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la ciudad que soñamos es la ciudad que podemos construir

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Escopo: São João del-Rei | Tiradentes | Ouro Preto | Minas Gerais | Brasil | Mundo

 

Festa de Passos Tiradentes | Luiz Cruz

Descrição

TIRADENTES – FESTA DE PASSOS I, II e III – LUIZ CRUZ Fonte/colaboração: Luiz Cruz | Março 2022

O Brasil é o resultado do encontro de várias culturas. No vasto território ocupado por diversas etnias indígenas, começaram as trocas de experiências e vivências, logo nos primeiros contatos com os portugueses que aqui chegaram. Milhares de indígenas, portugueses e outros tantos escravizados arrancados de inúmeras localidades do continente africano aqui se estabeleceram e construíram a base cultural do país. Porém, Portugal só se interessou mesmo pela colônia brasileira após a revelação de que nos Sertões dos Cataguases haviam descoberto ouro, muito ouro. Na tentativa de controlar os caminhos e os descaminhos da rota do metal precioso a Coroa se valeu de seu poder para obter lucros certos; para as minas rumaram inúmeros reinóis e com eles vieram suas memórias, culturas, saberes e tradições.

A Festa de Passos é um dos legados que recebemos dos portugueses. Essa é a celebração mais antiga e realizada ininterruptamente em Lisboa desde 1587. É promovida pela Real Irmandade da Santa Cruz e Passos, fundada em 1586. A procissão com a imagem do Senhor dos Passos sai da Igreja de São Roque e vai para a Igreja da Graça e congrega devotos e fiéis. Ocasião em que a cor roxa predomina nas vestes dos irmãos dos Passos a contrastar com as dos irmãos de outras agremiações que se unem na cerimônia. Todo ano o Senhor dos Passos lisboeta estreia uma túnica nova doada por um devoto. Além dos andores com as imagens do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores, integram o cortejo o pendão, a bandeira processional, o pálio e muitas lanternas. A procissão tem sete paradas, representando os Sete Passos da Paixão de Cristo, quando ocorrem os sermões referentes a cada um deles. Desde 1587, somente em 2021 a Festa de Passos não aconteceu em decorrência das condições sanitárias da pandemia de Covid-19. Essa festa é realizada até o presente em tantas outras localidades lusas, com expressividade. Portugal com suas culturas regionais específicas, deu à celebração caráter próprio em cada local, mas o espírito é o mesmo, conforme ocorre em Caminha, distrito de Viana do Castelo, ao Norte. Uma pequena localidade, com cerca de 2.500 habitantes, mas que se orgulha de sua tradicional Festa dos Passos.

Portugal, ainda que um país de dimensão minúscula, que conquistou territórios longínquos e deles explorou tantas riquezas, levou suas tradições para esses domínios, dentre eles o Brasil. Uma dessas manifestações é a Festa de Passos.

De norte a sul, de leste a oeste, encontramos cidades brasileiras que realizam suas festas de Passos com grande mobilização dos fiéis dessa antiga devoção. O turista desavisado que chega à Praça de São Francisco, em São Cristóvão-SE, para conhecer esse bem cultural que é reconhecido como Patrimônio da Humanidade, desde 2010, não compreenderá a importância desse sítio histórico se não tiver informações sobre a Festa de Passos que ali ocorre. A praça que surgiu em torno de 1607 é o principal cenário do acontecimento do “Encontro” do Senhor dos Passos e de Nossa Senhora das Dores, quando pelo menos 150 mil devotos de inúmeras localidades brasileiras se aglomeram e acompanham os andores. Provavelmente, essa seja a maior Festa de Passos que ocorre no Brasil.

