São João del Rei Transparente

Melhores Práticas

Cordel .Tudo pode virar cordel

Descrição

Muito antes de aparecer na televisão, o povo da roça, principalmente do Nordeste, já usava o cordel para divulgar suas histórias. Helen Martins viajou por cinco estados - Paraíba, Pernambuco, Ceará, Rio e São Paulo - para conhecer os repórteres do sertão: os poetas cordelistas. Um pequeno fato do cotidiano ou um grande acontecimento histórico... Tudo pode virar cordel.
“Foi um trio americano que primeiro teve a glória
De fazer daqui da Lua uma via transitória, Que vai ficar para sempre na face A da história”.
No cordel, aconteceu, virou poesia. Tem muita gente que só acreditou que o homem tinha mesmo chegado à Lua depois que leu a história rimada. Contada num folhetinho de capa singela, papel simplório e vendido por quase nada.
A gente costuma brincar que, em alguns lugares da zona rural, parece até que foi feita uma plantação de parabólicas, tamanha a quantidade. A notícia chega via satélite, mas quando não existia luz elétrica, rádio ou TV, eram os folhetos de cordel que traziam informação e diversão. Eles eram o jornal e a novela do sertanejo.
“Peço ao senhor Jesus
Que em tudo me conduz
Que dê-me um facho de luz
Com fios de inspiração
Para escrever em cordel
Como é que é o papel
De qualquer um menestrel
Com raízes no sertão”
Nascido no sertão da Paraíba, o poeta Abdias Campos viveu estes dias, em que para o homem simples da roça, versejar era tão comum quanto lavrar. “Minha mãe botava a gente para dormir dizendo versos. Meu pai, a gente ia pro roçado, ele ia cantando. Depois do jantar ia pro terreiro, sentava nos bancos e ficava dizendo versos. Quando se ia pra feira, sempre se avisava: olha, traz o folheto novo. As histórias da própria redondeza eram contadas nesses folhetos”.
O cordel corria o Nordeste na mala dos folheteiros, que iam de povoado em povoado vendendo poesia. Quem já conhecia as letras virava o leitor da família.
“Pra lhes deixar a par sobre esta literatura,
Que é a mais popular e, ainda hoje perdura,
Vamos direto ao começo, donde vem esta cultura?”
Quem nos conto a história do cordel no Brasil é o poeta e presidente da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, que não fica no Nordeste, mas no Rio de Janeiro.
“Para nós de língua portuguesa, a origem é ibérica, vem de Portugal e Espanha, mas o cordel vem de mais longe, atravessou o período medieval. Aqui no Brasil, o cordel chegou em Salvador, na mala dos colonizadores portugueses. Dali, se irradiou pelo outros estados do Nordeste. Se irradiou na comunicação oral, não tinha chegado escrita ao Brasil, a imprensa”, explicou Gonçalo Ferreira da Silva.
Foi a voz dos cantadores que primeiro encheu o sertão de versos.
“Este Nordeste querido, que tanta beleza tem
Seu cordel é sua vida, um amor que vai além”
Oliveira de Panelas, um pernambucano cheio de bom humor se autodefine: “Eu sou poeta, repentista, violeiro, cordelista, cantador”.
Oliveira ganha a vida mesmo como cantador e sabe bem a diferença entre o poeta repentista e o cordelista. “Todo repentista pode ser um cordelista, mas nem todo cordelista pode ser um repentista. Porque o repentista faz de improviso. Pensando é que ele faz. Não vamos dizer que ele seja um grande cordelista, aliás, a diferença é essa”.
“Uma coisa se eu pudesse transformava sem sobrosso
A voz de Maria Alcina botava em Ney Matogrosso
Nem que fosse necessário um transplante de pescoço”.
