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García Márquez na eternidade . Rogério Medeiros Garcia de Lima
Descrição
Rogério Medeiros Garcia de Lima/Sobre o autor e outros artigos de sua autoria
(Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais; este artigo foi publicado à revista MagisCultura, Associação dos Magistrados Mineiros, Belo Horizonte-MG, nº 12, setembro 2014, pp. 26-33; e Revista da Academia Mineira de Letras, Belo Horizonte, vol. LXX, 2014, págs. 119-133)
“A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la” (Gabriel García Márquez, Viver para contar).
Faleceu, em 17 de abril de 2014, Gabriel García Márquez.
Jornalista e escritor, o colombiano era um dos ícones do “realismo mágico”, movimento literário muito em voga na América Latina dos anos 1960 a 1980. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1982.
Gabo – apelido pelo qual era conhecido – deixou inumerável legião de leitores, entre os quais me incluo.
Este artigo retrata aspectos da vida e obra deste gigante da literatura mundial.
Quanto aos livros, selecionei “Cem anos de solidão”, “O amor nos tempos do cólera” e “Viver para contar” (memórias), a fim de ilustrar minimamente a fecunda produção do genial autor.
Os limites de espaço desta publicação não permitem ir além. Contudo, espero contribuir para despertar nos leitores o interesse ou a revivescência da criação literária do nosso protagonista.
García Márquez
Gabriel José García Márquez nasceu em 6 de março de 1927 na aldeia de Aracataca, Colômbia, não muito distante da cidade de Barranquilla.
O pai - homem de onze filhos - tinha uma pequena farmácia homeopática. O avô materno, veterano da Guerra dos Mil Dias, contava histórias que encantavam o menino. Costumava levá-lo ao circo. Às vezes se detinha na rua, como se sentisse uma pontada. Com um sussurro, inclinava-se para o neto e dizia: “Ay no sabes cuánto pesa um muerto!”. Referia-se a um homem que matara.
Gabo tinha oito anos quando o avô morreu. “Desde então não me aconteceu nada de interessante”, afirmou.
A família deixou Aracataca - a Macondo de seus livros - devido à crise na plantação bananeira.
Gabriel estudou em Barranquilla e no Liceu Nacional de Zipaquirá. Cursou Direito, em Bogotá, entre 1947 e 1948. Nessa época publicou seu primeiro conto.
Como jornalista trabalhou em Cartagena, Barranquilla e, depois, no “El Espectador”, de Bogotá, onde se notabilizou pelas reportagens e críticas de cinema.
Em 1955, venceu um concurso nacional de contos. Participou, como enviado especial do jornal onde trabalhava, da Conferência dos Quatro Grandes, em Genebra.
Estudou no Centro Experimental de Cinema, em Roma. Fez uma viagem de três meses aos países socialistas. Radicou-se posteriormente em Paris.
Voltou à Colômbia para se casar, em 1956. Mais tarde trabalhou como jornalista em Caracas. Em 1960 foi para Nova York, como representante da agência cubana Prensa Latina junto às Nações Unidas. Morou, a seguir, no México e em Barcelona.
Márquez iniciou a carreira literária com a publicação de contos, nos quais já estava presente o mundo fantástico que caracteriza toda a sua obra.
Na Cidade do México – para onde se mudara em 1961 - publicou o primeiro livro de ficção, “Ninguém Escreve ao Coronel”. Em 1967, foi lançado o seu romance mais conhecido e consagrado, “Cem Anos de Solidão”.
Era autor de “Crônica de uma Morte Anunciada” (1981), “O Amor nos Tempos do Cólera” (1985), “O General em Seu Labirinto” (1989) e “Notícias de um Sequestro” (1996), entre outros livros de ficção, memórias e reportagens.
Como influências importantes em sua atividade literária, do ponto de vista técnico, García Márquez apontava Virgínia Woolf, Faulkner, Kafka e Hemingway. E acrescentava: “Do ponto de vista literário, ‘As mil e Uma Noites’, o primeiro livro que li, aos sete anos, Sófocles e meus avós maternos”.
O escritor faleceu em sua casa, no México, no dia 17 de abril de 2014 (MÁRQUEZ, Cem anos de solidão, nota biográfica, e Biografia de Gabriel García Márquez, portal Uol, 03.05.2014).
O jornalismo
Segundo Sylvia Colombo (Folha de São Paulo, 18.04.2014), Gabriel García Márquez, a partir do fim dos anos 1940, trabalhou em jornais de Barranquilla, Cartagena e, depois, no “El Espectador”, de Bogotá. Definiu-se até o fim da vida como jornalista, profissão que considerava a “melhor do mundo”.
