São João del Rei Transparente

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Tipo: Artigos / Cartilhas / Livros / Teses e Monografias / Pesquisas / Personagens Urbanos / Diversos

Escopo: Local / Global

 

Guimarães Rosa e São João del-Rei . Rogério Medeiros Garcia de Lima

Descrição

Rogério Medeiros Garcia de Lima/Sobre o autor e outros artigos de sua autoria

Sou assíduo frequentador dos sebos de Belo Horizonte, relicários de livros antigos a preços módicos. Nos sebos, exerço a mineiríssima vocação da garimpagem. Trabalho paciente com a bateia, as mãos e os olhos, até a alegria indescritível de encontrar a pedra preciosa.
Demanda tempo sacar livros poeirentos das estantes e os folhear detidamente. Numa manhã inteira, pode-se garimpar dois ou três livros raros. Às vezes, nenhum. Sem experimentar remorso pelo tempo despendido.

Em dezembro de 2016, garimpei “Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai”, livro de Vilma Guimarães Rosa (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983). Li de um fôlego e... bingo! Deparei-me com São João del-Rei. Sempre digo, embriagado de bairrismo, que nossa terra “está em todas”. Não se pode fazer história sem passar por esse belo vale emoldurado pela Serra do Lenheiro.

O genial médico, diplomata e escritor, mineiro de Cordisburgo (cordis / burgo,“cidade do coração” ), foi aluno interno do Ginásio Santo Antônio e teve aulas de Português com o famoso professor Antonio de Lara Resende, pai do grande escritor são-joanense Otto Lara Resende.

Copio Vilma, páginas 327-328 de sua obra biográfica:

“Papai gostava muito dos Lara Resende: pai e filho. Admirava o professor e o jornalista. (...)

“Gostei imensamente de um trabalho que o Otto escreveu sobre meu pai. Aqui transcrevo alguns trechos:

‘Desde que apareceu ‘Sagarana’, tive interesse pela vida e pelo convívio de João Guimarães Rosa, que já conhecia de nome, por circunstâncias ligadas à nossa condição de mineiros. Rosa foi aluno de meu pai, em São João del-Rei, e guardou desse tempo permanente lembrança. Achou São João triste. Oralmente e por escrito, mais de uma vez referiu-se, dirigindo-se a mim, aos sinos de São João del-Rei. Há alusões à tristeza do Oeste mineiro em sua obra, por certo a partir de sua experiência infantil. Até o fim da vida, sabia de cor uma cópia que meu pai passou-lhe, por estar lendo na aula de Português. A cópia tinha várias linhas e era um elogio da leitura... nas horas adequadas. Rosa repetia a cópia (que infelizmente não guardei) e imitava meu pai, referia-se aos seus olhos atentos, de onde – dizia – emanava autoridade”.

Sou aficionado pelo universo literário de Guimarães Rosa. Na saga do jagunço Riobaldo, pelos sertões das Gerais, vislumbramos os descaminhos e as incertezas da vida. Nossa existência é uma acidentada travessia por esse mundão desconhecido de Nosso Senhor (“Grande Sertão Veredas”, São Paulo, Abril Cultural, 1983):

“O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão”. (...)

“O correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem...”. (...)
“Viver é muito perigoso”.

Meu saudoso amigo Fernando Brant dizia ter se inspirado nos sertões de Rosa para compor os versos de “Travessia”, retumbante sucesso musical na voz de Milton nascimento:

“Solto a voz nas estradas, já não quero parar
Meu caminho é de pedra, como posso sonhar
Sonho feito de brisa, vento vem terminar
Vou fechar o meu pranto, vou querer me matar”.

Sou míope. Sem óculos, vejo o mundo embaçado. Guimarães Rosa, desde a infância em Cordisburgo, era acentuadamente míope.

O menino Miguilim - seu célebre personagem autobiográfico - tinha “vista curta”. Certo dia, o doutor José Lourenço, “do Curvelo”, pôs os óculos dele no garoto:
“Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo...” (“Manuelzão e Miguilim”, Rio de Janeiro, José Olympio, 4ª ed., 1970, p. 101).

Está aí: nós, brasileiras e brasileiros, precisamos dos óculos de Miguilim para enxergar uma pátria mudada em 2017. E desarmar os espíritos. Miopia, muitas vezes, não é problema só de vista. É doença da alma...

***São-joanense. Desembargador do Tribunal de Justiça/MG; artigo publicado pelo jornal Gazeta de São João del-Rei, edição de 14.01.2017, p. 4.

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