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Lei do Tombamento completa 80 anos, mas continua atual | Marcos Paulo de Souza Miranda
Descrição
O ponto de partida para a efetiva preservação do patrimônio cultural
no Brasil, viabilizando o posterior surgimento do Decreto-Lei 25/1937,
conhecido como “Lei do Tombamento”, se deu em 1934, com a consagração da
proteção ao patrimônio cultural por meio da Constituição Federal
promulgada em 16 de julho daquele ano, o que, até então, não era
previsto em nosso ordenamento jurídico[1].
Com
efeito, a Carta Magna de 1934 instituiu pioneiramente a função social
da propriedade (artigo 133, inciso XVII), bem como estabeleceu os
primeiros comandos constitucionais impondo a proteção do patrimônio
cultural, nos seguintes termos:
"Art. 10 – Compete
concorrentemente à União e aos Estados: III – proteger as belezas
naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico, podendo
impedir a evasão de obras de arte;
Art. 148 – Cabe à União,
aos Estados e aos Municípios favorecer e animar o desenvolvimento das
ciências, das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os
objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do País, bem
como prestar assistência ao trabalhador intelectual".
Essas
inovações constitucionais assentaram as bases para a criação de
instrumentos legais capazes de garantir eficazmente a preservação do
patrimônio cultural brasileiro.
No ano de 1935, durante o Primeiro
Congresso Brasileiro de Proteção à Natureza, ocorrido no Rio de
Janeiro, foi idealizada a criação de um serviço técnico especial de
monumentos nacionais. O então ministro da Educação, Gustavo Capanema,
foi quem tomou a iniciativa de um projeto de lei federal referente ao
assunto. Contando com a colaboração do historiador Luís Camilo de
Oliveira Neto e com alusão às leis francesas e ao projeto de José
Wanderley de Araújo Pinho, o ministro encarregou o escritor Mário de
Andrade, então diretor do Departamento de Cultura do Município de São
Paulo, da elaboração de um plano de criação do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN).
Na sequência, em 13 de
janeiro de 1937, pela Lei 378, que tratava da estrutura do Ministério da
Educação, Getúlio Vargas criou o SPHAN, com o objetivo de promover no
território nacional o tombamento, a conservação e a divulgação do
patrimônio cultural do país. Para a direção do novel órgão de proteção,
foi escolhido o nome de Rodrigo Melo Franco de Andrade.
Referida
norma, como abaixo se transcreve, fazia referência ao instituto do
tombamento, conquanto não tivesse seu regime jurídico definido em nosso
ordenamento jurídico:
"Art. 46. Fica creado o Serviço do
Patrimonio Historico e Artístico Nacional, com a finalidade de promover,
em todo o Paiz e de modo permanente, o tombamento, a conservação, o
enriquecimento e o conhecimento do patrimonio historico e artístico
nacional".
O projeto de lei sobre a proteção do patrimônio
histórico e artístico nacional, que redundou no Decreto-lei 25/37, foi
elaborado por Mário de Andrade e por Rodrigo de Melo Franco Andrade
(incorporando ideias, diretrizes e trechos dos projetos anteriores de
Luis Cedro, Jair Lins e Wanderley Pinho, somado à consulta cuidadosa à
legislação específica estrangeira[2])
e apresentado à Câmara dos Deputados em 15 de outubro de 1936, onde
tramitou muito rapidamente, sendo logo aprovado e encaminhado ao Senado.
Sobre o conteúdo do projeto, sustentou Rodrigo Melo Franco de Andrade durante a sua tramitação[3]:
"A
mensagem que o presidente da República acaba de enviar à Câmara dos
Deputados, submetendo à sua apreciação o projeto que organiza a proteção
do patrimônio histórico e artístico nacional, não deve ser considerada
matéria de importância secundária. A iniciativa do chefe da Nação tem
uma finalidade prática relevante, que é a de dotar o Brasil de uma
legislação adequada a impedir que se arruínem ou se dispersem os bens de
notável valor artístico e histórico existentes no país.