Além da extensa obra jornalística, que vai de críticas de cinema a relatos de crimes, Gabo escreveu dois livros essenciais do gênero reportagem: “Relato de um Náufrago” (1955, crônicas baseadas em entrevistas com Luis Alejandro Velasco, jovem marinheiro que sobreviveu a um naufrágio), e “Notícia de um Sequestro” (1996, sobre o cartel de Medellín e o líder do narcotráfico Pablo Escobar).
A política
Nos anos 1940, García Márquez foi estudar em rigoroso colégio da conservadora Bogotá, capital colombiana. Nessa ocasião, despertaram nele os primeiros sinais de revolta contra o “establishment”, que o tornariam um obstinado esquerdista (Sylvia Colombo, Folha de São Paulo, 18.04.2014).
Clóvis Rossi comentou a amizade e admiração do escritor por Fidel Castro, em virtude do que sua biografia ficou marcada pelo rótulo de esquerdista e admirador do marxismo (Folha de São Paulo, 18.04.2014):
“Os elogios que Gabo dirigiu a Fidel são de deslumbramento absoluto. ‘Um homem de costumes austeros, mas de ilusões insaciáveis’ é apenas um exemplo. Outro: ‘Tem a convicção quase mística de que a maior conquista do ser humano é a boa formação da consciência e de que os estímulos morais, mais que os materiais, são capazes de mudar o mundo e impulsionar a história’.
“Ou, mais ainda: Fidel Castro ‘é a inspiração, o estado de graça irresistível e deslumbrante, que só nega os que não tiveram a glória de tê-lo visto’.
“Castro devolvia a admiração, a ponto de ter dito, certa vez, que, numa próxima encarnação, gostaria de voltar como escritor – ‘e um escritor como Gabriel García Márquez’”.
Rossi ressalvou, contudo, que Márquez convivia bem com outros mandatário não marxistas:
“Colaborou com diferentes presidentes colombianos, conservadores ou liberais, nos diferentes processos de paz tentados no seu país de origem.
“Ele próprio se definia como ‘um conspirador pela paz’”.
Todavia, o jornalista e escritor colombiano Eduardo Mackenzie foi implacável (portal Mídia Sem Máscara, 21.04.2014):
“A torrente de elogios que Gabriel García Márquez recebe de maneira póstuma, horas depois de sua morte no México, não é imerecida quando se pensa no formidável homem de letras que ele era. Entretanto, o prêmio Nobel de literatura foi também um ativista que aderiu a teses políticas repudiáveis que o levaram a cometer erros cujos efeitos recaíram sobre sua pátria e seus compatriotas. Esse aspecto de sua vida trata de ser convertido por alguns em um tabu acerca do qual está proibido discutir. Nademos, pois, contra a corrente, para que a liberdade de pensamento não seja sepultada pelo peso esmagador de alguns elogios a um homem que dizia lutar pela liberdade, ao mesmo tempo em que defendia a ditadura mais liberticida que o continente americano tenha conhecido”.
Rompimento com Mario Vargas Llosa
O escritor peruano Mario Vargas Llosa, laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 2010 e outro ícone do “Realismo Mágico” latino-americano, era esquerdista na juventude.
Porém, após frequentar, em 1980, o Woodrow Wilson Center, Washington (EUA), leu “The Road to Serfdom”, de Friedrich Hayek. Neste livro de filosofia política, Llosa descobriu a ideologia liberal, base do seu pensamento durante a década de 1980. Ao ler também, entre outros, o economista Milton Friedman, encontrou uma maneira de conceber a economia política distinta das fórmulas marxistas e neomarxistas. Era o início da sua conversão ao que muitos escritores latino-americanos chamaram de “a coisa neoliberal” (WILLIAMS, 2003:29-30).
Antes disso, Vargas Llosa desferira um soco certeiro em García Márquez, que ficou com o olho esquerdo roxo. A briga ocorreu em 1976, durante encontro de escritores no México. Pôs fim a uma amizade de mais de uma década. O motivo da discórdia é ignorado.
Uma versão corrente, no entanto, aponta que Gabo teria sugerido a Patricia Llosa a separação de Mario, por uma suposta infidelidade do marido. Outra versão assegura que Patricia, para se vingar do esposo, insinuou-lhe um relacionamento dela com Márquez.