Ainda no Nordeste, na Chapada Diamantina, em Lençóis, é realizada outra Festa de Passos muito tradicional, inclusive já em processo de registro como Patrimônio Nacional pelo IPHAN. A Festa de Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos de Lençóis, que lá é considerado o padroeiro dos garimpeiros, ganha particularidades bem específicas da cultura da Bahia. Realizada desde 1852, essa celebração tem caráter único e difere totalmente das demais realizadas no Brasil, porque não tem sentido fúnebre, sim de louvor e alegria pela passagem do Senhor dos Passos pelas ruas. O cortejo é acompanhado de marchas e dobrados animados e um dos organizadores é a Sociedade União dos Mineiros. Ocorre o sincretismo religioso, com a predominância do “Jarê” – religião de origem afro-brasileira exclusiva de quatro cidades da Chapada Diamantina: Lençóis, Palmeiras, Andaraí e Itaetê. É promovida a lavagem das escadarias do Santuário do Senhor dos Passos, quando as mulheres devidamente indumentadas entram em cena para jogar água, sabão e perfume na escada e logo chegam os homens para concluir a jornada.

No Sul, a mais tradicional Festa dos Passos ocorre desde 1765, em Florianópolis-SC. A celebração que ocorre há mais de 250 anos é considerada Patrimônio Imaterial do Brasil e atrai anualmente cerca de 60 mil fiéis. Enquanto na região Centro-Oeste, uma das mais conhecidas celebrações da Festa de Passos se realiza em Pirenópolis-GO, a antiga localidade denominada como “Minas de Nossa Senhora do Rosário Meia Ponte”. Atualmente a festa é organizada pela Irmandade do Santíssimo Sacramento.

Em Minas Gerais, a Festa de Passos ganha força e expressividade na região Campo das Vertentes, principalmente em Prados, São João del-Rei e Tiradentes. Cada cidade tem o seu calendário, exatamente como ocorreu ao longo dos séculos, provavelmente por causa da música, porque, inicialmente, os mesmos músicos deveriam tocar nas três celebrações. Nessa região a festa antecede a Semana Santa e é realizada com significativa mobilização das comunidades. Essa é uma das melhores oportunidades em que se pode apreciar o quanto o Patrimônio Imaterial é importante para dar vida ao Patrimônio Material. São muitos os elementos utilizados para homenagear o Senhor dos Passos, alguns precisam de tempo para o preparo, como a música executada pelos coros, orquestras e bandas, as plantas ornamentais – desde o cultivo das orquídeas, manjericão, alecrim, hortência e as coletadas na natureza como a aricanga, rosmaninho e arnica. É necessário preparar as edificações. Sem esquecer dos toques dos sinos, seus dobres dolorosos nos remetem aos tempos da Paixão de Cristo – tudo isso ocorre graças ao nosso fabuloso Patrimônio Humano, que conecta a Imaterialidade à Materialidade. Estes aspectos são significativos, há a soma de resultados de séculos de vivências, devoção e fé.

Desde as primeiras décadas do século XVIII, em Tiradentes, a Festa de Nosso Senhor dos Passos é a mais comovente e a mais tocante de todas. Por isso, essa celebração foi registrada como Patrimônio Imaterial, pela Prefeitura Municipal de Tiradentes, através do Conselho Municipal de Políticas Culturais e Patrimônio, pelo Decreto nº 2424, de 23 de novembro de 2016. A Festa dos Passos de Tiradentes é, portanto, um Patrimônio, devidamente reconhecido, precisa e deve ser preservado.

Imagens:

- Festa de Nosso Senhor dos Passos, Lisboa, Portugal. Fonte: Câmara Municipal de Lisboa.

- Andor de Nosso Senhor dos Passos, de Caminha, Portugal. Fonte: CM-Caminha.pt

- Praça São Francisco, São Cristóvão-SE. Foto: Luiz Cruz, 2016. Festa de Nosso Senhor dos Passos. Foto: Márcio Dantas.

- Festa de Nosso Senhor dos Passos, Lençóis-BA. Fonte: portal.iphan.gov.br

- Procissão do Senhor dos Passos de Florianópolis-SC. Fonte: G1.com

- Manjericão, planta aromática cultivada para uso na Festa de Passos. Foto: Luiz Cruz, 2019.

- Festa de Nosso Senhor dos Passos, Tiradentes. Foto: Luiz Cruz, 2018.