Não se
trata de empreendimento inspirado em motivos sentimentais ou românticos,
nem, muito menos, de qualquer espécie de plano suntuário, do qual só se
venham a aproveitar os sábios à cata de sinecuras excelentes. O que o
projeto governamental tem em vista é poupar à Nação o prejuízo
irreparável do perecimento e da evasão do que há de mais precioso no seu
patrimônio. Grande parte das obras de arte mais valiosas e dos bens de
maior interesse histórico, de que a coletividade brasileira era
depositária, tem desaparecido ou se arruinado irremediavelmente, em
consequência da inércia dos poderes públicos e da ignorância, da
negligência e da cobiça dos particulares. A subsistência dessas mesmas
circunstâncias ameaça, pois, gravemente o que resta ainda das nossas
riquezas artísticas e históricas. E, assim, se faltarem, acaso, por mais
tempo, as medidas enérgicas requeridas para a preservação desses
valores, não serão apenas as gerações futuras de brasileiros que nos
chamarão a contas pelo dano que lhes teremos causado, mas é desde logo a
opinião do mundo civilizado que condenará a nossa desídia criminosa,
pois as obras de arte típicas e as relíquias da história de cada país
não constituem o seu patrimônio privado, e sim um patrimônio comum de
todos os povos".
No Senado, o texto foi aprovado com emendas e
retornou à Câmara, sendo marcada a data de 10 de novembro de 1937 para a
discussão final. Naquele mesmo dia, por ironia da história, um golpe de
Estado dissolveu o Congresso e entrou em vigor a nova Constituição
Federal, que, embora sendo produto do autoritarismo, era mais eficaz na
defesa do patrimônio cultural brasileiro, considerado um dos símbolos da
nacionalidade.
Na Carta do Estado Novo (1937), a matéria foi
regulamentada pelo artigo 134, nos seguintes termos: "Os monumentos
históricos, artísticos e naturais, assim como as paisagens ou os locais
particularmente dotados pela natureza, gozam da proteção e dos cuidados
especiais da Nação, dos Estados e dos Municípios. Os atentados contra
eles cometidos serão equiparados aos cometidos contra o patrimônio
nacional".
Cumprindo a vontade constitucional, o Estado Novo
editou, com apenas 20 dias de sua existência, o seu 25º decreto-lei, no
dia 30 de novembro de 1937, organizando a proteção do patrimônio
histórico e artístico nacional. O texto do decreto era praticamente uma
cópia do projeto de Mário de Andrade já aprovado na Câmara e no Senado[4].
Com a sua edição, o sistema jurídico brasileiro obteve um instrumento
legal para a proteção do patrimônio cultural, batizado popularmente como
“Lei do Tombamento”.
A norma, com recém-completados 80 anos de
vigência, é uma das mais duradouras leis de preservação da história do
país, tendo suplantado suas homólogas, como o Código Florestal (Decreto
23.793/1934, revogado em 1965) e o Código de Caça e Pesca (Decreto
23.672/1934, revogado em 1943).
Apesar de o produto final da lei
de proteção ao patrimônio cultural ter se materializado em um ato típico
do autoritarismo (decreto-lei), ele passou por todo o procedimento
democrático que antecede a sanção e promulgação dos projetos de leis, e o
seu conteúdo espelhava o resultado de trabalhos aprofundados e sérios
de intelectuais e políticos comprometidos com a defesa da cultura
brasileira.
Sobre a importância desse diploma legal, afirma Maria Coeli Simões Pires:
"É
ele verdadeiro somatório das experiências e contribuições das elites,
assimiladas ao longo de uma luta em favor da institucionalização da
proteção ao patrimônio histórico, artístico, cultural e paisagístico,
além de ter introduzido a prática da limitação dos direitos patrimoniais
em função de interesses sociais sem a consequência necessária de
indenizar"[5].
Alcançada
a conquista normativa, o desafio passou a ser a mudança de cultura do
povo brasileiro sobre a conservação de seus bens culturais.
