistido à dor de uma perda tão drástica.
Portanto, foi aqui em São João Del Rei, que ao viver as primeiras grandes emoções da vida, me nutri também com o valor da perseverança e com a força da resistência, que aprofundam a alegria de viver. E ao avistar lá no fundo deste auditório, minha prima Adriana, lembro-me com amor de meus irmãos Breno, Lúcio e Magda e de toda a nossa família. Lembro-me em especial da Lúcia, prima tão querida, parceira preferencial nas férias, nas viagens, nos carnavais, nos dias de jogar conversa fora e de partilhar os primeiros segredos dos namorados, que começaram a bater em nossas portas. Lucia agora está incluída nas nossas muitas saudades.
Adriana, termino esta minha declaração de amor a São João Del Rei, dizendo a você, que são os densos elos de carinho que nos unem, que me fazem abraçar a vida com a certeza da renovação. Obrigada.

*Presidente do Conselho Curador d a Fapemig, professora Titular da Pontífica Universidade Católica de Minas Gerais

Fonte: Gazeta de São  João del-Rei
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