TIRADENTES – FESTA DE PASSOS II – LUIZ CRUZ

Em Portugal, a partir do século XVII, uma devoção foi fortalecida, a de Nossa Senhora do Bom Despacho. No século XVIII esse culto chegou ao Brasil e em Minas, a conquistar devotos em diversas localidades. No arraial de Santo Antônio, atual Tiradentes, na Serra de São José, num trecho pouco elevado e plano, próximo ao Córrego de Dona Antônia, existiu uma capela dedicada à Nossa Senhora do Bom Despacho. A capela ruiu e atualmente se encontra em processo de tombamento o “Sítio Arqueológico do Bom Despacho”, uma iniciativa do Conselho Municipal de Políticas Culturais e Patrimônio, de Santa Cruz de Minas, onde se encontra.

Não subsistiu informação sobre quando a Capela do Bom Despacho fora edificada, mas se registrou a aprovação do “Compromisso da Irmandade de Nosso Senhor dos Passos”, instituída nesse templo, com aprovação datada de 13 de novembro de 1721. Ou seja, no ano passado se completou o seu tricentenário de existência. O “Compromisso da Irmandade de Nosso Senhor dos Passos da Capella de N. S. do Bom Despacho do Corrego. Freguezia de São Joseph do Rio das Mortes. Distrito das Minas” é um dos mais antigos de Minas Gerais, trata-se de belíssimo documento ornamentado por iluminuras, que ficava guardado em uma caixa contendo um “Cordeiro de Deus” bordado com fios de ouro e de prata. A capela teve o seu cemitério próprio e também uma imagem de Nosso Senhor dos Passos. A partir de 1722, a irmandade passou a promover a Festa de Passos na sede da Vila de São José – a atual Tiradentes. Em 1727 a imagem veio para a Matriz de Santo Antônio e não retornou mais para a Capela do Bom Despacho. A Irmandade, que congregava os mais abonados da vila, decidiu construir um retábulo para abrigar definitivamente o Senhor dos Passos. Então, contratou-se o mestre entalhador português Pedro Monteiro de Sousa para tal tarefa.

Logo a Irmandade mandou edificar os Passos da Paixão, as pequenas capelas, ao longo do trajeto processional. Embora exíguas, o interior das capelas recebeu ornamentação barroca, com retábulo, painel com cenas pintadas a óleo e o frontão. O mestre Pedro Monteiro de Sousa trabalhou na construção da ornamentação, posteriormente, outro exímio entalhador também atuou na renovação do gosto de um dos Passos, o mestre Salvador de Oliveira. Pintores anônimos e pintores conhecidos atuaram nas obras do Passos, dentre eles Manoel Victor de Jesus, Bernardo Pires da Silva e Luiz da Silva Saraiva. O conjunto de Passos da Paixão se tornou elementar para a conformação urbanística e arquitetônica da antiga Vila de São José.

Desde o início do século XVIII, tudo que envolvia a devoção do Senhor dos Passos, congregou o melhor que havia na vila, desde os mestres pedreiros, carpinteiros, entalhadores, pintores, douradores, encarnadores até os bons na arte musical. E a música sempre abrilhantou os festejos fúnebres, o compositor Manoel Dias de Oliveira compôs os “motetos”, executados nas celebrações, mas outros também deixaram contribuições expressivas, dentre eles Antônio de Pádua Falcão, José Maria Xavier, Martiniano Ribeiro Bastos e Presciliano José da Silva. As marchas fúnebres foram compostas por Benigno Parreira, Benjamim Andrade Gomes, Custódio Gomes, Francisco de Paula Villela, João Francisco da Matta, José Lino de Oliveira França e Tadeu Nicolau Rodrigues. Nos últimos 160 anos, a execução musical ficou a cargo da Orquestra, Coro e Banda Ramalho.