“Obrigado pai celeste, ter me dado esse Nordeste para fazer poesia”.
O poeta cordelista é chamado de poeta de bancada. Ele senta, pensa e escreve seus versos. Mas o que faz do cordel uma poesia diferente? O jornalista e pesquisador da cultura brasileira Assis Ângelo já fez livro, CD, organizou concurso de poesia de cordel e não para de garimpar novidades. Algumas não tão novas assim.
“Isso aqui é uma coisa recente, de 1626.” Tem também folheto em francês, folheto em japonês, cordel em quadrinhos.
Em sua casa, em São Paulo, ele resume a diferença entre poesia de cordel e a poesia chamada de erudita. “Uma tem o lustre, tem o brilho da erudição no sentido de formação acadêmica e a outra, não, a outra é a poesia pobre. Ela é direta, é clara, não fica preocupada com expressões que as pessoas não conheçam. Ela não fica mexendo dicionários para encontrar palavras bonitas. São poesias que têm história com começo, meio e fim”.
Na feira de São Cristóvão, reduto dos nordestinos no Rio de Janeiro, encontramos um desses típicos poetas populares. Todos os domingos, José João dos Santos passeia pela feira que ajudou a criar. Ele saiu da Paraíba para o Rio de Janeiro na década de 40. Trabalhou como pedreiro, como porteiro, até ficar conhecido por suas cantorias e versos como Mestre Azulão.
“Na terra de azulão não chove no mês de maio
O povo de lá só vive de fazer cesto e balaio
Foi a terra que a vaca engoliu o papagaio
Porque o papagaio é verde
E ela pensou que era uma moita de capim”.
O mestre monta a sua barraca, instala um sonzinho antigo e logo se põe a declamar. Azulão vai fisgando o público. Alguns acabam comprando.
É também no Rio de Janeiro que fica uma das maiores coleções de folhetos do Brasil.
“No Centro Nacional de Cultura Popular, acervo de cordel é referência singular
Poeta de toda parte vem aqui depositar seus folhetos de cordel,
Pra conosco gravar a memória permanente da cultura popular”.
Para quem mexe com cordel é assim, tudo acaba em poesia. Estes versos são de autoria de Maria Rosário Pinto, que é a responsável pela cordelteca da Biblioteca Amadeu Amaral. “Eu cometo versos, tenho que pedir desculpas aos poetas porque estou começando e em função deste trabalho, de tanto conviver, faço algumas coisas, mas não me sinto poeta”.
São oito mil, 300 e poucos folhetos que ficam muito bem guardados em várias caixas. Rosário separou alguns dos mais curiosos. “Esse é de 1906. É um dos mais antigos: a eleição de 30 de janeiro de 1906”.
O Pavão Misterioso é outro grande clássico da literatura de cordel, de José Camelo de Melo Rezende. A gente verifica que em algumas edições ele assina por João Melquíades. “Eu chamo a atenção para um determinado folheto, onde um pesquisador assinala que o autor não é o Melquíades. João Melquíades plagiou o ‘Pavão Misterioso’, o original de José Camelo de Melo. O plágio vendeu melhor que o original. A gráfica José Bernardes seguiu o gosto popular. José Camelo, desgostoso, rasgou o seu original que perdera a concorrência”.
Rosário também mostra as várias edições do folheto O Cachorro dos Mortos. O clássico escrito pelo poeta Leandro Gomes de Barros, conta a estória da morte violenta de uma família inteira, ficando como testemunha, apenas o cachorro.
Na primeira estrofe, Leandro diz:
“Os nossos antepassados
Eram muito prevenidos
Diziam: matos têm olhos
E paredes têm ouvidos
Os crimes são descobertos
Por mais que sejam escondidos”.
Mesmo antecipando o final, Leandro era capaz de prender o leitor.