O escritor peruano afirmou que o motivo da desavença vai para o túmulo com os envolvidos: “É um pacto entre García Márquez e eu. Ele respeitou isso até a sua morte e vou fazer o mesmo”.
Apesar da rusga, Llosa lamentou a morte de Gabo e assinalou ter acontecido com ele o que todo escritor gostaria que acontecesse: “Que sua obra sobreviva” (Folha de São Paulo, 24.04.2014).
Realismo mágico
Otto Maria Carpeaux escrevia sobre o “Realismo Mágico”:
“A primeira descoberta dos ‘mágicos’ foi a de esquecidos extratos de consciência e até de religiões esquecidas debaixo da superfície civilizada, sobretudo em populações rurais de regiões atrasadas e menos acessíveis. Quase ao mesmo tempo a bruxaria e outras superstições foram identificadas como resíduos de religiões pré-cristãs. (...)
“Mentalidade semelhante, mas muito atenuada, inspira os romances de Giono, que descobriu na Provença os encantos heroicos da Odisseia. (...)
“As superstições da gente mediterrânea também povoam os contos e romances do italiano Enrico Pea. (...)
“Supertições populares e esquecidos ritos mágicos também aparecem nos romances rústicos da inglesa Mary Webb. (...)
“O fino crítico Momigliano observou logo a diferença: os movimentos quase hieráticos, a atmosfera onírica, a irrealidade fantástica dessa realidade tão fielmente observada”.
Na América Latina, o escritor argentino Jorge Luis Borges foi o precursor da corrente “realismo mágico”. Seu livro Labyrinths foi a pedra de toque da literatura latino-americana, na década de 1960:
“Esta expresión fue acuñada por Franz Roh para designar las pinturas alemanas de la ‘Neue Sachlichkeit’ (Nueva Objetividad). El escrito cubano Alejo Carpentier se apropió luego de ella y a mediados del decenio de 1940 la rebautizó como ‘lo real maraviloso’. La aplicó a los singulares escritos de una serie de autores latinoamericanos; las obras de ficción de estos reflejaban la historia turbulenta e fantástica de su continente. Para los europeos, esta literatura parecia romper las fronteras del realismo narrativo y proclamar una nueva visión de la realidad.
“Borges era ciertamente extraño, fantástico e nuevo. Pero también era argentina, y la expresión de Carpentier fue entregada al consumo internacional; el realismo mágico, una especie de fórmula académica, pronto llegó a designar un género dentro de una corriente literaria. (...) Cuando en 1967 García Márquez publicó ‘Cien años de soledad’, pareció que el realismo mágico había encontrado su verdadero producto ejemplar. García Márquez era un escritor de sensualidad tropical, de violento alcance imaginativo, que celebraba el Caribe; su estilo jugoso, sabroso y los abundantes artifícios y malabarismos de ficción respondían ampliamente a lo que sugeria Carpentier sobre un exuberante antinaturalismo” (WOODALL, 1999:31).
Ao escrever sobre “Cem Anos de Solidão”, Vargas Llosa (2011:375) enalteceu a imaginação desenfreada de García Márquez: sua cavalgada pelos reinos do delírio, a alucinação e o insólito, levaram-no a construir castelos no ar. Estava profundamente ancorado na realidade da América Latina.
O Prêmio Nobel
Gabriel García Márquez recebeu o prêmio Nobel de Literatura em 1982. Na ocasião, proferiu inesquecível discurso. Segundo o seu tradutor brasileiro Eric Nepomuceno (MÁRQUEZ, 2011, apresentação), García Márquez era um “encantador de plateias”:
“Os discursos do ganhador do Prêmio Nobel nos ajudam a compreender mais profundamente a vida dele e nos revelam suas maiores obsessões como escritor e cidadão: a fervorosa vocação para a literatura, sua polêmica proposta de simplificar a gramática, a paixão pelo jornalismo, os problemas da Colômbia e a lembrança emocionada de amigos escritores como Julio Cortázar e Álvaro Mutis, entre muitos outros”.
