São João del-Rei, Tiradentes e Ouro Preto Transparentes

a cidade com que sonhamos é a cidade que podemos construir

la ciudad que soñamos es la ciudad que podemos construir

the city we dream of is the one we can build ourselves

la cittá che sognamo é la cittá che possiamo costruire

la ville dont on rêve c’est celle que nous pouvons construire

ser nobre é ter identidade
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Tipo: Artigos | Cartilhas | Livros | Teses e Monografias | Pesquisas | Lideranças e Mecenas | Diversos

Escopo: São João del-Rei | Tiradentes | Ouro Preto | Minas Gerais | Brasil | Mundo

 

A mais bela de todas . São João del Rei . Luiz Cruz

Descrição

1704 ou 1705? Especialistas divergem. Não importa exatamente quando começou o povoado. São João del Rei já é uma tricentenária cidade, cheia de vigor e expressividade. O  tempo sempre foi seu aliado,  trazendo força e contemporaneidade.
Neste momento, estou defronte a uma fotografia panorâmica de São João del Rei, de autoria de André Bello. Esta foto é um valioso documento que nos prova que São João del Rei foi a mais bela de todas as vilas setecentistas mineiras. O antigo Arraial de Nossa Senhora do Pilar do Rio das Mortes foi instalado em um lugar privilegiado, na bacia do Rio das Mortes e ao sopé da Serra do Lenheiro. Em pontos estratégicos, dominando a paisagem arquitetônica, foram erguendo os templos e as casas ocupando as ruas. Tudo bem diferente da cidade de Mariana, que foi edificada sob planejamento urbano. Os telhados fazem desenhos geométricos que vão se abraçando, intercalando com os quintais cheios de vegetação e separados por muros de pedras. O Ribeiro do Lenheiro desce calmamente, dividindo a cidade e sobre ele pontes de pedras em arcadas romanas da maior elegância. São pontes sólidas e muito altas para receberem os grandes volumes de águas dos tempos de chuvas, quando o Lenheiro enche e se transforma,  ficando turbulento e perigoso. As serras de São José e do Lenheiro encerram a paisagem.  Na fotografia, devidamente respeitada, sem as ocupações aleatórias, a Serra do Lenheiro está harmoniosamente integrada à paisagem são-joanense.
André Bello foi um fotógrafo que soube transformar o seu olhar em imagens reveladas. E é Roland Barthes em "A Câmara Clara" que diz:  “a Fotografia não fala daquilo que não é mais, mas apenas e com certeza daquilo que foi” e ainda, “o passado, doravante, é tão seguro quanto o presente, o que se vê no papel é tão seguro quanto o que se toca”. Desta maneira, estamos diante de uma prova de que o que nos foi revelado deve ser preservado, assegurado. O ensaísta indo-britânico Homi K. Bhabha em "O Local da Cultura" afirma que a imagem é apenas e sempre um acessório da autoridade e da identidade. A imagem de André Bello é o documento de identidade de São João del-Rei. O ensaísta trata ainda da tradição: “é aquilo que diz respeito ao tempo, ... as narrativas devem ser repetidas o tempo todo porque são esquecidas todo o tempo. Mas o que não é esquecido é o ritmo temporal que não  pára de enviar as narrativas ao esquecimento”, assim lembrando Lyotard. Se o tempo nos remete constantemente ao esquecimento, devemos usar a memória para conectar o passado ao presente e vislumbrar o futuro – e com identidade.
Foi nos primeiros anos do século XVIII, que Tomé Portes del Rei atravessou o Rio das Mortes e, nas margens esquerda, em grandes áreas verdes soltou o seu gado. Logo em seguida, o ouro foi encontrado no local, atualmente, conhecido como Alto das Mercês. O ouro atraiu para o arraial muitas pessoas, que  chegavam unicamente com o objetivo de procurar o metal precioso e logo se enriquecer. Foi com a força do ouro que, em seguida, o arraial foi se consolidando e se tornando em um dos mais poderosos da capitania. Poder e disputa. Breve o arraial seria um dos palcos da Guerra dos Emboabas, entre paulistas – os pioneiros e emboabas – os portugueses. No dia 8 de dezembro de 1713, o arraial foi promovido de categoria, passando a ser Vila de São João del-Rei; em 6 de março de 1838, tornou-se cidade. Com o resplendor do ouro as poderosas Irmandade do Santíssimo Sacramento e as Ordens Terceiras Carmelita e Franciscana erigiram seus magníficos templos. As demais irmandades não ficaram para trás, também envidaram esforços para se imporem. Até hoje, em São João del-Rei, todos os padroeiros são celebrados com grande entusiasmo e um verdadeiro espetáculo de fé.
