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São João del-Rei: Voluntários há 20 anos contra a degradação da Serra do Lenheiro

Descrição

Ulisses Passarelli, Miranda, Betânia, Igor, Edmilson, Arlon, um grupo de voluntários pequeno em tamanho, porém grande em visão e em ações. Eles atuam no alto da histórica Serra do Lenheiro, localizada inteiramente no município de São João del-Rei. Tem o propósito de estancar a crescente degradação da Serra, evidenciada em problemas como esgoto, especulação imobiliária, danos ao patrimônio por motos de aventura, incêndios anuais, destruição de plantios de árvores, acúmulo de lixo e escassez de água.

A Serra do Lenheiro esteve na base da constituição da cidade: por seu “caminho do sertão” passaram os primeiros bandeirantes, inclusive o fundador Tomé Portes del-Rei; foi nela que surgiu o primeiro núcleo de povoamento; foi polo de exploração de ouro no período colonial e forneceu matéria prima (pedra e madeira) e lenha para as primeiras construções da cidade, de acordo com o geógrafo Arlon Cândido Ferreira em sua dissertação de mestrado.

Em meados do ano 2000, o professor Antônio Gaio Sobrinho liderou uma caminhada pela região da Arambinga, na Serra do Lenheiro. A partir daquele momento, Luiz Antônio Sacramento Miranda, técnico em turismo, e Ulisses Passarelli, pesquisador, uniram-se numa intensiva busca e observação das características históricas, geográficas e naturais da Serra. “No primeiro momento o objetivo era o conhecimento pessoal, logo estendido para a composição de um roteiro turístico, que revelasse os atrativos ao longo das trilhas.”

A equipe foi crescendo. Em sua tenra infância, Iago Christino Salles Passarelli, filho de Ulisses, ingressou no grupo, “crescendo por assim dizer na Serra e contribuindo com as descobertas e, em grande parte, com as fotografias”. O início foi difícil, “com altos e baixos, momentos de mais avanço e outros de lentidão, mas nunca paramos. Promessas de publicação do roteiro fracassaram, mas o trabalho seguiu em contínuo aprimoramento”, revela Ulisses.

O ano de 2015 foi decisivo. Ante a ameaça crescente dos processos destrutivos sobre a Serra, Ulisses e Miranda resolveram reconfigurar a pesquisa, dando-lhe o formato de dossiê. “A base inicial dos conhecimentos até então adquiridos foi a estrutura central. Sobre ela, a pesquisa se intensificou extremamente, sobretudo focada no patrimônio arqueológico.”

Foi neste momento que o grupo ganhou mais um integrante: Edmilson Rezende de Sales, que se tornou “participante fundamental, pois já tinha larga experiência preservacionista daquele ambiente e vinha fazendo diversos trabalhos em prol da Serra”, conta Ulisses. Em 2018, o frupo foi fortalecido com a entrada da turismóloga Betânia Nascimento Resende, companheira de Ulisses, que tinha igualmente histórico de preservação da Serra.

Assim, o grupo de voluntários consolidou-se, diz Ulisses. “Outros parceiros prestaram colaboração em diversos momentos, ora pontual, outras vezes mais extensa.” É o caso do geógrafo Arlon Cândido Ferreira, “que muito tem colaborado na revelação da geodiversidade do Lenheiro”, tendo já sido incorporado ao grupo.

Para além das pesquisas, o grupo continuamente realiza trabalhos de coleta de lixo na Serra e participa de ações, como plantio de mudas de espécies nativas, educação ambiental e patrimonial, controle de danos aos muros de pedras. “A pesquisa de campo (que durou cerca de 20 anos) e a montagem do texto estão concluídas. Estamos em preparativos para divulgação do conteúdo”, conta Ulisses.

Dossiê da Serra

A ideia é publicar um “dossiê” da Serra, como define Ulisses. O “miolo” será constituído da exposição do levantamento dos bens patrimoniais, com o formato propriamente de inventário, devido ao fichamento da matéria. “Esta sistemática facilitou a exposição e organização do conteúdo. Também facilita muito a consulta, pois as quarenta fichas estão em ordem alfabética.”

O objetivo deste trabalho é revelar as riquezas patrimoniais da Serra com intuito de despertar nas pessoas a consciência sobre a necessidade de preservação, resume Ulisses. “Esperamos com isto contribuir com a ampliação do senso de pertencimento da Serra do Lenheiro e seu vínculo identitário à são-joanidade.”