A história de um poeta descrito por Carlos Drummond de Andrade como o rei da poesia do sertão e do Brasil em estado puro. Leandro Gomes de Barros é considerado o pai do cordel no Brasil. Paraibano da zona rural, ele escreveu histórias lidas até hoje, quase um século depois da sua morte.

“Foi no autódromo de Ímola
Grande Prêmio italiano
Dia primeiro de maio
De noventa e quatro o ano
Que trouxe tristeza e pena
Acabando Ayrton Senna
Neste desastre tirano”

Homenageado neste cordel, Ayrton Senna é até hoje para muitos brasileiros o número um do automobilismo. Na literatura de cordel, o poeta também considerado número um, começou a arriscar suas rimas na paisagem do sertão paraibano.

Da Serra do Teixeira saíram muitos cantadores e poetas. Segundo alguns pesquisadores, a região é o berço da literatura de cordel. Se lá é o berço, o pai é Leandro Gomes de Barros.

Leandro é descrito pelo folclorista Câmara Cascudo de um jeito carinhoso: "Baixo, grosso, de olhos claros, bigodão espesso, cabeça redonda, meio corcovado, risonho contador de anedotas, tendo a fala cantada e lenta do nortista, parecia mais um fazendeiro que um poeta. Pleno de alegria, de graça e de oportunidade".

Em Pombal, cidade paraibana onde nasceu, Leandro virou nome de rua. Virou também a cabeça da professora de literatura Ione Severo, que fez uma tese sobre o primeiro poeta do cordel. “Começou daqui. É uma honra para mim, mas me acho também na obrigação de fazer quase um resgate aqui em Pombal da história de Leandro”, disse a professora.

Leandro Gomes de Barros nasceu no Sítio Melancia. Da casa onde ele morou, não sobraram apenas tijolos e entulho. “Conseguimos um desenho de como era esta casa. Estamos tentando que o atual dono faça um monumento aproveitando esse material e tijolos antigos, para valorizar a memória de Leandro”, comentou Ione.

Hoje, quem toma conta do sítio é Francisco Sá Linhares. Ele contou o pouco que sabe sobre Leandro: “Ele nasceu em 1865, saiu daqui em 80. Aí pronto. É só o que eu sei contar. Diz que ele era escritor, mas não li nenhum folheto de cordel, não”.
 
Em outro sítio, moram alguns parentes de Leandro. Genival Formiga de Souza é o sobrinho-bisneto do poeta. O pai dele, Manoel Pedro de Souza, falecido em 2002, contava histórias sobre o antepassado ilustre. “Seu Manoel contava que todo mês de dezembro o Leandro Gomes de Barros mandava de Recife, num jumento, duas cargas de folhetos para família dele vender aqui. Ele costumava dizer que não dava para nada, que no final do dia não tinha mais um folheto. Assim eles se sustentavam”, explicou a professora Ione.

Para Genival, o dom da poesia parou em Leandro Gomes de Barros, por mais que a família quisesse criar outros ‘Leandros’. “Meu pai botou o nome no meu irmão de Leandro pra ver se saia poeta. Saiu que nem sabia assobiar”, brincou seu Genival.

Mas como será que Leandro Gomes de Barros, de família iletrada, virou o grande poeta popular? Ione resume um pouco da história: “Ele saiu do Sítio Melancia acompanhado de um padre da época que o levou para Teixeira, aos 12 anos. A gente sabe que os padres são eruditos, têm muitas leituras, têm uma biblioteca. Imagina-se que Leandro se apropriou dessas leituras, mesmo que poucas, para se escolarizar. Lá ele encontrou cantadores e poetas da época. Eles se juntavam para cantar. Ele foi o primeiro a imprimir na sua própria casa, a vender na sua própria casa e a divulgar pra todo o Nordeste, para todo o Brasil”.

Quando começou a imprimir seus poemas, a publicação se chamava simplesmente folheto. O nome cordel veio depois, como conta Gonçalo Ferreira da Silva: “O verbete surgiu em 1881, por ocasião da publicação do dicionário contemporâneo de Caldas Valente em Portugal”.

No dicionário, cordel aparece como “cordão, guita, barbante”. Literatura de cordel: “conjunto de publicações de pouco ou nenhum valor”. Na época, os próprios poetas não aceitavam essa denominação. Aos poucos foram se acostumando. Hoje, quase não se vê mais o folheto à venda pendurado em barbante, mas o nome cordel pegou.