Em 24 de janeiro de 1940, Rodrigo Melo Franco de Andrade declarava em entrevista concedida ao Correio da Manhã, do Rio de Janeiro:
"Filhos
de um país novo, cujo descobrimento se deu na era moderna e cuja
formação política data de pouco mais de um século, os brasileiros, em
geral, não se distinguem pelo culto às relíquias do passado. O
sentimento de respeito retrospectivo torna-se mais arraigado entre os
povos de longo passado histórico. Já é tempo, entretanto, de
considerarmos a beleza moral da história do Brasil, instituindo a defesa
dos seus documentos".
No ano de 1942, o Supremo Tribunal Federal,
por seu pleno, quando do julgamento da Apelação Cível 7.377, que
objetivava a declaração de nulidade do ato de tombamento federal de um
prédio situado na Praça Quinze de Novembro, no Rio de Janeiro, teve a
oportunidade de apreciar, pela primeira vez, não só a
constitucionalidade do Decreto-Lei 25/37, mas também de reconhecer a
função social dos bens culturais e o especial regime jurídico a que se
submetem, em acórdão célebre relatado pelo ministro Castro Nunes, cuja
ementa merece ser transcrita:
"O decreto-lei n. 3.365, de 21 de
junho de 1941, lei de desapropriações, contemplando entre as hipóteses
que prevê, a preservação dos monumentos históricos, deve ser entendido
nos termos da lei especial, ou seja, o decreto-lei n. 25, de 30 de
novembro de 1947; a desapropriação dos monumentos históricos tombados
compulsoriamente não é obrigatória e sim facultativa, sendo
constitucionais as disposições de lei ordinária a respeito.
A legalidade do tombamento dos monumentos históricos pode em cada caso, e deve, ser apreciada pelo Poder Judiciário.
A
conservação dos monumentos históricos e objetos artísticos visa um
interesse de educação e de cultura; a proibição legal de os mutilar,
destruir ou desfigurar está implícita nessa preservação; a obrigação de
conservar, que daí resulta para o proprietário, se traduz no dever de
colaborar na realização desse interesse público.
É a necessidade
ou conveniência da conservação dos monumentos históricos e objetos de
arte, que pode não convir ao proprietário, o fundamento da legislação
especial a respeito. Existe em tais coisas algo que supera o interesse
do dono. Destacar esse interesse público para protegê-lo, ainda que
reduzindo as faculdades do proprietário, está ao alcance do legislador
ordinário com base na atual constituição.
A propriedade social
concretiza uma concepção jurídica aplicada para fundamentar a legalidade
da proteção aos monumentos históricos e objetos de arte, indicando a
existência de um degrau do desenvolvimento progressivo do direito de
propriedade em um sentido cada vez menos individual; diz-se que em tais
monumentos e objetos, em poder dos particulares, existem duas partes
distintas: a intelectual – ou seja, o pensamento do artista, o ideal que
ele encarnou – e a material – isto é, esta mesma forma que lhe serviu
para fixar o seu pensamento, o seu ideal. A primeira pertence à
sociedade, que a deve proteger; somente a segunda pertence à propriedade
privada, gravada de servidão"[6].
Passadas
oito décadas de sua vigência, o Decreto-Lei 25/37 pode ser considerado
como um dos mais estáveis e importantes diplomas normativos brasileiros
voltados à preservação do interesse coletivo, e sua ancianidade não
compromete seu alcance e efetividade, pois seus conceitos, regramentos e
finalidades são claros, permanecendo atuais.
O alargado período
de vigência da Lei do Tombamento permitiu a formação de posicionamentos
doutrinários amadurecidos, conquanto não unânimes, sobre seu alcance,
além de ter propiciado uma farta produção jurisprudencial que merece ser
conhecida e analisada[7].
