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O Rio das Mortes falou . Vicente de Paula Leão
Descrição
Em períodos de catástrofes é comum ouvirmos muitas pessoas falando sobre as causas das enchentes. Algumas dizem que a culpa é de Deus, que resolveu abrir as torneiras lá no céu. Outras acham que a natureza é vingativa. Há ainda quem diga que foi a abertura das comportas de uma represa imaginária. Mas, se o protagonista dessa história, o Rio das Mortes, pudesse falar, o que será que ele diria? Pois é, o Rio das Mortes falou e, vejam o que ele disse:
“Eu sou o Rio das Mortes, sou fonte de vida. Assim como as cidades que banho, eu também tenho história. Juntamente com meus afluentes, possibilitamos a ocupação dessa região. Agora quero aproveitar este momento importante, em que todos estão reunidos para debater sobre as enchentes, desaguar minha insatisfação e reivindicar meus direitos.
Estou cheio de sedimentos que se acumulam no meu leito e me obrigam a transbordar em períodos chuvosos. Estou cheio de esgoto doméstico – tanto que minha D.B.O. (Demanda Bioquímica de Oxigênio) anda elevadíssima. E ainda tem gente que canaliza a água da chuva na rede de esgoto. O resultado é: água da chuva + esgoto + enchente = doenças. A culpa não é minha, eu só transborto. Estou cheio de sedimentos que recebo de alguns loteamentos, nesses locais a cobertura vegetal é retirada para a abertura de novas áreas, sem a proteção da vegetação, o solo é todo carreado para o meu leito.
Estou cheio do asfalto que impermeabiliza o solo e aumenta o escoamento superficial das águas. Estou cheio de lixo. Quero dizer que não sou caminhão nem depósito de entulho. Estou cheio dessa sociedade consumista que não sabe que a felicidade está no encontro com a natureza, e não no consumo. Estou cheio de agrotóxicos; qualquer dia morro com tantos venenos agrícolas que recebo. Estou cheio de plantio em declive acentuado, que aumenta o assoreamento e a quantidade de solo fértil que faz crescer, aceleradamente, a vegetação em meu leito.
Estou cheio de agressões ao meu ecossistema, justamente a maior herança que pretendo deixar para as gerações futuras. Em muitos trechos já não tenho mais a mata ciliar que me protegia. Estou cheio de dragas que escavam minha margem e assoreiam o meu leito. Esse negócio de usar cascalho na construção deixa uma enorme ferida na minha bacia. Estou cheio de ocupações irregulares em minha planície – constroem até no meu leito. É que eu possuo dois, mas as pessoas, geralmente, consideram apenas o menor. Esquecem que em períodos chuvosos eu vou precisar ocupar a minha planície de inundação, ou seja, o meu leito maior. Estou cheio de alguns políticos “cabeças-de-bagre” (que os bagres me perdoem a comparação) que não dão conta de pensar a ocupação do espaço e elaborar políticas públicas eficientes em suas cidades. Para não falar só dos governantes, estou cheio daqueles eleitores que vendem os votos em época de eleições e depois cobram dos políticos que elegeram alguma solução. Que alternativas eles podem oferecer para vocês além do clientelismo?
Estou cheio, melhor dizendo, vazio, de planejamento urbano. Por isso, as cidades crescem desordenadamente, qualquer um pode fazer aterro nas minhas margens – aliás, qualquer um não, quem tem dinheiro. Assim, se não posso ocupar minha planície de inundação (porque ela foi aterrada), tenho que ir para outro ponto da cidade, e geralmente vou ocupar as casas da população mais pobre, que não pode se proteger das enchentes. As cidades possuem muitas áreas nobres que poderiam ser ocupadas pela população, mas é que o solo urbano é usado por alguns como forma de enriquecimento. Tem gente que compra vários lotes para especular e ganhar dinheiro, e não para construir casas, escolas, hospitais, creches etc.
Assim, os preços dos lotes encarecem e a população de baixa renda tem que ir morar nas minhas margens Por falar nisso, quero avisar aos prefeitos, secretários e vereadores que meu leito continua sendo ocupado com o consentimento do Poder Público expresso nos alvarás de HABITE-SE.
Por fim, quero aproveitar que todos estão falando de mim, para pedir uma ação coordenada dos órgãos públicos em toda a minha bacia. Quero participação ativa de toda a comunidade na busca de soluções para os meus problemas. Na verdade, eles não são meus; eles são de todos vocês e, se for preciso, de vez em quando eu volto para lembrá-los que EU EXISTO.”
Vicente de Paula Leão é professor do Curso de Geografia da UFSJ
Fonte: Gazeta de São João del-Rei . 21/01/2012