Os folhetos de Leandro viraram clássicos. Além de O Cachorro dos Mortos, Vida de Canção de Fogo e seu Testamento, História da Donzela Theodora, Vida de Pedro Cem. Alguns deles temperaram a obra de um morador de Recife: o dramaturgo e romancista Ariano Suassuna.

“A minha peça mais conhecida, o Auto da Compadecida, é fundamentado em três folhetos da literatura de cordel. O primeiro ato é baseado em um folheto chamado O Enterro do Cachorro, que depois se descobriu que era de autoria de Leandro de Barros e era um pedaço de um folheto chamado O Dinheiro”, explicou Suassuna.

O Testamento do Cachorro conta a história de um padre, subornado para fazer o enterro de um cachorro. Veja no vídeo como ficam os versos originais que inspiraram Suassuna com as cenas do filme o Auto da Compadecida.

“O segundo é um folheto chamado O Cavalo que Defecava Dinheiro, que também é de Leandro Gomes de Barros. O terceiro é baseado em um folheto chamado O Castigo da Soberba, que é de um grande poeta chamado Silvino Pirauá.

Leandro Gomes de Barros morreu em 1918, deixando centenas de títulos de cordel. A história dos direitos autorais de sua obra mostra que pirataria é problema antigo. É o que contou em São Paulo o doutor em literatura Aderaldo Luciano:

“A viúva acabou vendendo os direitos da obra de Leandro para o João Martins de Athayde. Costumo dizer que o João Martins de Athayde queria ser Leandro Gomes de Barros. E realmente conseguiu ser, porque ao comprar a obra de Leandro, ele começou a publicar como editor-proprietário, depois ele tira o título de proprietário, fica só editor. Depois ele tira o título de editor e fica apenas João Martins de Athayde.”

Em Pombal, a terra de Leandro, encontramos Ione vendendo os livretos na feira. Seu cunhado, Francisco de Oliveira, imita os poetas antigos, declamando versos para atrair comprador.

“Eu que nunca fui medroso
Apenas muito assombrado
Quis correr, porém não pude
Porque estava entrevado
Depois subiu a caatinga
Baixou dez urubus tinga
E eu vi que estava cagado”

“Meu objetivo não é ganhar dinheiro. Mas é fazer com que esses poetas não sejam esquecidos. Que eles sejam lidos, relidos, recontados por aí afora”, concluiu a professora Ione.
 

Você sabe o que é xilogravura? É aquele desenho que enfeita a maioria das capas dos folhetos de cordel. Ao longo dos anos, muitos poetas se tornaram também xilogravuristas.

“Como poeta repórter
Nordestino, brasileiro
Descrevo neste cordel
Um lamentável roteiro
Do mais cruel fanatismo
Num ato de terrorismo
Que abalou o mundo inteiro”

No cordel, aconteceu, virou folheto. Os assuntos são os mais variados. Tem folheto de denúncia, folheto de política e até folheto sobre crimes.

Página por página... capa... grampo. Está pronto mais um folheto. Este sobre o cantor Roberto Carlos.

A editora de cordel mais antiga ainda em atividade não fica no Nordeste, mas na capital de São Paulo. A editora Luzeiro tem no catálogo cerca de 350 títulos e vive exclusivamente da poesia de cordel.

Varneci Nascimento é cordelista e selecionador de textos da editora. Avalia em média 15 novos títulos por mês e destaca que a arte do cordel está na simplicidade. “O cordel deve ser difícil de escrever e fácil de entender. Tem muita gente que rima duas palavras e acha que está fazendo cordel. E não está”.

A editora tem quase 60 anos. O dono atual é o italiano Gregório Nicoló, que admite não entender muito de cordel, mas de negócio. Com pequenos distribuidores, ele vende em média 16 mil folhetos por mês para todo o Brasil.