Mais
recentemente, o Superior Tribunal de Justiça tem densificado a
aplicabilidade da norma, realçando o dever de proteção ao patrimônio
cultural e o alcance protetivo do Decreto-Lei 25/37 em lições que
orientam e inspiram os operadores do Direito na correta aplicação do
importante instrumento do tombamento, a exemplo dos seguintes excertos:
"Além
de rasgar a Constituição e humilhar o Estado de Direito,
substituindo-o, com emprego de força ou manobras jurídicas, pela 'Lei da
selva', a privatização ilegal de espaços públicos, notadamente de bens
tombados ou especialmente protegidos, dilapida o patrimônio da sociedade
e compromete o seu gozo pelas gerações futuras. A ocupação, a
exploração e o uso de bem público – sobretudo os de interesse
ambiental-cultural e, com maior razão, aqueles tombados – só se admitem
se contarem com expresso, inequívoco, válido e atual assentimento do
Poder Público, exigência inafastável tanto pelo Administrador como pelo
Juiz, a qual se mantém incólume, independentemente da ancianidade,
finalidade (residencial, comercial ou agrícola) ou grau de interferência
nos atributos que justificam sua proteção" (STJ; REsp 808.708; Proc.
2006/0006072-8; RJ; 2ª Turma; rel. min. Herman Benjamin; Julg.
18/8/2009; DJE 4/5/2011).
"A legislação do patrimônio
histórico-cultural deve ser interpretada da forma que lhe seja mais
favorável e protetora. De acordo com entendimento do STJ, o tombamento
do Plano Piloto alcança todo seu conjunto urbanístico e paisagístico.
Sem a prévia autorização do Iphan, "não se poderá, na vizinhança da
coisa tombada, fazer construções que impeça ou reduza a visibilidade,
nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a
obra ou retirar o objeto, impondo-se neste caso a multa de cinqüenta
por cento do valor do mesmo objeto" (artigo 18 do Decreto-Lei nº
25/1937). O mencionado artigo é claro ao exigir autorização do Iphan
para a colocação de anúncios na coisa tombada. Na hipótese dos autos,
inexistiu tal anuência, o que basta para tornar ilegal a conduta da
recorrente. No campo jurídico do tombamento, o conceito de dano não se
restringe ou se resume a simples lesão física (desfiguradora e
estrutural) ao bem protegido, pois inclui agressões difusas e até
interferências fugazes nele mesmo, no conjunto e no seu entorno (= dano
indireto), que arranhem ou alterem os valores globais intangíveis, as
características, as funções, a estética e a harmonia, o bucólico ou a
visibilidade das suas várias dimensões que justificaram a especial
salvaguarda legal e administrativa. In casu, a conduta irregular da
empresa foi mais além, por ter acarretado danos à vegetação do local,
mormente pela supressão de árvores, em flagrante desrespeito à norma do
art. 17, que veda em absoluto a destruição e a mutilação do bem tombado"
(STJ; REsp 1.127.633; Proc. 2009/0136547-0; DF; 2ª Turma; rel. min.
Herman Benjamin; Julg. 23/3/2010; DJE 28/2/2012).
Hodiernamente,
quando o Brasil vivencia um momento de crise de valores e de identidade,
imprescindível se faz o resgate e a valorização de nossos referenciais
históricos, testemunhos de nossa trajetória de evolução civilizacional, a
qual devemos ter o orgulho de preservar para transmiti-los, na
plenitude de sua integridade, às gerações que ainda estão por vir.
Por
isso, vale a pena conhecer com maior profundidade o Decreto-Lei 25/37 e
explorar as suas múltiplas potencialidades como instrumento de
preservação do patrimônio cultural do povo brasileiro.
[1] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
[2] TELLES, Mário Ferreira de Pragmácio. Entre a lei e as salsichas. Análise dos antecedentes do Decreto-Lei 25/1937. Porto Alegre: Magister. Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico, Vol. 27 – dez/jan-2010.
[3] Defesa do nosso patrimônio artístico e histórico. O Jornal. Rio de Janeiro, 30/10/1936.
[4] MARÉS, Carlos Frederico. A proteção jurídica dos bens culturais. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo, nº 2. 1993. p. 22.
[5] Da proteção ao patrimônio cultural. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p. 37.
