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Tipo: Artigos / Cartilhas / Livros / Teses e Monografias / Pesquisas / Personagens Urbanos / Diversos

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Marechal Ciro . Rogério Medeiros Garcia de Lima

Descrição

Rogério Medeiros Garcia de Lima/Sobre o autor e outros artigos de sua autoria

São-joanense. Desembargador do TJMG. Artigo publicado pelo jornal O Raio, São João del-Rei, nº 241, 17.01.2020, p. 1-3.

Na Roma Antiga, era comum um novo imperador destruir as obras legadas pelo seu antecessor. Essa prática era chamada damnatio memoriae: eliminava os vestígios das realizações do imperador substituído.

No século 20, o ditador comunista soviético Josef Stalin mandava adulterar fotografias para eliminar a memória dos seus rivais. A mais famosa adulteração foi de uma foto de 1920, na qual o líder revolucionário russo Vladimir Lenin discursava em frente ao Teatro Bolshoi. Após a morte do líder, Stalin ocupou o poder e mandou apagar a imagem do rival Leon Trotsky, que aparecia nos degraus do palanque. (1)

Recordo essas deploráveis práticas para registrar a minha tristeza ao verificar que o busto do Marechal Ciro do Espírito Santo Cardoso não se encontra mais no lugar de destaque onde fora assentado, à entrada do prédio principal do campus Santo Antônio da Universidade Federal de São João del-Rei.

O saudoso marechal foi o grande e visionário idealizador da implantação de uma universidade na nossa histórica cidade.

Ciro do Espírito Santo Cardoso nasceu no dia 24 de agosto de 1898, em Lapa (PR), filho de Augusto Inácio do Espírito Santo Cardoso e de Ana Fernandes Cardoso.

Concluiu, em 1918, o curso da Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro. Em julho de 1922, já como instrutor da escola, participou do levante tenentista. Foi preso e condenado a um ano e quatro meses de reclusão. Sua carreira militar somente foi retomada após a vitória da Revolução de 1930, com a anistia concedida em novembro daquele ano.

Exerceu funções e comandos de destaque. A convite do presidente Getúlio Vargas, assumiu, em janeiro de 1951, a chefia do Gabinete Militar da Presidência da República. No final de março de 1952, foi nomeado Ministro da Guerra. Passou à reserva em julho de 1959.

Faleceu em Belo Horizonte no dia 31 de agosto de 1979 (Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro pós 1930. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2ª ed., 2001).

Marechal Ciro era primo do pai do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, também militar.

Já tive oportunidade de escrever:

“O atual 11º Batalhão de Infantaria de Montanha, Regimento Tiradentes, é parte inapagável da história tricentenária de São João del-Rei. Inúmeros são-joanenses, ao longo de anos, engajaram-se na carreira do Exército Brasileiro. Vários oficiais e praças, ao mesmo tempo, aqui serviram e criaram laços inquebrantáveis com nossa cidade. Há uma perfeita simbiose entre a comunidade e a unidade militar. Para exemplificar, cito o casamento do General Mozart Dornelles com D. Mariana, irmã do presidente Tancredo de Almeida Neves.

“Igualmente, o Marechal Ciro do Espírito Santo Cardoso contraiu núpcias com a são-joanense D. Ritinha.

“O saudoso marechal, ex-ministro da Guerra de Getúlio Vargas, escolheu a terra da esposa para viver seus últimos dias. Lutou incansavelmente para criar a Fundação de Ensino Superior de São João del-Rei, embrião da hoje muito bem qualificada Universidade Federal de São João del-Rei”. (2)

Tenho uma cópia da carta aos são-joanenses, datada de 20 de maio de 1971 e assinada pelo Frei Geraldo de Rouver OFM, diretor do antigo Ginásio Santo Antônio.

Ele comunica que os sacerdotes franciscanos, por não terem condições de manter o prédio onde funcionava o famoso Ginásio, doaram o imóvel, com área total de 42.600 metros quadrados, ao Estado de Minas Gerais (Lei Estadual no 5.193, de 29 de maio de 1969). A carta noticia o encaminhamento à Assembleia Legislativa de Minas Gerais do Projeto de Lei no 130, de 1971, autorizando o Poder Executivo estadual a doar o referido imóvel à Fundação Universitária de São João del-Rei.

À frente das tratativas estava o Marechal Ciro do Espírito Santo Cardoso, presidente daquela Fundação Universitária.

O plano original previa a instalação, no prédio doado, de um colégio estadual e da Faculdade de Medicina, que seria criada pela Fundação mencionada.