As minas foram se exaurindo, as terras ficando reviradas, as matas devastadas. O ouro foi acabando. Mas, de maneira alguma São João del-Rei se entregou à decadência minerária. Localizada em ponto estratégico e cabeça da Comarca do Rio das Mortes, a cidade buscou no comércio a diversificação de sua  nova fonte de renda. A agropecuária introduzida por Tomé Portes del Rei nunca fora abandonada e, no século XIX, cresceu de maneira surpreendente. Cidades distantes, como Araxá, vêm trazer sua produção para ser exportada por São João del-Rei. Importação e exportação. O sal para a engorda do gado é o principal produto importado e negociado na região, movimentando muito dinheiro. Carne verde, grãos, algodão, toucinho, gado, queijos, galinhas e outros eram conduzidos por inúmeras tropas até ao Rio de Janeiro. Os escravos também movimentavam a economia local, não só com suas produções, também por serem comprados e vendidos no Rio. A década de 1860 foi a mais movimentada, economicamente,  tanto que surgiu a primeira Casa Bancária mineira, criada pelo coronel Custódio de Almeida Magalhães. As tropas que transportavam a produção perderam a força com a chegada da Estrada de Ferro Oeste de Minas, inaugurada em 1881. Foi instalada a Fábrica de Fiação e Tecelagem Sanjoanense, em 1891. A boa educação para meninos e meninas também foi uma marca desse tempo de prosperidade. Diversos estabelecimentos de ensino se instalaram na cidade. No livro "A Princesa do Oeste" e o "Mito da Decadência  de Minas Gerais", de Afonso de Alencastro Graça Filho, encontra-se uma das pesquisas mais amplas e profundas sobre a economia são-joanense do século XIX. A leitura desta obra torna-se fundamental para quem quer conhecer mais sobre a expressividade econômica que São João del-Rei alcançou.
Muitos viajantes passaram por São João del-Rei e registram importantes contribuições sobre a cultura e a economia local, um dos mais importantes foi o naturalista Auguste Saint-Hilaire, que com muita sensibilidade registrou aspectos marcantes do dia-a-dia da cidade. Mas não foram somente os estrangeiros que deram contribuições. O mestre carioca Carlos de Laet passou onze meses em São João del-Rei, fugindo da Revolta da Armada, que perseguia os adeptos da monarquia. Laet publicou, em 1894,  o livro "Em Minas"  e nele registra uma visão singular sobre a cidade, baseada em depoimentos diversos e inclusive dos viajantes estrangeiros, como o próprio Saint-Hilaire.
O século XX vai chegando e a arquitetura eclética conquistando muitos espaços e o poder econômico propicia a adequação ao novo estilo. O art nouveau, art déco e neoclássico também marcaram presença nas construções são-joanenses. A energia elétrica chegou, com ela as indústrias e até um bairro das fábricas. As instituições de ensino, de alunos internos e externos, tornaram-se uma referência, dentre elas destacaram: Ginásio Santo Antônio, o Instituto Padre Machado, a Escola Normal Nossa Senhora das Dores e o Colégio São João. Em 13 de outubro de 1942, no Bairro Matozinhos, foi instalada a escola do SENAI, hoje o Centro de Formação Profissional Silvio Assunção Teixeira, promovendo cursos  profissionalizantes e aprimorando a mão-de-obra. Na década de 1980, chegou a FUNREI, agora a UFSJ-Universidade Federal de São João del-Rei, consolidando a vocação da cidade para a educação.
Se a mineração desapareceu e a agropecuária enfraqueceu, a cidade viu surgir novas frentes de produção com a chegada da Fábrica de Estanhos John Somers e as fábricas de móveis. Hoje a cidade possui inúmeras fábricas de peças de estanhos e é um destaque na indústria moveleira. Sem esquecer das siderúrgicas, a pioneira foi a Companhia Industrial Fluminense, implantada em 14 de maio de 1912.
Tempo e tradição. Ao longo dos três séculos, São João del-Rei foi se adequando aos momentos, mas, simultaneamente, resistindo e mantendo aquilo que mais a identifica, como a Semana Santa - a mais completa do Brasil, as orquestras, as bandas de música, as festas dos padroeiros das igrejas, a arquitetura civil e religiosa, a Serra do Lenheiro, o 11º Batalhão de Infantaria e muito mais. Tudo isso constitui o seu valioso acervo histórico, cultural e ambiental. Porém, a cidade merece um bom programa de gestão, interdisciplinar, para que seus valores possam ser preservados, conhecidos e admirados por  todos, principalmente pelos são-joanenses.

*Luiz Cruz é professor e bombeiro voluntário em Tiradentes 

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