[6] RT 524, p. 785-811.
[7] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Lei do Tombamento Comentada. Doutrina, jurisprudência e normas complementares. Belo Horizonte: Del Rey, 2014.
é
promotor de Justiça em Minas Gerais, coordenador do Grupo de Trabalho
sobre Patrimônio Cultural da Rede Latino-Americana do Ministério Público
e membro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios
(Icomos-Brasil).
Fonte: Consultor Jurídico/2017
O ponto de partida para a efetiva preservação do patrimônio cultural no Brasil, viabilizando o posterior surgimento do Decreto-Lei 25/1937, conhecido como “Lei do Tombamento”, se deu em 1934, com a consagração da proteção ao patrimônio cultural por meio da Constituição Federal promulgada em 16 de julho daquele ano, o que, até então, não era previsto em nosso ordenamento jurídico[1].
Com efeito, a Carta Magna de 1934 instituiu pioneiramente a função social da propriedade (artigo 133, inciso XVII), bem como estabeleceu os primeiros comandos constitucionais impondo a proteção do patrimônio cultural, nos seguintes termos:
"Art. 10 – Compete concorrentemente à União e aos Estados: III – proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico, podendo impedir a evasão de obras de arte;
Art. 148 – Cabe à União, aos Estados e aos Municípios favorecer e animar o desenvolvimento das ciências, das artes, das letras e da cultura em geral, proteger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do País, bem como prestar assistência ao trabalhador intelectual".
Essas inovações constitucionais assentaram as bases para a criação de instrumentos legais capazes de garantir eficazmente a preservação do patrimônio cultural brasileiro.
No ano de 1935, durante o Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Natureza, ocorrido no Rio de Janeiro, foi idealizada a criação de um serviço técnico especial de monumentos nacionais. O então ministro da Educação, Gustavo Capanema, foi quem tomou a iniciativa de um projeto de lei federal referente ao assunto. Contando com a colaboração do historiador Luís Camilo de Oliveira Neto e com alusão às leis francesas e ao projeto de José Wanderley de Araújo Pinho, o ministro encarregou o escritor Mário de Andrade, então diretor do Departamento de Cultura do Município de São Paulo, da elaboração de um plano de criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN).
Na sequência, em 13 de janeiro de 1937, pela Lei 378, que tratava da estrutura do Ministério da Educação, Getúlio Vargas criou o SPHAN, com o objetivo de promover no território nacional o tombamento, a conservação e a divulgação do patrimônio cultural do país. Para a direção do novel órgão de proteção, foi escolhido o nome de Rodrigo Melo Franco de Andrade.
Referida norma, como abaixo se transcreve, fazia referência ao instituto do tombamento, conquanto não tivesse seu regime jurídico definido em nosso ordenamento jurídico:
"Art. 46. Fica creado o Serviço do Patrimonio Historico e Artístico Nacional, com a finalidade de promover, em todo o Paiz e de modo permanente, o tombamento, a conservação, o enriquecimento e o conhecimento do patrimonio historico e artístico nacional".
O projeto de lei sobre a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, que redundou no Decreto-lei 25/37, foi elaborado por Mário de Andrade e por Rodrigo de Melo Franco Andrade (incorporando ideias, diretrizes e trechos dos projetos anteriores de Luis Cedro, Jair Lins e Wanderley Pinho, somado à consulta cuidadosa à legislação específica estrangeira[2]) e apresentado à Câmara dos Deputados em 15 de outubro de 1936, onde tramitou muito rapidamente, sendo logo aprovado e encaminhado ao Senado.
Sobre o conteúdo do projeto, sustentou Rodrigo Melo Franco de Andrade durante a sua tramitação[3]:
"A mensagem que o presidente da República acaba de enviar à Câmara dos Deputados, submetendo à sua apreciação o projeto que organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional, não deve ser considerada matéria de importância secundária. A iniciativa do chefe da Nação tem uma finalidade prática relevante, que é a de dotar o Brasil de uma legislação adequada a impedir que se arruínem ou se dispersem os bens de notável valor artístico e histórico existentes no país.