A intenção é que haja uma publicação impressa, com a totalidade dos textos e uma seleção de fotografias, e outra digital que some ao texto um amplo documentário fotográfico. Não se trata de obra didática, “embora possa perfeitamente ser usada para ensino. É antes uma obra de referência, dada a amplitude dos assuntos abordados e a profundidade a que neles dedicamos”, explica Ulisses. “Esperamos que seja a semente de mais um movimento ou campanha popular em favor do Lenheiro. Queremos contar com o apoio da comunidade, da imprensa, de instituições e do poder público.”

Para isso, o grupo está em busca de parcerias para concretizar o trabalho. “A Secretaria Municipal de Cultura e Turismo e o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural tem sido muito sensíveis e acolhedores.”

Ulisses faz questão de enfatizar que o trabalho é totalmente voluntário. A equipe de pesquisa “nunca recebeu nenhum subsídio, pró-labore, recurso público ou privado para fazer o que faz. Repetimos que é um exercício de voluntariado, uma ação cidadã consciente. Tampouco tem objetivos político-partidários”.

“A hora da Serra chegou”

Ulisses Passarelli repetiu mais de uma vez esta frase, durante encontro, no dia 3 de março, por ocasião da “2ª Semana do Patrimônio”, promovida pelo Museu Regional, com a participação, ainda, do técnico em turismo Luiz Miranda e do professor José Saraiva Cruz, do núcleo ambiental do IF Sul de Minas. Para isso, entretanto, defende uma ampla união, que ultrapasse as ações isoladas, congregando escolas, igrejas, associações de bairro, proprietários do entorno, universidades, o poder público municipal e o Ministério Público, entre outros, “por uma causa única que é salvar esse patrimônio maravilhoso”.

Na mesma linha, o professor José Saraiva alertou que a preservação da Serra do Lenheiro não pode ficar restrita a “ações pontuais” de pessoas ou grupos; “é preciso que haja mais conecções”. “Para realmente conservar e começar a fazer com que a Serra gere frutos advindos das atividades econômicas sustentáveis, integradas à conservação ambiental, é preciso que haja uma integração entre as várias instituições.”

O professor Saraiva conta que começou a realizar trabalhos na Serra em 2016, quando foi convidado para participar da formação do conselho do Parque Ecológico Municipal da Serra do Lenheiro. “O conselho foi criado por uma pressão do Ministério Público, para que se fizesse valer a lei da criação do parque nos anos 1990, mas a gestão tem que ser da prefeitura, ela tem que administrar”, disse. “E a prefeitura, até hoje, não tem no seu organograma, entre os funcionários, pessoas designadas para o parque, nominalmente.”

O parque, sob a responsabilidade da prefeitura, foi criado com o intuito de ser uma unidade de conservação, o “que requer todo um tratamento especial para cumprir as suas funções”, explica o professor Saraiva. Embora considere que foi uma designação apropriada para aquela região, “porque permite que se compatibilize a preservação, a conservação, e o lazer, a recreação sustentável”, faltou dar o passo seguinte.

O que a prefeitura fez foi colocar um funcionário no parque, o Washington, “que é mais um desses guerreiros” que carregam nas costas a questão da preservação, da conservação, adverte o professor Saraiva. O funcionário acaba por cumprir várias outras funções e “não tem como fiscalizar aquilo lá (a área), nem foi preparado para isso, não tem treinamento para ser o gestor, e assim mesmo não conseguiria sê-lo”.

Portanto, falta no organograma esse cargo de gestor para a unidade, conclui. “Muitas vezes você tem recursos possíveis de serem usados, no fundo de meio ambiente do município, mas não se consegue utilizar porque você não tem os mecanismos postos pra fazer essa gestão. A área do parque já vinha sofrendo uma degradação enorme, mas nesses últimos anos a situação vem piorando e gente vai perdendo aquele impulso inicial que teve em 2016.”

Problemas

Incêndio (I) - Dias e dias de queimadas acontecem na Serra do Lenheiro, como na grande seca de 2020. Os brigadistas (a Brigada de Incêndio, núcleo de São João del-Rei), como voluntários, heroicamente lutam para apagar o incêndio, com uma dificuldade extrema, um serviço perigoso, arriscado... Mas parece que não há comoção social, não se vê comentários nas mídias sociais. Muito diferente do que acontece na Serra São José. Parece que as pessoas não sentem a Serra do Lenheiro como parte delas (Ulisses Passarelli).