A programação é curta, mas intensa, impregnada de fé, religiosidade e tradição. No Sábado de Passos, de 2022, no dia 2 de abril, ocorrerá Missa, às 19h, na Matriz de Santo Antônio; às 20h, sairá a procissão de “Depósito de Passo”, indo para a Capela de Nossa Senhora das Mercês. A imagem será conduzida no andor encerrado pelo velário – que representa a prisão de “Cristo no Horto das Oliveiras”. Na Rua Resende Costa haverá o encontro com os irmãos mercedários, que receberão o andor e o conduzirão até a Capela das Mercês. No Domingo de Passos, às 8h, na Capela de Nossa Senhora das Mercês, Missa, seguida de rasoura – procissão em torno da capela (a rasoura sempre foi realizada após a Missa das 10h); às 18h, das Mercês sairá a Procissão de Passos e da Capela de São João Evangelista a Procissão de Nossa Senhora das Dores. Na Rua Direita, em frente ao Largo do Rosário, acontecerá o tradicional “Encontro”. Ao longo do trajeto, a procissão fará paradas diante cada Passo da Paixão, quando serão entoados os “Motetos de Passos”, de autoria do compositor Antônio de Pádua Falcão. Após o encontro das imagens, o cortejo passará pelo Largo do Ó, subirá a Rua do Jogo de Bola, parada no Largo do Pelourinho e seguirá para a Matriz de Santo Antônio.

Singela e comovente é a Festa de Nosso Senhor dos Passos de Tiradentes, que nos remete ao século XVIII. Tudo aqui contribui para a pompa fúnebre – o conjunto arquitetônico e urbanístico, a beleza das imagens setecentistas, a ornamentação dos Passos da Paixão, os “Motetos de Passos”, as marchas fúnebres, o silêncio das ruas, o aroma do rosmaninho, a fumaça do turíbulo incandescente, a linha de velas que iluminam o cortejo e ainda o dobre doloroso dos sinos. Faz falta, muita falta mesmo, o dobre do sino da Capela de Nossa Senhora das Mercês, quebrado há uma década. Tudo isso só ocorre porque alguém construiu e ornamentou, compôs e preparou a música, cuidou das plantas, preparou as edificações – isso só acontece porque é cuidado pela comunidade, o nosso Patrimônio Humano, que é merecedor de reconhecimento e aplausos.

Imagens:

- Compromisso da Irmandade de Nosso Senhor dos Passos, Capela de

Nossa Senhora do Bom Despacho. Arquivo Paróquia de Santo Antônio. Fotografia: Luiz Cruz

- Compromisso da Irmandade de Nosso Senhor dos Passos, Capela de Nossa Senhora

do Bom Despacho, com da data de sua aprovação: Rio de Janeiro, 13 novembro de 1721.

Arquivo Paróquia de Santo Antônio. Fotografia: Luiz Cruz

- Detalhe da caixa onde ficava guardado o Compromisso da Irmandade de

Nosso Senhor dos Passos. Acervo Paróquia de Santo Antônio. Fotografia: Luiz Cruz

- Documento que registra pagamento ao pintor e dourador Luiz da Silva Saraiva, pela execução de ornamentação de Passo da Paixão, 1765. Fotografia: Luiz Cruz.

- Programa da Festa de Nosso Senhor dos Passos de Tiradentes, 1951. Acervo Luiz Cruz.

- Encontro do andor de Nosso Senhor dos Passos com o velário, na Rua Resende Costa com a Irmandade de N.S. das Mercês. Fotografia: Luiz Cruz

- Capela de Nossa Senhora das Mercês, início da Procissão do “Encontro”. Fotografia: Luiz Cruz

- Rosmaninho florido usado para aromatizar os Passos da Paixão, as igrejas e

trajetos por onde passam das procissões das solenidades de Passos. Foto: Luiz Cruz