As publicações têm como marca as capas coloridas. “Foi a primeira editora a se atrever a fazer cordel colorido nesse formato que hoje o pessoal aceita com naturalidade. Nos originais das primeiras capas, o desenho é usado desde 1952”.
 
Os primeiros folhetos traziam na capa apenas o título e o nome do autor. Depois, passaram a exibir alguns desenhos feitos pelos próprios poetas ou por artistas locais, ou ainda, reproduções de fotos usadas na divulgação de filmes estrangeiros. Só por volta de 1930 é que as capas passaram a exibir as xilogravuras.
 
Com o tempo, xilogravura e poesia de cordel viraram artes irmãs. Muitos poetas são também xilógrafos. É o caso do seu Abraão Batista, que hoje trabalha na ilustração de seu próximo folheto.

Seu Abraão é artista conhecido em Juazeiro do Norte, Ceará. “Estou lixando a madeira para a superfície ficar bem lisa porque na gravura qualquer linha já sai”.

Depois da lixa, o desenho e o estilete, que tira o excesso de madeira e faz surgir a figura.
Com a tinta, ela salta da madeira, que agora é chamada de matriz, e vai permitir a impressão de várias xilogravuras iguais. A gravura que se Abraão está trabalhando é para um cordel entitulado “O corno combinado”.
 
Na oficina, seu Abraão tem uma infinidade de matrizes nos temas mais diversos. A melhor madeira é o cedro, dá uma excelente matriz, nos detalhes da textura.

Um dos últimos trabalhos é a homenagem a outro poeta: Patativa do Assaré. “Um filósofo. Um poeta. Um homem cuja cabeça é mais aberta que a de muitos acadêmicos”.

Seu Abraão pinçou algumas frases dele e na xilogravura tem que escrever ao contrário. Como se fosse um carimbo. Uma das frases mais eloqüentes dele: “Para cada canto que olho, vejo um verso se bolindo”.

Entre os folhetos de sua autoria, existem títulos curiosos e chamativos. “Eu vou ler um trecho do cordel ‘A chegada de Lampião no Congresso Nacional’: Tomando conhecimento do terrorismo de Lampião, dos casos acontecidos na cidade do sertão, pediu licença do autor para ver nossa situação”.  
 
Seu Abraão faz poesia de cordel e xilogravuras há mais de 40 anos. Ele já tem um herdeiro na poesia e na xilogravura, o filho Hamurabi, mesmo nome do primeiro rei do império babilônio.

Hamurabi gosta de apresentar seus cordéis em ritmo de embolada. Ao lado do pai, ele exibe suas obras. “O capitão gato preto, aquele da embolada. O anjo Beleléu. Todo anjo termina com éu – Gabriel, Daniel, Rafael, porque não o Beleléu?”

Hamurabi diz que cria os personagens inspirados em si. “Note que o Beleléu tem os dentes entramelados”.

Ao imprimir uma de suas xilogravuras, a prova de que Hamurabi começou mesmo cedo na vida de artista. “Quando eu tinha 10 anos, a minha mão cabia na colher e, de tanto imprimir, com muito gosto e prazer, a minha mão pegou o formato da colher, dá até pra tomar sopa”.

Há alguns anos, Hamurabi vendeu todo o seu arquivo de xilogravuras para um lojista de Portugal. Hoje trabalha em novas matrizes. “Têm trabalhos meus na Europa, na Argentina, nos Estados Unidos. Aqui, pouca gente me conhece, mas lá fora...”.

A xilogravura surgiu bem antes do cordel, mas na capa do folheto foi parar nas mãos de um número muito maior de apreciadores. O desenho que era inspirado na poesia passou também a inspirar poetas da imagem como Ivan Mola, autor do vídeo “Morte e Vida Stanley”.
 

Na história do Nordeste tem vaqueiro corajoso. Lampião, rei do cangaço. Padre Cícero milagreiro. O mundo está cheio de personagens, de boas histórias. Cabe ao poeta saber contá-las em diferentes formas de arte.

