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Ouro, fé e liberdade . Rogério Medeiros Garcia de Lima
Descrição
Rogério Medeiros Garcia de Lima/Sobre o autor e outros artigos de sua autoria
Rogério Medeiros Garcia de Lima (Natural de São João del-Rei, onde nasceu em 08 de setembro de 1961. Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Universitário. Sócio da Academia de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei; artigo publicado com o título “Em São João del-Rei (MG), ouro, fé e liberdade”, jornal MG Turismo, Belo Horizonte/MG, 15 de março a 15 de abril de 2021, p. 9)
O músico, escritor e professor são-joanense, Abgar Campos Tirado, observou, com sua invulgar inteligência, que São João del-Rei possui um “encanto diferencial”. Deveras, a cidade está erguida em sítio privilegiado. Compõe paisagem pictórica: o magnífico vale, cercado por montanhas e cortado pelo Córrego do Lenheiro. As edificações históricas - designadamente as Igrejas barrocas e as duas pontes de pedra - embelezam ainda mais o panorama.
Sinto-me, desde a mais tenra infância, são-joanense integral. Naqueles idos, gravei na memória a cor púrpura das vestes episcopais. Em 1967, assisti com meus pais, da sacada do Solar dos Neves, à sagração do Bispo Dom Lucas Moreira Neves. O Largo do Rosário estava apinhado de eclesiásticos. Exibia bela paisagem purpúrea. Nunca apaguei da lembrança a solene e concorrida celebração. Sou privilegiado por ter assistido ao despontar de um dos maiores prelados da Igreja Católica. Nenhum religioso brasileiro galgou tão altos cargos na hierarquia do Vaticano.
Homem notável, o conterrâneo Dom Lucas tinha fulgurante inteligência. Por ocasião de seu falecimento, escrevia Dom Luciano Mendes de Almeida: “Dom Lucas tornou-se, em Roma, mais um homem de visão sobre o mundo e o Reino de Deus, mas conservou sempre a simplicidade amiga do mineiro nascido em São João del-Rei” (Dom Lucas, Fiel Servidor, Folha de São Paulo, 14.09.2002).
Eram imperdíveis suas crônicas publicadas pelo Jornal do Brasil, posteriormente compiladas no livro Memorial de Fogo e Outras Crônicas (Editora Record, 2000). Membro da Academia Brasileira de Letras, Dom Lucas era arguto pensador e primoroso escritor. O ensaio Memorial de Fogo discorre sobre a descoberta de Deus pelo filósofo e matemático Blaise Pascal. É texto lapidar:
“Não se descobre impunemente este Deus pessoal, que irrompe na história da humanidade e na pobre história de cada um; este Deus capaz de nascer sob forma de criança indefesa, capaz da amar, de morrer; este Deus que merece o nome de Emanu-El, Deus conosco. Quem O descobre, onde e como for, só tem um anseio: o de comunicá-Lo”.
São João del-Rei foi erguida sobre fartos veios auríferos. A extração do ouro propiciou fortunas, que possibilitaram a edificação de majestosas igrejas: Carmo, Pilar e São Francisco. São templos que “conversam” com os fiéis pela “voz” dos sinos. Aqui, assinalou o são-joanense Otto Lara Resende, “os sinos falam”.
Os são-joanenses somos barrocos congênitos. Há mais de dois séculos cultivamos fervorosas tradições católicas. Organizamos inúmeras procissões. Culminam com o Enterro, na Sexta-Feira da Paixão. Desfilam pelas ruas religiosos, sob suntuosos pálios; irmandades, em opas; fiéis com velas às mãos; e imagens seculares, sobre esplendorosos andores. A atmosfera se impregna do incenso emanado de turíbulos balouçantes. Orquestras bicentenárias e coros entoam cânticos sacros. De passo com a religião, a arte aflora com fecundidade.
O Barroco é expressão artística da Contra-Reforma. A Igreja Católica, pela exuberância dos templos e artes sacras, opunha seu esplendor aos protestantes. Impressiona fiéis e idealiza uma dimensão terrena do Paraíso. A beleza barroca das velhas cidades mineiras nos aproxima de Deus.
Assim como nunca renegou a fé e a tradição, São João del-Rei jamais refugou os ideais libertários. O alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, nasceu na Fazenda do Pombal, hoje situada no vizinho Município de Ritápolis. Foi batizado na Igreja do Pilar, em São João del-Rei. Os “Autos da Devassa” registram declaração do Protomártir da Independência à autoridade inquiridora, onde afirmou ser natural da “Comarca de São João del-Rei”. A são-joanense Bárbara Heliodora é uma das heroínas da Pátria. Evitou que o marido, ouvidor e poeta Alvarenga Peixoto, delatasse os companheiros inconfidentes em momento de fraqueza moral.
Meninos eu vi. Tancredo Neves, ao assumir o governo de Minas Gerais, em 1983, discursou da sacada do imponente Palácio da Liberdade: “Mineiros, o primeiro compromisso de Minas é com a liberdade. Liberdade é o outro nome de Minas”. O governador são-joanense estava predestinado a conduzir, com sabedoria e habilidade, a transição democrática de 1985. Sacrificou a saúde e a vida, para glória desse ideal. Foi sepultado em São João del-Rei e repousa no panteão dos heróis da Pátria. Sobre a lápide, no cemitério de São Francisco, lemos célebre frase proferida outrora aos conterrâneos: “Terra minha, amada, aqui terás os meus ossos, como última identificação do meu ser com este rincão abençoado”.
De par com o sagrado e o político, também cultivamos nossa verve mundana. São João del-Rei é cidade jovial. Festeja alacremente o carnaval. Aprecia teatro, festivais e apresentações musicais. Possui qualificadas universidade e instituições de ensino. Sua produção intelectual é nacionalmente reconhecida. Os restaurantes servem a melhor comida mineira. A Maria Fumaça apita, anunciando a viagem até Tiradentes. Nós mineiros - já se disse - temos uma montanha diante dos olhos, uma banda soando nos ouvidos e um trem de ferro correndo nas veias...
Enfim, São João del-Rei é fértil exemplo para o Brasil. Ao lado do esplendor barroco produzido pelo ciclo do ouro, ostenta a firmeza do caráter da terra e dos seus cidadãos. Sem renegar a fé e a liberdade, nosso torrão natal é contraponto àqueles que, comodamente, renegam as próprias ideias com desfaçatez.