Assim, a história da atual Universidade Federal de São João del-Rei se inicia com a junção da antiga Faculdade Dom Bosco de Filosofia, Ciências e Letras – criada em 1953 – com as Faculdades de Ciências Econômicas, Administrativas e Contábeis – FACEAC e de Engenharia Industrial – FAEIN, mantidas pela Fundação Municipal de São João del-Rei e instaladas em 1972.

A federalização se deu mediante a Lei Federal nº 7.555, de 28 de dezembro de 1986, que autorizou a criação da Fundação de Ensino Superior de São João del-Rei (FUNREI).

A FUNREI foi transformada em universidade pela Lei Federal nº 10.425, de 19 de abril de 2002, passando a se chamar Universidade Federal de São João del-Rei.

Possui hoje as seguintes unidades: Campus Alto Paraopeba (CAP) - Ouro Branco (cedido em comodato pela Gerdau desde 2007); Campus Centro-Oeste Dona Lindu (CCO) - Divinópolis (doado pela prefeitura de Divinópolis em 2007); Campus Dom Bosco (CDB) - São João del-Rei (abrigava a Faculdade Dom Bosco); Campus Santo Antônio (CSA) - São João del-Rei (sede) (abrigava a Fundação Municipal de São João del-Rei); Campus Sete Lagoas (CSL) - Sete Lagoas (cedido em comodato pela EMBRAPA, em 2008); Campus Tancredo de Almeida Neves (CTan) - São João del-Rei (cedido em comodato pelo município de São João del-Rei, em 2004); Fortim dos Emboabas - São João del-Rei (em fase de doação desde 2009, parte do inventário do Almirante Max Justo Guedes); Solar da Baronesa (Centro Cultural da UFSJ) - São João del-Rei (adquirido em 1995); Centro de Referência Musicológica José Maria Neves (CEREM) - São João del-Rei (incorporado à UFSJ em 2012); Fazenda Experimental Boa Esperança - Distrito de São Miguel do Cajuru, São João del-Rei (adquirida em 2014); e Fazenda Experimental Granja Manoa - Jequitibá (adquirida em 2014).

No ano de 1981, se não me falha a memória, eu assisti à solenidade em que foi inaugurado o busto do Marechal Ciro, à entrada principal do prédio do antigo Ginásio Santo Antônio. Ali já funcionava a Fundação Municipal de São João del-Rei. Estava presente toda a cúpula dirigente da instituição.

O então senador Tancredo de Almeida Neves proferiu um belo e emocionado discurso de improviso, o qual ainda trago gravado na lembrança.

Destacou em Ciro do Espírito Santo Cardoso o cidadão, o militar, o estadista e o educador.

O cidadão exemplar era o pai de família, amigo e atuante na vida comunitária. O militar era altivo e destemido. O estadista foi o Ministro da Guerra durante grave crise política por que passava o governo de Getúlio Vargas. Foi educador, nos seus anos derradeiros em São João del-Rei, terra adotiva, onde atuou decisivamente para a criação de uma instituição de ensino superior.

Ao fim do discurso, Doutor Tancredo evocava Thomas Jefferson, um dos pais fundadores dos Estados Unidos e notável ex-presidente daquele grande país. Tendo exercido a mais alta magistratura da nação, Jefferson, no entanto, redigiu assim o próprio epitáfio:

“Aqui jaz Thomas Jefferson, autor da declaração da independência americana, da lei da liberdade religiosa da Virgínia e pai da Universidade da Virgínia”.

O saudoso Marechal Ciro – encerrava o inigualável orador – foi um militar e estadista de grande porte, mas também poderíamos lhe dedicar um epitáfio semelhante ao de Thomas Jefferson:

“Aqui jaz Ciro do Espírito Santo Cardoso, criador da Universidade de São João del-Rei”.

Por ocasião das comemorações do centenário de nascimento do presidente Tancredo de Almeida Neves, em São João del-Rei, no dia 4 de março de 2010, o ex-presidente José Sarney assinalava:

“Tancredo foi o grande herói nacional, o maior de todos os políticos brasileiros dos tempos contemporâneos”.

José Sarney, que era vice-presidente eleito e assumiu a presidência com a doença e morte de Tancredo, possuía uma cópia de um discurso do falecido presidente, onde ele revelava o grande sonho de construir um núcleo de educação e formação dos jovens da sua terra natal.