TIRADENTES – FESTA DE PASSOS III – LUIZ CRUZ

Apesar do Brasil viver tempos nebulosos com fortes indícios de corrupção de um governo militar – presidente, vice-presidente, ministros e mais de seis mil militares a ocupar cargos civis, além da atuação criminosa da ala “bíblia, bala e boi”, vivenciamos o entreguismo, a desconstrução ampla e geral do país. Somos regidos por uma Carta Magna e ela tem sido vilipendiada constantemente pelo atual governo. Os segmentos que mais sofrem são os vinculados à Cultura, ao Patrimônio, à Educação, à Ciência e ao Meio Ambiente. É nesse contexto de obscuridades que enfrentamos a polêmica em torno dos Passos da Paixão em Tiradentes. Segundo a Constituição de 1988, Art. 216. “Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem: [...] IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; [...] § 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.” A cidade de Tiradentes tem seus bens amplamente protegidos pela legislação pertinente e os bens imateriais que se vinculam à materialidade também, especialmente a Festa de Nosso Senhor dos Passos – registrada como Patrimônio Cultural, por sua relevância junto à comunidade local, proposto pelo CMPCP - Conselho Municipal de Políticas Culturais e Patrimônio, ato efetivado pela Prefeitura Municipal de Tiradentes através do Decreto nº 2424, datado de 23 de novembro de 2016.

A Festa de Passos é uma das celebrações mais expressivas da localidade e seu registro como Patrimônio Imaterial foi necessário e oportuno. As edificações religiosas vinculadas à essa celebração são protegidas por tombamento individual pelo IPHAN e as Capelas de Passos têm proteção através do tombamento do Conjunto Arquitetônico e Urbanístico – Tiradentes-MG, Processo 66-T-38, Livro Belas Artes v. I, datado de 20 de abril de 1938. Essa proteção federal dos bens materiais, mais o registro do bem imaterial que constitui da celebração em honra ao Senhor dos Passos, reforça sobremaneira a atenção, cuidados e manutenção, conforme assegurados pela Constituição Federal.

Recentemente, todas as edificações religiosas tombadas em Tiradentes, incluindo as Capelas de Passos da Paixão, receberam obras de restauração estrutural e artística, com recursos públicos, obtidos através de projetos culturais. – Por que se investe recursos públicos para restaurar uma edificação religiosa? – Porque essas edificações se conformam como bens culturais e são “portadoras de referência à identidade”, não apenas da população tiradentina, mas também do povo brasileiro.

O registro da Festa de Passos como Patrimônio Imaterial, em 2016, ocorreu no contexto que reconhecia a celebração e o envolvimento afetivo da comunidade. Inclusive a considerar que os Passo da Paixão tinham uma família como zeladora, que sempre cuidou de cada capela. Ser zeladora de um Passo da Paixão, guardar a chave e mantê-la no núcleo familiar – isso sempre foi uma deferência, uma honra, uma distinção social e espiritual. Dona Elvira Lopes de Moura, mais conhecida como Dona Pitita recebeu a chave do Passo da Rua Direita, dele cuidou até o fim da vida. Quem ajudava nos cuidados com esse Passo era sua mãe, Dona Rita Lopes, conhecida como Sá Ritinha, moradora da Rua dos Coqueiros, atual Sílvio de Vasconcellos, que viveu em uma das casas mais antigas da cidade. A chave desse Passo passou para Dona Maria José Nascimento que já na idade de 90 anos, não tem condições de cuidá-lo; função, então, assumida por sua filha, Dona Maria Aparecida do Nascimento, nossa querida Cidinha. Ser zeladora de um Passos é uma tradição, tanto quanto o é a própria Festa de Passos.

Antonia Augusta da Cruz, Dona Nica, recebeu a chave do Passo da Cadeia e dele cuidou até quando teve saúde; logo, sua filha, Dona Maria José da Cruz, passou a cuidar do Passo. Dona Maria José Lourenço era a zeladora do Passo do Largo das Forras e sua filha Cristina Lourenço, assumiu a função. Dona Maria Luiza, antiga moradora do Largo do Ó cuidou do Passo por décadas consecutivas e sua filha Maria de Lourdes, nossa saudosa Dona Luluca, assumiu o cargo até que fora vítima da Covid-19. Sua irmã Maria Carmelita poderia ter assumido a função, mas lamenta não ter sido prestigiada para tal. E por aí vai a história das zeladoras...