“Eram 33 mineiros,
presos na mina chilena.
Foram todos resgatados
Com sua saúde plena.”
 
A notícia de maior destaque em 2010 também virou cordel. O folheto pode ter um jeito antigo, tradicional, mas o cordel continua atual, vivo e novo.
 
Em Campina Grande, na Paraíba, vive um destes poetas que, como o cordel, soube se renovar. Versejando desde os 16 anos, Manoel Monteiro defendeu o que chama de novo cordel:

“O cordel agora não precisa mais ser o livro do povo. O povo todo tem informação. Então, o cordel inteligentemente migrou para a universidade. Foi para o exterior, para as principais universidades do exterior. Maturou e voltou agora para as escolas.”
 
Na sala de aula, cordel pode fazer leitores. “Eis aqui uma releitura do Pinóquio, ou O Preço da Mentira”, disse Manoel. “Uma editora se interessou e publicou o mesmo texto com uma nova roupagem. Eu acho excelente porque a importância do cordel não está na capa, não está no papel, não está no colorido. Está no texto. Agora a vestimenta gráfica tem que ser do século 21, o século que nós estamos vivendo. É isso que eu chamo de novo cordel.”

Um colégio de Maracanaú, cidade vizinha a Fortaleza, se transforma em palco de declamação. Arievaldo Viana e Rouxinol do Rinaré são poetas cearenses autores de vários folhetos e do projeto Acorda Cordel na sala de aula.

“O meu processo de alfabetização foi a partir da literatura de cordel. Utilizei isso aqui como ferramenta na minha alfabetização. Isso me despertou inclusive o interesse pela leitura”, contou Arievaldo Viana para os alunos do colégio.
 
Depois da apresentação dos poetas, é a vez das crianças escreverem suas rimas.

“O povo sofrendo
Está tudo secando
O gado morrendo
E o povo chorando”

“Nós temos a teoria de que o cordel pode ser utilizado em qualquer disciplina”, sugeriu Rouxinol do Rinaré.
 
Não é só através dos livros nas escolas que o cordel ganhou asas e voou para todo canto. O cordel foi também para o teatro. Jacinta de Lurdes e José Maciel são paraibanos e irmãos. Eles encenam cordéis feitos especificamente para o teatro. A peça Porque a Noiva Botou o Noivo na Justiça, escrita pela cordelista Lourdes Ramalho, é apresentada para os funcionários da fazenda Santana, em Campina Grande, na Paraíba.
 
Peça em cordel é um desafio. Impossível improvisar sem perder a rima, mas a dupla de artistas faz isso desde a infância. “Nosso pai tinha uma banca de mangaio na feira. Mangaio é tudo misturado, condimento, cebola, corda e por trás da nossa banca tinha um cordeleiro. Ele vendia os cordéis, só que ele não sabia ler. Para que as pessoas comprassem o cordel, tinha que cantar ou ler. Ele pagava e nós dois, criancinhas, líamos o cordel. A cada dez cordéis que nós vendíamos ele dava um. No final da feira a gente tinha vendido os dele e os nossos”.
 
José Paes de Lira nasceu em Arcoverde, Pernambuco. Começou a decorar poemas ainda criança. Ele ainda se lembra da primeira apresentação que fez: “em 87, tinha 12 anos de idade e disse uma poesia de Patativa do Assaré, Espinho e Fulo”. Ainda adolescente, Lirinha, como é conhecido, formou uma banda que misturava literatura, música e teatro: o Cordel do Fogo Encantado.
 
Lirinha saiu do Nordeste, mas o Nordeste não saiu dele. O Romance do Pavão Misterioso, um dos clássicos da literatura de cordel, virou inspiração na novela Saramandaia, sucesso na década de 70.
 