O então deputado federal Aécio Neves, neto de Tancredo, apresentou ao Congresso Nacional o projeto de lei que resultou na federalização da Fundação de Ensino Superior de São João del-Rei, após a sanção do presidente Sarney. (3)

Esse cuidado com a terra natal Tancredo Neves já revelava desde o início de sua carreira política. Como deputado estadual, apresentou emenda à Constituição Mineira de 1946, da qual resultou a construção da usina hidrelétrica de Itutinga. Foi movido pelas lembranças do passado de estudante e leitor voraz. Frequentemente as leituras noturnas eram interrompidas pela falta de energia na cidade. Ele mesmo confessava:

“Isso é que me levou a entrar na política e só por isto eu estou na política até hoje. Foi para tirar a minha terra das escuras, da escuridão em que ela vivia”. (4)

Tancredo, além do mais, tinha o signo dos inconfidentes de 1789 e a fibra do conterrâneo Joaquim José da Silva Xavier, protomártir da Inconfidência Mineira. Após a sua eleição para presidente da República, em 15 de janeiro de 1985, discursava:

“Não vamos nos dispersar. Continuemos reunidos, como nas praças públicas, com a mesma emoção, a mesma dignidade e a mesma decisão.

“Se todos quisermos dizia-nos, há quase duzentos anos, Tiradentes, aquele herói enlouquecido de esperança, podemos fazer deste País uma grande Nação.

“Vamos fazê-la”. (5)

O historiador Oiliam José destaca, entre os planos dos inconfidentes do século 18, a “transferência da capital para São João del-Rei (...) e criação de Universidade em Vila Rica”. (6)

Em tempos de “modernidade líquida” – expressão criada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman - “nada é feito para durar, para ser sólido”. (7)

Estamos na “era da pós-verdade”, na qual os fatos objetivos influem menos na formação da opinião pública do que as emoções e crenças pessoais. (8)

A Universidade Federal de São João del-Rei é uma obra construída ao longo de pouco mais de três décadas, por muitos e louváveis autores.

No entanto, nada justifica que o busto do Marechal Ciro não esteja no lugar de destaque que lhe pertence, por glória e méritos.

Falando da sua pátria, a Itália, o filósofo Norberto Bobbio assinalava a importância de cada cidadão se reconhecer nos monumentos históricos:

“Acredito que possamos nos reconhecer também nas praças, nas ruas, nos edifícios públicos, nos monumentos que em tantas de nossas cidades recordam experiências de liberdade e de autogoverno, ou de luta para conquistar a liberdade. Palazzo Vecchio, em Florença, Piazza del Campo, em Siena, com o seu Palazzo Pubblico, os monumentos a Garibaldi e a Mazzini, as pequenas lápides que recordam os mártires da Resistência, têm par mim um significado profundo. Evocam uma Itália forte e digna”. (9)

Sem conferir ao Marechal Ciro o seu devido lugar na história de São João del-Rei, faremos dela uma história menor. Faremos de nós mesmos um povo menor.

Isso é mesmo muito triste.

NOTAS BIBLIOGRÁFICAS

1 - Apagados da História: a fotomanipulação da Era Stalin, Portal Aventuras na História, disponível em https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/galeria/foto-manipulacao-stalin.phtml, acesso em 09.12.2019.

2 – GARCIA DE LIMA, Rogério Medeiros. Regimento Tiradentes, jornal Gazeta de São João del-Rei, 10.05.2014, p. 4.

3 - Portal Senado Notícias, disponível em https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2010/03/04/sarney-lembra-em-sao-joao-del-rei-legado-de-tancredo-para-a-democracia, acesso em 04.03.2010.

4 - SILVA, Vera Alice Cardoso da e DELGADO, Lucília de Almeida Neves. Tancredo Neves: A Trajetória de um Liberal. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 117.

5 - DELGADO, Lucília de Almeida Neves (organizadora). Tancredo Neves: sua palavra na história. Belo Horizonte: Fundação Tancredo Neves, 1988.

6 - JOSÉ, Oiliam. Tiradentes. Belo Horizonte/MG: Imprensa Oficial, 1974, p. 76.

7 - PRADO, Adriana. Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar, 2010, Revista Isto É, disponível em https://istoe.com.br/102755, acesso em 30.09.2019.

8 - RUIZ, José Carlos. El arte de pensar: cómo los grandes filósofos pueden estimular nuestro pensamiento crítico. Córdoba, España: Editorial Almuzara, 2019, p 105-108.

9 - BOBBIO, Norberto e VIROLI, Maurizio. Diálogo em torno da república: os grandes temas da política e da cidadania. Rio de Janeiro: Campus, trad. Daniela Beccaccia Versiani, 2002, p. 27.

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