Em A solidão da América Latina (Estocolmo, Suécia, em 8 de dezembro de 1982), o premiado escritor colombiano assim encerrava sua locução (MÁRQUEZ, 2001:28):
“Num dia como o de hoje, meu mestre William Faulkner disse neste mesmo lugar: ‘Eu me nego a admitir o fim do homem.’ Não me sentiria digno de ocupar este lugar que foi dele se não tivesse a consciência plena de que, pela primeira vez desde as origens da humanidade, o desastre colossal que ele se negava a admitir há quase 32 anos é, hoje, nada mais que a simples possibilidade científica. Diante desta realidade assombrosa, que através de todo o temo humano deve ter parecido uma utopia, nós, os inventores de fábulas que acreditamos em tudo, nos sentimos no direito de acreditar que ainda não é demasiado tarde para nos lançarmos na criação da utopia contrária. Uma nova e arrasadora utopia da vida, onde ninguém possa decidir pelos outros até mesmo a forma de morrer, onde de verdade seja certo o amor e seja possível a felicidade, e onde as estirpes condenadas a cem anos de solidão tenham, enfim e para sempre, uma segunda oportunidade sobre a terra”.
“Cem anos de solidão”
Considerado a obra-prima de Gabriel García Márquez, “Cem anos de solidão” foi publicado em 1967. Principalmente por esta obra, o escritor foi laureado com o Prêmio Nobel de Literatura.
O livro narra a incrível e triste história do clã dos Buendía, uma estirpe de solitários para a qual não será dada uma segunda oportunidade sobre a terra. A saga dos Buendía se desenrola em anos de guerra e decadência, na fictícia cidade de Macondo:
“O pano de fundo é uma Colômbia cindida pelo enfrentamento histórico e sangrento entre conservadores e liberais, que remonta ao século 19 e que persiste até os dias de hoje, dando atualidade ao livro.
“Também é possível interpretá-lo como uma metáfora do isolamento e da desesperança da América Latina na primeira metade do século 20.
“A sensação de repetição e ao mesmo tempo a quantidade imensa de personagens confundem, mas vão construindo uma sensação de catástrofe, fecho inescapável da saga.
“O livro é influenciado por fatos e personagens que fizeram parte dos primeiros anos da vida de Gabo” (Sylvia Colombo, Obra máxima narra catástrofe inescapável, Folha de São Paulo, 18.04.2014).
Para Vargas Llosa (2011:377-378) todos os personagens do romance ostentam uma marca fatídica, a solidão:
“Todos ellos luchan, aman, se juegan enteros en empresas descabelladas o admirables. El resultado es siempre el mismo: la frustración, la infelicidad. Todos son, tarde o temprano, burlados, humillados, vencidos en las acciones que acometen. Desde el fundador de la dinastía, que nunca encuentra el camino del mar, hasta el último Buendía, que vuela com Macondo, arrebatado por el viento. (...)
“Como cualquiera los Buendía, los hombres nacen en América, hoy dia condenados a vivir en soledad, y a engendrar hijos con colas de cerdo, es decir monstruos de vida inhumana e irrisoria, que morirán sín realizarse plenamente, cumpliendo un destino que no ha sido elegido por ellos”.
Dentre tantas outras magníficas passagens da obra, selecionei as que mais me marcaram:
“Entraram no quarto de José Arcadio Buendía, sacudiram-no com toda a força, gritaram-lhe ao ouvido, puseram um espelho diante das fossas nasais, mas não puderam despertá-lo. Pouco depois, quando o carpinteiro tomava as medidas para o ataúde, viram pela janela que estava caindo uma chuvinha de minúsculas flores amarelas. Caíram por toda a noite sobre o povoado, numa tempestade silenciosa, e cobriram os tetos e taparam as portas, e sufocaram os animais que dormiam ao relento. Tantas flores caíram do céu que as ruas amanheceram atapetadas por uma colcha compacta, e eles tiveram que abrir caminho com pás e ancinhos para que o enterro pudesse passar” (sobre a morte de José Arcádio Buendía).
“Extraviado na solidão do seu imenso poder, começou a perder o rumo. Incomodava-o o povo que o aclamava nas aldeias vencidas, e que lhe parecia o mesmo que aclamava o inimigo. Em toda parte encontrava adolescentes que o olhavam com os próprios olhos, que falavam com a sua própria voz, que o cumprimentavam com a mesma desconfiança com que ele os cumprimentava, e que diziam ser seus filhos. Sentiu-se jogado, repelido e mais solitário do que nunca. Teve a certeza de que seus próprios oficias lhe mentiam” (sobre a solidão de Aureliano Buendía).
“O Coronel Aureliano Buendía compreendeu de leve que o segredo de uma boa velhice não é outra coisa senão um pacto honrado com a solidão. (...)
“Alguém se atreveu, certa vez, a perturbar a sua solidão.
“- Como vai, coronel? – disse ao passar.
