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Tipo: Artigos / Cartilhas / Livros / Teses e Monografias / Pesquisas / Personagens Urbanos / Diversos

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Crônica "Maria, o infortúnio dos homens" . Rafael Augusto Gomes -

Descrição


Maria, o infortúnio dos homens
 

Ai, trabalho!, agradeço-te por me reapresentar dia após dia ao meu amor maior: a História. Seja enquanto professor, educador em museus, pesquisador ou bolsista de seja lá o que for, sempre me vi feliz na História. Triste mesmo é lembrar a estrutura do país pra esses assuntos, mas deixemos isso pra lá… No mínimo é engraçado que, ainda que não tão bem recompensados quanto merecem, os profissionais da História geralmente são inteiros em seus ofícios. E quando trabalhei no Museu Casa Padre Toledo não foi diferente.

A casa do padre e inconfidente Carlos Correia de Toledo e Melo me apaixonava. E o que dizer do seu entorno tiradentino? Não teríamos palavras… Apenas citamos o sábio Confúcio e pensamos: “escolha um trabalho de que gostes e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida”. Mas, apesar de toda a beleza, exuberância e contemplação do local, havia um porém, que atendia pelo nome de Maria, a Maria Fumaça. Não sei se era mania de perseguição, mas anacronicamente eu desconfiava que o apelido feminino da máquina nasceu para me provocar. Vai saber… Fato era que ela me incomodava há um quarto de mês.

Acontecia assim, sempre: eu pegava serviço meio-dia e meia, largava às quatro e vinte mais ou menos, apertava o passo pra pegar a lotação na aconchegante rodoviária de Tiradentes – nessa altura do campeonato eu agradecia a todo os santos e deuses pelo passe recém aprovado, como ele salvou! Por fim, embarcava na lata de sardinha a caminho de São João Del-Rei, onde chegava lá pelas cinco da tarde. Feito isso eu tinha que andar do terminal até a minha casa, coisa de quinze minutos. No caminho eu me deparava com a Caieira: o cruzamento mais confuso do trânsito brasileiro, onde seis ou sete ruas se encontram sobre a linha do trem e onde sempre se via estilhaços e marcas de pneu – produtos desses motoristas mal educados que se vê por aí. Ali na Caieira, como se não bastasse o trânsito, também passava a Maria Fumaça, só que não no meu horário. A máquina a vapor desfilava por lá uns cinco minutos depois, todos os dias.

Eu a escutava enquanto subia – ou escalava, nunca soube ao certo – o morro da UPA. Mas à frente, lá no alto, eu sempre parava num lote vago. Ele me permitia uma linda vista de São João, de onde se via desde a Matriz no centro histórico até a torre do Dom Bosco. De lá também avistava a estação e sua linha. Ali, bem ali, no local onde buscava diária e insistentemente observar a tal maria Fumaça em sua teatral chegada. O lugar eleito.

Mas era sempre a mesma coisa. Escutava o convite do ungido maquinário quando estava bem no meio do morro, nem tão longe pra desistir, nem tão perto para relaxar. Aquele apito fascinante obrigava-me a acelerar a passada, esquecer a inclinação do barranco cimentado e correr até o lote recém promovido à categoria de mirante. O problema era que eu corria, mas nunca chegava a tempo do espetáculo. A isso atribuo a minha ira, o motivo do tal “porém”.

O leitor pode pensar o que quiser desta corrida infantil, inclusive que ela não seja algo propício a alguém já passado dos vinte anos de idade. Mas peço que se acalme, explico-me num segundo. Para quem vos fala, os doze quilômetros da Estrada de Ferro Oeste de Minas, localizados entre São João Del-Rei e Tiradentes, não são um simples amontoado de madeira e ferro rasgando os pastos da região. Junto à máquina a vapor eles formam a mais majestosa criação da Revolução Industrial, presente ali, na região do Rio das Mortes. Lembre-se dos romances do século XIX! Lembre-se de toda a pompa, de todo o charme e toda a catarse representados e produzidos pela estrada de ferro. Como não se encantar? Pergunto isso antes de mencionar o apito e a fumaça – nessas horas se esquece da camada de ozônio – que saíam daquela máquina de bitola estreita, que media setenta e seis centímetros e a fez herdar o carinhoso apelido de “Bitolinha”. Pra ser sincero, cheguei a acreditar que existia algo de metafísico entre eu e a máquina inglesa, mas abandonei tal crença, principalmente por medo de perder vossa credulidade – e a esta altura eu conseguiria a isso evitar?

Enfim, tudo isso é papo de apaixonado por história, de um historiador que mesmo feliz numa frente encontra motivo pra se enraivecer em outra. Aquela invenção de irredutível importância histórica teimava em me ludibriar. Mas ela havia de pagar um preço. Eu tinha um plano e estava decido a ver Maria do mirante. Num dia propício resolvi colocá-lo em prática: ganhei uns minutos na saída do ônibus, desci um ponto antes do normal e cortei caminho, apertei o passo, atravessei o cruzamento, subi o morro, respirei e pronto, lá estava eu no tal lote-mirante às cinco e dez da tarde, esperando. Fiquei mais um tempo por lá, mas nada de Maria dar sinal de vida. Por fim desisti, achei que ela não viria. Afinal era sábado e eu havia monitorado seus horários apenas durante as feiras da semana.

Pensei comigo:

– É, acho que Maria não vem. Que bolo!

Desconsolado por aquele esforço inútil tomei o rumo de casa, confortado apenas pelo grito de uma maritaca que parecia me chamar a atenção do alto de uma árvore. Virei a esquina, andei mais um pouco e ouvi soar um apito: “FOM!, FOM!”. Fui checar a passos largos. Olhei da esquina e vi a fumaça subindo. Corri! Era a salvação, a recompensa pela empreitada, o pódio do atleta meticuloso. Não… Não era. Chegando ao meu posto só vi carbono queimado, já um pouco dissipado pelo vento, infelizmente. Sua dona Maria havia há pouco chegado à estação. Estacionada, parecia rir de mim e de minha ânsia, o que só aumentava. Restou-me, mais uma vez, a raiva:

– Ora, assim não há espetáculo! Que brochada… Onde já se viu?! Mulheres…

Maria Fumaça das Vertentes, a musa inspiradora desta crônica.
(Foto: Jornal O Tempo)

Colaboração: Rafael Augusto Gomes
Fonte: Blog do Tcheba

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