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A linguagem do Toque dos Sinos de São João del-Rei . Jairo Braga Machado
Descrição
Pérola: A linguagem do Toque dos Sinos de São João del-Rei
São João del-Rei figurou como uma das primeiras vilas erguidas na antiga capitania das Minas Gerais, posição geográfica privilegiada e estratégica, além da sua produção mineral, exerceu fundamental papel de pólo abastecedor não só da região, mas como também da corte que se instalara na cidade do Rio de Janeiro a partir de 1808.
Além de paulistas, portugueses oriundos das ilhas dos Açores, do norte da metrópole, como Viana do Castelo, Braga, Guimarães, Barcelos e Porto, a antiga vila também recebeu um grande contingente de escravos africanos de várias nações tais como: angolas, moçambiques, cabindas, banguelas, cacanjes e minas, que constituíam a principal mão de obra. Porém, a grande matriz religiosa era católica, trazida pelos portugueses que muito antes do desenvolvimento urbano, faziam questão de erigir uma capela ao santo padroeiro. Nesse período, surgiram várias irmandades, que foram extremamente importantes, não só pelas construções dos templos, como também divulgação da fé católica, enterro dos irmãos e promoção das festas religiosas. A instalação da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos homens pretos e São Benedito precede a instalação da vila de São João del-Rei. Criada em 1708 é a mais antiga das associações leigas de Minas Gerais.
Essa complexidade de etnias culturais deixou uma herança de imensurável valorq eu pode ser vista e apreciada em cada canto da cidade. Nas suas pontes de pedras, do casario, nos prédios públicos, nas ruas tortuosas, mas acima de tudo, na sua herança imaterial, passada de geração em geração, nas torres, nos entalhes minuciosos das madeiras, nas cantarias, nas composições musicais, nos sabores e saberes das cozinhas com forte tempero português e africano. Apesar de todas as contradições do regime escravista, temos hoje uma identidade cultural que é motiva de orgulho não só para os que aqui nasceram, mas também para aqueles que escolheram a cidade para viver.
São João del-Rei foi a primeira cidade a ser tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN em 04 de março de 1938.
A cidade é nacionalmente conhecida como uma das cidades que melhor preservou e mantém seus rituais barrocos oriundos do século XVIII e que são celebrados com a mesma pompa e rigor. Alheia às reformas litúrgicas ocorridas no âmbito da igreja, principalmente as propostas pelo Concilio Vaticano II (1962-1965) que propunha um ritual ai menos complexo e com um viez social mais engajado.
Esta posição contribui de maneira extraordinária para a manutenção e preservação da sua origem barroca. Sua Semana Santa é tida como uma das mais bonitas e mais complexas do Brasil.
Dentro deste contexto religioso não poderia faltar a Linguagem do toque dos sinos como elemento fundamental que balisa, não só as manifestações religiosas, mas também os principais acontecimentos do cotidiano da cidade não faltando os toques fúnebres com suas complexidades apontando o sodalício que cada irmão pertence. São mais de 27 modalidades de toques, uma dezena de templos religiosos entre igrejas e capelas e mais de 30 sinos responsáveis por essa complexa linguagem que desde os primórdios do século XVIII vêm dialogando com a comunidade sanjoanense.
De suas torres centenárias comunicam com a cidade, ora anunciando a morte de um irmão, com sua chamada característica:
Quando homem, três séries de sobres de 1 pancada, descaindo os sinos a cada série;
Sendo mulher, duas séries de dobres de 1 pancada, descaindo os sinos a cada série;
Sendo criança, repiques fúnebres na passagem do féretro pela igreja até atingir o cemitério;
Se o irmão participou como mesário do sodalício, terá três séries de sobres duplos logo que se tomou conhecimento do falecimento e na hora do enterro (três dobres e duas pancadas);
Se mulher que participou da mesa, idem, idem, dois dobres de duas pancadas.
Os sinos também anunciam mortes de religiosos, obviamente estabelecendo a hierarquia eclesiástica do religioso. Falecimento de papa, sobres duplos, na ordem inversa, começando pelo sino maior para o menor, em todas as igrejas e capelas da cidade, perfazendo um total de 14 séries de dobres. Antes de descair a cada série, 14 dobres duplos seguidos em cada sino. Falecimento de bispo; dobre duplo, na ordem inversa, começando o sino maior para o menor, em todas as igrejas e capelas da cidade, num total de 7 séries de dobres. Antes de descair os sinos, 7 dobres duplos seguidos em cada sino. Falecimento de vigário; dobre duplo, na ordem inversa, começando do maior para o menor, em todas as igrejas e capelas da cidade.
Um dos toques mais complexos e provavelmente o mais bonito, que segundo a tradição oral foi elaborado por um escravo é o toque da Festa da Boa Morte.
No término da última novena no dia 13 de agosto, toque de matinas no Transito de Nossa Senhora (repiques: Senhora é morta) usado até o Glória de 15 de agosto (Assunção de Nossa Senhora) com repiques festivos em todos os sinos da catedral.
No dia 03 de dezembro de 2009, o Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional se reuniu no salão nobre da Prefeitura Municipal de São João del-Rei tendo como uma de suas pautas o registro da Linguagem do Toque dos sinos de 09 cidades mineiras, Diamantina, Serro, Catas Altas, Ouro Preto, Mariana, Congonhas do Campo, Sabará, Tiradentes e São João del-Rei.
Este processo que teve início em 2001 com a reivindicação da comunidade local e levado ao IPHAN, que em 2002 iniciou a execução do processo de registro.
Justo reconhecimento a uma cidade que chega ao século XXI preservando as suas mais caras tradições culturais. Reconhecimento a um grupo social de extrema importância para coesão e divulgação das nossas centenárias tradições.
Ao registrar os toques dos sinos das cidades mineiras, tendo São João del-Rei como a grande referência, reconhecemos a dedicação, o amor e a capacidade de cada sineiro em fazer do sino seu instrumento de comunicação.
Compete agora ao IPHAN criar os instrumentos de salvaguardas para que este rico legado cultural possa ser preservado, mas muito mais do que isso possa ser mais conhecido pelo povo brasileiro cumprindo assim sua função sócio-cultural de exercício de cidadania.
Jairo Braga Machado
Historiador do Escritório Técnico II – IPHAN – São João del-Rei
Jornal Pérolas – Março de 2010