“- Aqui firme – ele respondeu. – Esperando o meu enterro passar” (idem).
“Estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilonia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra” (frase final do livro).
“O amor nos tempos do cólera”
Fala-se que Márquez considerava “O amor nos tempos do cólera” o seu melhor romance. De todos os livros do colombiano, é também o de que mais gosto.
Na mesma linha do “Realismo Mágico”, o romance se inspira na relação amorosa dos pais do escritor. O casal enfrentou a resistência da família da noiva à união e a distância física.
O livro narra o namoro não consumado entre o telegrafista Florentino Ariza e a bela Fermina Daza. A relação contrariava o pai da moça. Ela acabou se casando com o médico Juvenal Urbino, que voltava de uma jornada de estudos na Europa.
Florentino esperou 54 anos, 7 meses e 11 dias para se reaproximar de Fermina, após a insólita morte de Juvenal. O finado tentava resgatar o papagaio de estimação, que fugira da gaiola, no alto de uma árvore da mansão onde o casal vivia. Sofreu uma queda fatal.
O enredo se desenvolve na época em que a cólera era uma epidemia disseminada na Colômbia.
Márquez escreveu que Florentino tinha a “firme determinação dos amores contrariados”.
Pincei algumas frases marcantes do romance:
“Depois de cinquenta e quatro anos, sete meses, onze dias e noites, meu coração finalmente se realizou. E eu descobri, para minha alegria, que é a vida e não a morte que não tem limites”.
“Não sou nada. Não me curarei nunca na vida. Fui atingido pelo raio do amor e me queimei além de qualquer cura. Ela é uma farpa que não pode ser retirada. Ela é parte de mim, onde quer que eu vá. Ela está em todas as partes”.
“Então os piores anos da minha vida passaram. Contei os eternos minutos um a um, enquanto esperava pela sua volta. Mas não me importo. Ficarei de vigília por toda a eternidade. Ficarei de vigília até morrer, se for preciso”.
“Não há maior glória do que morrer por amor”.
“Pode-se estar apaixonado por várias pessoas ao mesmo tempo, por todas com a mesma dor, sem trair nenhuma. Solitário entre a multidão do cais, dissera a si mesmo com um toque de raiva: o coração tem mais quartos que uma pensão de putas”.
E finalmente a lapidar passagem do regresso do jovem médico Juvenal Urbino, no navio que o trazia da Europa, prestes a atracar em porto colombiano. Guardava consigo as boas lembranças do país natal. Entretanto, à medida que observava do convés as águas poluídas e infestadas de vibriões coléricos, reavivavam-lhe as mazelas ocultadas na mente durante a temporada europeia:
“Mas era ainda jovem demais para saber que a memória do coração elimina as más lembranças e enaltece as boas e que graças a esse artifício conseguimos suportar o passado”.
Viver para contar
Viver para contar (2003) contém parte das memórias de Gabriel García Márquez, da infância até sua iniciação como jornalista e escritor. Encerra-se a narrativa com a primeira viagem do colombiano à Europa.
Em epígrafe, elaborou frase lapidar:
“A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”.
Narra a viagem que fez com a mãe a Aracataca, para vender o casarão da família. Já se iniciara no jornalismo e admirava a paisagem no barco que os transportava:
“Com os cotovelos na balaustrada do convés, tentando adivinhar o perfil da serra, fui surpreendido de repente pela primeira lanhada da nostalgia”.
Depois apanharam o trem até Aracataca:
“Em comparação com o que tinha sido em outros tempos, não apenas aquele vagão, mas o trem inteiro era um fantasma de si mesmo”.
Passaram pela única fazenda bananeira do caminho, com o nome “Macondo” escrito no portal. Desde menino achava que esta palavra tinha “ressonância poética”. Segundo a Enciclopédia Britânica, em Tanganica existe a etnia errante dos “makondos”.
Em Aracataca, o médico amigo observou sobre o esvaziamento da cidade:
“De noite é pior, porque dá para sentir que os mortos andam soltos pela rua”.
Márquez recordou “a oficina de ourivesaria onde meu avô passava suas melhores horas fabricando os peixinhos de ouro de corpo articulado e minúsculos olhos de esmeraldas, que davam a ele mais prazer do que dinheiro”.
Lembrou as matanças, nas brigas de sábado, após o pagamento dos empregados das companhias bananeiras:
“Numa tarde qualquer ouvimos gritos na rua e vimos um homem sem cabeça montado em um burro”.