Não há como esquecer as relações afetivas associadas às devocionais. O casal Antônio Nogueira e Dona Zizinha promoveu a Festa de Passos por mais de meio século; ao longo do tempo os dois enfrentaram inúmeras dificuldades, mas anualmente dedicaram inúmeras horas para que tudo transcorresse da melhor maneira possível. Sr. Nogueira, mesmo já idoso e com a saúde abalada, acompanhava tudo. Depois que ele faleceu Dona Zizinha enfrentou as jornadas. Os dois cumpriram a missão de zelar pela Festa de Passos, especialmente durante as décadas em que a cidade passou por dramática crise econômica. Desse casal, Tiradentes deve lembrar sempre pela dedicação, determinação e principalmente pela inabalável devoção ao Senhor dos Passos. Difícil e complexo, mas há como imaginar hoje, um irmão dos Passos a bater à porta do casal Nogueira para dizer que a Irmandade dos Passos determinou que eles não seriam mais os provedores dessa celebração? Uma proposta dessa não seria só desrespeitosa à História deles. Isso não se constituiria em um ato de falta de humanidade?

Recentemente, a Irmandade de Nosso Senhor dos Passos passou e recolheu as chaves das capelas dos Passos da Paixão. Sem nenhum comunicado aos responsáveis, sem nenhum registro sobre as condições em que os Passos se encontravam. Sem nenhum respeito à tradição local, que inclusive é reconhecida como Patrimônio Imaterial. Subtrair as chaves das famílias zeladoras à primeira vista parece simples, mas engana-se quem não considera as questões vinculadas ao pertencimento, à identidade cultural, à expressividade da devoção ao Senhor dos Passo, tão arraigadas e tão antigas quanto a própria cidade de Tiradentes. Há um inconformismo, uma revolta, uma recusa em aceitar esse fato. Aos familiares envolvidos com a zeladoria das capelas de Passos, sobra ressentimento e faltam argumentos para compreender a atitude autoritária da Irmandade e a complacência da Paróquia de Santo Antônio – que até ameaçaram a mudar o roteiro processional, com essas inovações inoportunas.

A Festa de Passos como bem patrimonial não deve ser colocada em uma redoma de vidro para sua proteção, porque ela ocorre em função de existir um Patrimônio Humano que a reconhece como tal. Por isso, adaptações ou mudanças podem ocorrer, mas desde que as partes envolvidas sejam contempladas, ouvidas e consideradas. Isso não ocorreu com o confisco das chaves das zeladoras. Numa localidade com as características de Tiradentes, onde o acentuado processo de “gentrificação” é um dos mais impactantes para a proteção do Patrimônio Material e Imaterial, as atitudes da Irmandade e da Paróquia de Santo Antônio estão na contramão da História. Bater à porta da casa de Dona Maria José Nascimento, na altura dos seus 90 anos e com a saúde debilitada para confiscar-lhe a chave do Passo da Paixão, transcende a falta de espírito cristão, é uma atitude desprovida de HUMANIDADE. É mais do que óbvio que num futuro próximo não teremos nenhuma família habitando a área antiga da cidade, tudo será apenas cenário para se comprar e se vender, mas sem a alma de seu povo.

Afinal, quem deve ser responsável pelos Passos da Paixão? Perguntar não ofende! – São propriedades da Irmandade de Nosso Senhor dos Passos ou da Paróquia de Santo Antônio? Em qual cartório está devidamente registrada essa propriedade? Não há como esquecer, só é proprietário quem tem registro de propriedade! Sendo um bem privado, por que para se restaurar precisa de recursos públicos, num país em que inúmeras edificações de instâncias municipais, estaduais e federais se encontram em completo estado de abandono e tantas outras em ruínas?