A influência do cordel está em muitas partes, muitas artes. Tem também cordel na música, nas canções de Luiz Gonzaga, na voz do baiano Raul Seixas e até no nome de um artista de Pernambuco.
 
O nome dele é Fernando Manoel Correa. Talvez pelo nome não seja reconhecido, mas a música dele é bastante famosa. Ele é autor de muitas músicas de sucesso e o nome artístico dele é Nando Cordel. “Meu pai era repentista. Cordelista, mas muito mais repentista. Quando ele chegava em casa começava a mandar os versos para gente. Aí eu comecei a tocar violão e queria ser compositor. Essa foi a fonte”, explicou Nando. “Normalmente eu escrevo as minhas canções todas em cima de cordel.”
 
Nas ladeiras de Olinda, bem ao lado de uma lojinha expõe folhetos, mais um poeta pernambucano: Alceu Valença. “Eu nasci em uma cidade chamada São Bento do Una, que é no interior meridional pernambucano. Essa cultura está lá, presente, viva. Em São Bento tem uma feira e lá existiam cordelistas e violeiros. O cordelista canta lendo o cordel, eu me lembro quando era pequeno de ver o cara cantando. Eu fiz um filme chamado Cordel Virtual, que agora passou a ser A Luneta do Tempo, em que os personagens falam em versos”, contou Alceu Valença.

Como o filme ainda não está pronto, Alceu declama um trechinho do texto:

“Em 1939, Satanás inventou a internet e o computador só pra arranjar um love. O tinhoso sedutor estava afim de casório, tentou Maria Bonita, que penava no purgatório, com e-mails de conquistas. Cantadas doces, dulcíssimas. Era um malandro notório. Maria fez um inferno e contou tudo a Lampião.”

A internet foi parar no cordel de Alceu Valença e o cordel foi parar na internet.
 
Uma das modalidades do cordel, inspirada no repente, é a peleja. Peleja quer dizer briga, combate, luta. Ela pode ser escrita por um único poeta, que cria um duelo entre dois personagens reais ou imaginários ou por dois poetas diferentes, cada um fazendo uma estrofe dessa briga. A peleja moderna é via internet.
 
Em Recife, José Honório, poeta e presidente da União dos Cordelistas de Pernambuco. Em São Paulo, o poeta baiano Marco Haurélio. Como arma, o teclado do computador. “Nosso verso é divulgado em todo canto e lugar. Agora aguente a peleja, pois ela vai esquentar. Cante lá de Pernambuco, que hoje vamos brigar”, cantou Marco pelo computador. “Herança dos menestréis com os europeus, o cordel graças a Deus tem seguidores fieis. O Nordeste finca os pés, volta de novo a crescer. E agora vai florescer, pois a net lhe abriga. O cordel é moda antiga que não vai envelhecer”, respondeu José.
 
No cordel, aconteceu, tem que virar poesia. É assim que esta arte se mantém viva e atual. O final de 2010 foi marcado pela invasão do Morro do Alemão pela polícia, no Rio de Janeiro e os versos da poetisa Dalinha Catunda ainda não foram impressos, mas já estão prontos:
 
“É polícia pra todo lado
É bandido e caveirão
Com essa violência toda
Quem sofre é a população
Que fica presa em casa
Com medo da situação”
 
Para o nordestino, a rima é um vício. E a poesia, uma arma contra as mazelas da vida. Nascido em Recife, filho de serralheiro e dona de casa, Thiago Martins é um destes viciados em verso. Sempre com uma rima engatilhada, armado com poesia.

Já dizia Patativa do Assaré: “para cada canto que eu olho tem um verso se bolindo”. Versos que podem estar no Morro do Alemão ou no sertão nordestino.

É incrível descobrir que o cordel, que sempre pareceu um livreto tão simples, tivesse tanta riqueza. Muitas pessoas jovens foram encontradas fazendo cordel. A seu modo, o cordelista está próximo dos jornalistas, contando e preservando a história do seu tempo. Tudo embalado pela poesia.

Fonte: Globo Rural


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