Falou sobre o namoro dos pais, história de “amores contrariados”, porque a família materna fazia oposição:
“Decidi usar essa memória em ‘O amor nos tempos do cólera’, eu, mesmo passado de meus cinquenta anos, não consegui distinguir os limites entre a vida e a poesia”.
E concluía:
“Era esse o estado do mundo quando comecei a tomar consciência de meu âmbito familiar e não consigo evocá-lo de outro modo: pesares, saudades, incertezas, na solidão de uma casa imensa”.
Relembrou a queda do avô, que inspirou o episódio da morte de Juvenal Urbino, no mesmo romance:
“Por puro milagre não morreu certa manhã em que tentou apanhar o papagaio cegueta que tinha trepado nos tonéis. Tinha conseguido agarrá-lo pelo pescoço quando escorregou na passarela e caiu no chão, de uns quatro metros de altura. Ninguém conseguiu entender, e muito menos explicar, como conseguiu sobreviver com seus noventa quilos e seus cinquenta e tantos anos. Aquele foi para mim o dia memorável em que o médico examinou-o nu na cama, palmo a palmo, e perguntou a ele o que era uma velha cicatriz de meio polegada que descobriu em sua virilha:
“ – Foi um tiro na guerra – disse meu avô”.
Ainda sobre o avô:
“Meu avô só fazia peixinhos de vez em quando, ou quando preparava um presente de casamento. (...)
“Não consigo imaginar um meio familiar mais propício para a minha vocação que aquela casa lunática, em especial pelo caráter das numerosas mulheres que me criaram”.
O homem em busca de si mesmo
Impressionante passagem das memórias Viver para contar (2003) fixa a imagem derradeira de Gabriel García Márquez.
Antes de ficar famoso, Gabo morava em uma república de rapazes. Alguns anos após, preparava-se para passar sua primeira temporada em Paris. Já se tornara nacionalmente conhecido como jornalista de talento.
Márquez estava na estação rodoviária de Cartagena e encontrou-se com Lácides, porteiro do edifício onde ficava a república em que vivera no passado recente:
“Atirou-se em cima de mim com um abraço de verdade e os olhos em lágrimas, sem saber o que dizer nem como me tratar. No final de uma atropelada troca de palavras, porque seu ônibus chegava e o meu saía, me disse com um fervor que me bateu na alma:
“- O que eu não entendo, dom Gabriel, é porque o senhor nunca me disse quem era.
“- Ah, meu caro Lácides – respondi, mais dolorido que ele -, eu não podia dizer porque até hoje nem eu mesmo sei quem sou”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CARPEAUX, Otto Maria. Tendências Contemporâneas na Literatura. Rio de Janeiro: Ediouro, sem data.
COLOMBO, Sylvia. Cidade natal inspirou a Macondo mágica de “Cem Anos de Solidão”, jornal Folha de São Paulo, 18.04.2014, caderno Mundo.
________________. Obra máxima narra catástrofe inescapável, jornal Folha de São Paulo, edição de 18.04.2014, caderno Mundo.
________________. Vargas Llosa fala de Euclides da Cunha e enfrenta leitor que rasga livro, portal Folha de São Paulo, disponível em http://tools.folha.com.br/print?site=emcimadahora&url=http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/05/1448192-vargas-llosa-fala-de-euclides-da-cunha-e-enfrenta-leitor-que-rasga-livro.shtml, 01.05.2014.
LLOSA, Mario Vargas. Sables y utopías: visiones de América Latina. Madri: Santillana Ediciones Generales, 2011.
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MÁRQUEZ, Gabriel García. Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: Record, trad. Eliane Zagury, 21ª ed.,sem data.
____________________. Eu não vim fazer um discurso. Rio de Janeiro: Record, trad. Eric Nepomuceno, 2ª ed., 2011.
____________________. O amor nos tempos do cólera. Rio de Janeiro: Record, trad. Antonio Callado, 1985.
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Razão de briga com García Márquez 'vai para o túmulo', diz Vargas Llosa, portal Folha de São Paulo, disponível em http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/04/1445067-razao-de-briga-com-garcia-marquez-vai-para-o-tumulo-diz-vargas-llosa.shtml, 24.04.2014.
ROSSI, Clovis. Admiração por Fidel origina fama imprecisa de esquerdista, jornal Folha de São Paulo, 18.04.2014, caderno Mundo.
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WOODALL, James. La vida de Jorge Luis Borges. Barcelona: Editorial Gedisa, trad. Alberto L. Bixio, 1999.