Não se trata de empreendimento inspirado em motivos sentimentais ou românticos, nem, muito menos, de qualquer espécie de plano suntuário, do qual só se venham a aproveitar os sábios à cata de sinecuras excelentes. O que o projeto governamental tem em vista é poupar à Nação o prejuízo irreparável do perecimento e da evasão do que há de mais precioso no seu patrimônio. Grande parte das obras de arte mais valiosas e dos bens de maior interesse histórico, de que a coletividade brasileira era depositária, tem desaparecido ou se arruinado irremediavelmente, em consequência da inércia dos poderes públicos e da ignorância, da negligência e da cobiça dos particulares. A subsistência dessas mesmas circunstâncias ameaça, pois, gravemente o que resta ainda das nossas riquezas artísticas e históricas. E, assim, se faltarem, acaso, por mais tempo, as medidas enérgicas requeridas para a preservação desses valores, não serão apenas as gerações futuras de brasileiros que nos chamarão a contas pelo dano que lhes teremos causado, mas é desde logo a opinião do mundo civilizado que condenará a nossa desídia criminosa, pois as obras de arte típicas e as relíquias da história de cada país não constituem o seu patrimônio privado, e sim um patrimônio comum de todos os povos".
No Senado, o texto foi aprovado com emendas e retornou à Câmara, sendo marcada a data de 10 de novembro de 1937 para a discussão final. Naquele mesmo dia, por ironia da história, um golpe de Estado dissolveu o Congresso e entrou em vigor a nova Constituição Federal, que, embora sendo produto do autoritarismo, era mais eficaz na defesa do patrimônio cultural brasileiro, considerado um dos símbolos da nacionalidade.
Na Carta do Estado Novo (1937), a matéria foi regulamentada pelo artigo 134, nos seguintes termos: "Os monumentos históricos, artísticos e naturais, assim como as paisagens ou os locais particularmente dotados pela natureza, gozam da proteção e dos cuidados especiais da Nação, dos Estados e dos Municípios. Os atentados contra eles cometidos serão equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional".
Cumprindo a vontade constitucional, o Estado Novo editou, com apenas 20 dias de sua existência, o seu 25º decreto-lei, no dia 30 de novembro de 1937, organizando a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. O texto do decreto era praticamente uma cópia do projeto de Mário de Andrade já aprovado na Câmara e no Senado[4]. Com a sua edição, o sistema jurídico brasileiro obteve um instrumento legal para a proteção do patrimônio cultural, batizado popularmente como “Lei do Tombamento”.
A norma, com recém-completados 80 anos de vigência, é uma das mais duradouras leis de preservação da história do país, tendo suplantado suas homólogas, como o Código Florestal (Decreto 23.793/1934, revogado em 1965) e o Código de Caça e Pesca (Decreto 23.672/1934, revogado em 1943).
Apesar de o produto final da lei de proteção ao patrimônio cultural ter se materializado em um ato típico do autoritarismo (decreto-lei), ele passou por todo o procedimento democrático que antecede a sanção e promulgação dos projetos de leis, e o seu conteúdo espelhava o resultado de trabalhos aprofundados e sérios de intelectuais e políticos comprometidos com a defesa da cultura brasileira.
Sobre a importância desse diploma legal, afirma Maria Coeli Simões Pires:
"É ele verdadeiro somatório das experiências e contribuições das elites, assimiladas ao longo de uma luta em favor da institucionalização da proteção ao patrimônio histórico, artístico, cultural e paisagístico, além de ter introduzido a prática da limitação dos direitos patrimoniais em função de interesses sociais sem a consequência necessária de indenizar"[5].
Alcançada a conquista normativa, o desafio passou a ser a mudança de cultura do povo brasileiro sobre a conservação de seus bens culturais.