As iniciativas de ambos não refletem comprometimento com os bens culturais, se uma irmandade que celebra seus 300 anos de existência, com documentação comprobatória passar em brancas nuvens, só nos resta lamentar. Uma outra lacuna imensurável é o tratamento que dão aos sinos, bens integrados às edificações tombadas. O sino da Matriz de Santo Antônio ficou quebrado por quase meio século e seu problema só teve solução por iniciativa de José Trindade da Costa. O sino da Capela de Nossa Senhora das Mercês foi quebrado em uma Festa de Passos, inclusive corre o risco de desprender parte de sua bacia e até causar acidente. Fizemos projeto, sob a orientação do Professor Dr. André Guilherme Dornelles Dangelo, um dos maiores estudiosos da arte dos campanários, para recuperar o sino mercedário, obra de um dos fundidores mais respeitados de Minas – José Valentim Onofre e datado de 1881. O sino mercedário tinha um belo som, seu dobrado fúnebre nos tocava profundamente. Esse sino faz muita falta para os mais diversos momentos da comunidade, inclusive com seus dobres dolorosos para a Festa de Passos. Entreguei uma cópia do projeto ao presidente da Irmandade mercedária e outra ao IPHAN, como o responsável bem pelo bem protegido não deu entrada no projeto, oficialmente, nada teve prosseguimento. Durante a Festa de Passos aparecem vários sineiros, todos querendo tocar os sinos a imitar os toques de São João del-Rei; só que os de Tiradentes não foram feitos para dobres acelerados, porque vão quebrar e ficarão inutilizados. Os sineiros mais conscientes sabem disso. Caso alguém dispare o sino, colocando-o em risco de quebrar, só nos resta chamar as autoridades competentes, lavrar um boletim de ocorrência e encaminhar ao Ministério Público Federal; afinal, colocar um bem protegido em risco é passível de responsabilidade criminal.

Por um lado, falta sensibilidade e cultura por parte da Irmandade dos Passos e da Paróquia de Santo Antônio para compreender o que significa IMATERIALIDADE e seus desdobramentos; por outro, sobra indignação por parte das famílias que há décadas cuidaram das capelas dos Passos da Paixão. Então, diante dos paradoxos, só nos resta encaminhar para uma instância onde prevaleça a razão, a imparcialidade para analisar e tomar uma posição sobre tais fatos, por isso encaminhamos ao Ministério Público Federal; também porque os bens envolvidos material e imaterial estão devidamente protegidos.

Apesar do Brasil viver tempos nebulosos, torna-se elementar acreditar que a melhor solução é recorrer às instâncias legais. A Justiça pode tardar, mas não há de faltar.

IMAGENS:

- Gabriel, Letícia e Pedro preprando o Passo da Cadeia para a Procissão do Encontro. Foto: Luiz Cruz, 2012.

- Passo da Cadeia, ornamentado com as plantas aromáticas e de uso medicinal tradicional: rosmaninho, alecrim, manjericão, arnica e flores de quaresmeira. Foto: Luiz Cruz, 2018.

- Passo da Paixão da Rua Direita, cuidado pelas zeladoras Dona Maria José Nascimento e Dona Maria Aparecida Nascimento. Foto: Luiz Cruz, 2018.

- Dona Maria José do Nascimento e Dona Maria Aparecida Nascimento, zeladoras do Passo da Rua Direita, mãe e filha. Foto: Luiz Cruz, 2018.

- Sr. Antônio Nogueira. Foto: Francisco Botelho, 1977, acervo Luiz Cruz. Dona Zizinha, Foto: Luiz Cruz, 1992 – casal que por mais de meio século foi provedor da Festa de Passos.

- Ao centro a saudosa Dona Luluca, zeladora do Passo do Largo do Ó, sua irmã Carmelita e o sobrinho César Reis. Foto: Luiz Cruz, 2018.

- Dona Luiza e Dona Maria Lídia descerrando placa de inauguração das obras de

restauração dos Passos da Paixão, executadas com recursos públicos. Foto: Luiz Cruz, 2018.

- Equipe responsável pelo projeto cultural que tornou possível a restauração estrutural

e artística dos Passos da Paixão, com recursos públicos. Foto: Luiz Cruz, 2018.

- Sino da Capela de Nossa Senhora das Mercês, fundido por José Valentim Onofre, quebrado durante uma Festa de Passos e silenciado por uma década. Fotos: Luiz Cruz, 2015.


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