Em 24 de janeiro de 1940, Rodrigo Melo Franco de Andrade declarava em entrevista concedida ao Correio da Manhã, do Rio de Janeiro:
"Filhos de um país novo, cujo descobrimento se deu na era moderna e cuja formação política data de pouco mais de um século, os brasileiros, em geral, não se distinguem pelo culto às relíquias do passado. O sentimento de respeito retrospectivo torna-se mais arraigado entre os povos de longo passado histórico. Já é tempo, entretanto, de considerarmos a beleza moral da história do Brasil, instituindo a defesa dos seus documentos".
No ano de 1942, o Supremo Tribunal Federal, por seu pleno, quando do julgamento da Apelação Cível 7.377, que objetivava a declaração de nulidade do ato de tombamento federal de um prédio situado na Praça Quinze de Novembro, no Rio de Janeiro, teve a oportunidade de apreciar, pela primeira vez, não só a constitucionalidade do Decreto-Lei 25/37, mas também de reconhecer a função social dos bens culturais e o especial regime jurídico a que se submetem, em acórdão célebre relatado pelo ministro Castro Nunes, cuja ementa merece ser transcrita:
"O decreto-lei n. 3.365, de 21 de junho de 1941, lei de desapropriações, contemplando entre as hipóteses que prevê, a preservação dos monumentos históricos, deve ser entendido nos termos da lei especial, ou seja, o decreto-lei n. 25, de 30 de novembro de 1947; a desapropriação dos monumentos históricos tombados compulsoriamente não é obrigatória e sim facultativa, sendo constitucionais as disposições de lei ordinária a respeito.
A legalidade do tombamento dos monumentos históricos pode em cada caso, e deve, ser apreciada pelo Poder Judiciário.
A conservação dos monumentos históricos e objetos artísticos visa um interesse de educação e de cultura; a proibição legal de os mutilar, destruir ou desfigurar está implícita nessa preservação; a obrigação de conservar, que daí resulta para o proprietário, se traduz no dever de colaborar na realização desse interesse público.
É a necessidade ou conveniência da conservação dos monumentos históricos e objetos de arte, que pode não convir ao proprietário, o fundamento da legislação especial a respeito. Existe em tais coisas algo que supera o interesse do dono. Destacar esse interesse público para protegê-lo, ainda que reduzindo as faculdades do proprietário, está ao alcance do legislador ordinário com base na atual constituição.
A propriedade social concretiza uma concepção jurídica aplicada para fundamentar a legalidade da proteção aos monumentos históricos e objetos de arte, indicando a existência de um degrau do desenvolvimento progressivo do direito de propriedade em um sentido cada vez menos individual; diz-se que em tais monumentos e objetos, em poder dos particulares, existem duas partes distintas: a intelectual – ou seja, o pensamento do artista, o ideal que ele encarnou – e a material – isto é, esta mesma forma que lhe serviu para fixar o seu pensamento, o seu ideal. A primeira pertence à sociedade, que a deve proteger; somente a segunda pertence à propriedade privada, gravada de servidão"[6].
Passadas oito décadas de sua vigência, o Decreto-Lei 25/37 pode ser considerado como um dos mais estáveis e importantes diplomas normativos brasileiros voltados à preservação do interesse coletivo, e sua ancianidade não compromete seu alcance e efetividade, pois seus conceitos, regramentos e finalidades são claros, permanecendo atuais.
O alargado período de vigência da Lei do Tombamento permitiu a formação de posicionamentos doutrinários amadurecidos, conquanto não unânimes, sobre seu alcance, além de ter propiciado uma farta produção jurisprudencial que merece ser conhecida e analisada[7].
Mais recentemente, o Superior Tribunal de Justiça tem densificado a aplicabilidade da norma, realçando o dever de proteção ao patrimônio cultural e o alcance protetivo do Decreto-Lei 25/37 em lições que orientam e inspiram os operadores do Direito na correta aplicação do importante instrumento do tombamento, a exemplo dos seguintes excertos:
"Além de rasgar a Constituição e humilhar o Estado de Direito, substituindo-o, com emprego de força ou manobras jurídicas, pela 'Lei da selva', a privatização ilegal de espaços públicos, notadamente de bens tombados ou especialmente protegidos, dilapida o patrimônio da sociedade e compromete o seu gozo pelas gerações futuras. A ocupação, a exploração e o uso de bem público – sobretudo os de interesse ambiental-cultural e, com maior razão, aqueles tombados – só se admitem se contarem com expresso, inequívoco, válido e atual assentimento do Poder Público, exigência inafastável tanto pelo Administrador como pelo Juiz, a qual se mantém incólume, independentemente da ancianidade, finalidade (residencial, comercial ou agrícola) ou grau de interferência nos atributos que justificam sua proteção" (STJ; REsp 808.708; Proc. 2006/0006072-8; RJ; 2ª Turma; rel. min. Herman Benjamin; Julg. 18/8/2009; DJE 4/5/2011).
"A legislação do patrimônio histórico-cultural deve ser interpretada da forma que lhe seja mais favorável e protetora. De acordo com entendimento do STJ, o tombamento do Plano Piloto alcança todo seu conjunto urbanístico e paisagístico. Sem a prévia autorização do Iphan, "não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construções que impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirar o objeto, impondo-se neste caso a multa de cinqüenta por cento do valor do mesmo objeto" (artigo 18 do Decreto-Lei nº 25/1937). O mencionado artigo é claro ao exigir autorização do Iphan para a colocação de anúncios na coisa tombada. Na hipótese dos autos, inexistiu tal anuência, o que basta para tornar ilegal a conduta da recorrente. No campo jurídico do tombamento, o conceito de dano não se restringe ou se resume a simples lesão física (desfiguradora e estrutural) ao bem protegido, pois inclui agressões difusas e até interferências fugazes nele mesmo, no conjunto e no seu entorno (= dano indireto), que arranhem ou alterem os valores globais intangíveis, as características, as funções, a estética e a harmonia, o bucólico ou a visibilidade das suas várias dimensões que justificaram a especial salvaguarda legal e administrativa. In casu, a conduta irregular da empresa foi mais além, por ter acarretado danos à vegetação do local, mormente pela supressão de árvores, em flagrante desrespeito à norma do art. 17, que veda em absoluto a destruição e a mutilação do bem tombado" (STJ; REsp 1.127.633; Proc. 2009/0136547-0; DF; 2ª Turma; rel. min. Herman Benjamin; Julg. 23/3/2010; DJE 28/2/2012).
Hodiernamente, quando o Brasil vivencia um momento de crise de valores e de identidade, imprescindível se faz o resgate e a valorização de nossos referenciais históricos, testemunhos de nossa trajetória de evolução civilizacional, a qual devemos ter o orgulho de preservar para transmiti-los, na plenitude de sua integridade, às gerações que ainda estão por vir.
Por isso, vale a pena conhecer com maior profundidade o Decreto-Lei 25/37 e explorar as suas múltiplas potencialidades como instrumento de preservação do patrimônio cultural do povo brasileiro.
[1] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Tutela do Patrimônio Cultural Brasileiro. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
[2] TELLES, Mário Ferreira de Pragmácio. Entre a lei e as salsichas. Análise dos antecedentes do Decreto-Lei 25/1937. Porto Alegre: Magister. Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico, Vol. 27 – dez/jan-2010.
[3] Defesa do nosso patrimônio artístico e histórico. O Jornal. Rio de Janeiro, 30/10/1936.
[4] MARÉS, Carlos Frederico. A proteção jurídica dos bens culturais. Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política. São Paulo, nº 2. 1993. p. 22.
[5] Da proteção ao patrimônio cultural. Belo Horizonte: Del Rey, 1994. p. 37.
[6] RT 524, p. 785-811.
[7] MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Lei do Tombamento Comentada. Doutrina, jurisprudência e normas complementares. Belo Horizonte: Del Rey, 2014.
é promotor de Justiça em Minas Gerais, coordenador do Grupo de Trabalho sobre Patrimônio Cultural da Rede Latino-Americana do Ministério Público e membro do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos-Brasil).
Fonte: Consultor Jurídico/2017