Incêndio (II) – Na época de seca, o povo não tem tem misericórdia: é fósforo queimando pra todo lado, tudo quanto é moita de capim pega fogo. O fogo alastra e danifica as vegetações; não dá tempo de a vegetação se recuperar porque ela queima todo ano. Então, a recuperação de certas áreas é muito difícil; vão tornando-se áreas muito degradadas onde há uma seleção de espécies; aquelas mais sensíveis vão se perdendo, as mais resistentes vão ficando e começam a virar praga. Resultado: os processos erosivos estão cada vez mais intensos. O Olho d´água, por exemplo, no fundo do Sr. dos Montes, é um balneário que as pessoas usam – em plena área do parque - para tomar banho, para o lazer... Um monte de cascalho e areia está se acumulando na margem do córrego... Essa areia e esse cascalho estão descendo porque, na parte mais alta, o suporte desse cascalho e dessa areia está sendo retirado (Ulisses).

Oportunidade perdida - Beira ao absurdo deixar de aproveitar o potencial da Serra do Lenheiro. O turismo está entre as principais atividades econômicas da cidade. Mas estamos deixando que se destruam coisas que são representantes da nossa herança colonial, história e o próprio patrimônio natural, sem que haja um trabalho mais consistente para poder proteger; e, ao mesmo tempo que conservar, também produzir riqueza, renda para as pessoas, principalmente as que estão ali naquele entorno (professor José Saraiva).

Motoqueiros - Uma turma de motoqueiros, pelo prazer de circular na Serra de moto, está destruindo muita coisa dentro e fora do parque: passa por cima de um muro de pedra; abre caminho numa estrutura arqueológica que tem proteção federal... Marcas de roda, processo erosivo estão por todo lado. Esse grupo estraga o patrimônio de todos. Está na hora de todas as forças - públicas, populares, sociedade civil organizada – se unirem para sair dessa fase primária. Isto tudo está documentado em fotografia e em vídeos (Ulisses).

Caixa d´água doente - Nessas caminhadas de duas décadas, havia lugares que a gente passava, em qualquer época do ano, e tinha água potável. A gente parava naquele corguinho, levava as mãos e pegava água, bebia, passava no rosto, enchia o cantil. Hoje, a gente passa, não tem água nenhuma, está seco de tudo. A biquinha, uma fonte de água no Olho d´água, está secando há uns três anos. Em 2020, pela primeira vez, o chamado Córrego do Tanque, que vem da Cachoeira do Véu de Noiva, simplesmente secou, virou só poças d´água... E olhe que a região da nascente está bem preservada, com uma mata de galeria muito boa. Se está nesse estado, imagina o resto. A Serra é a caixa d´água da cidade. A chuva cai, infiltra naquelas areias, para nos lajedos e depois a cidade aproveita essa água. Daqui cinco, dez anos, São João del-Rei poderá passar por longas crises hídricas, que vão afetar a cidade inteira porque a nossa caixa d´água está doente. (Ulisses).

Plantios destruídos - No Dia da Serra do Lenheiro, nos últimos anos, nós fizemos vários projetos em educação ambiental, envolvendo as escolas, principalmente a Idalina Horta Galvão, do Sr. dos Montes. Entre as várias atividades de recuperação, todo ano se fazia algum tipo de plantio, mas infelizmente essas ações pontuais acabam se perdendo por falta de fiscalização numa administração constante. Então, aquelas mudas que a gente plantava acabavam sendo consumidas pelo fogo ou pela falta de um cuidado assim mais primário ou então pelos próprios animais. E muitas árvores que começavam a crescer eram quebradas ou pelos motoqueiros – aqueles que fazem atividades irregulares dentro do parque – ou por aqueles que retiram madeira até hoje. Então, são muitas atividades predatórias... Acho que falta essa interação com a população como um todo, para que ela possa realmente sentir que a serra é prioridade, que ela está num nível máximo de exaustão e que, infelizmente, estamos em risco iminente de perder esse patrimônio gigantesco (professor José Saraiva).

Lixo abandonado – Ao longo de todos esses anos, toda vez que nós subimos a Serra, levamos conosco sacolas e sacos de lixo e, por todo o caminho, fazemos coleta de lixo... Nas regiões onde há mais demanda de balneário, o pessoal leva refrigerante, latinha de cerveja, pacote de salgadinho... E aí a gente encontra coisas absurdas... Em 25 de janeiro, nós fomos pesquisar a questão do patrimônio na região de Sete Metros; aí começamos a catar lixo e nos assustamos quando, num primeiro momento, enchemos três ou quatro sacolas de supermercado... E mais dois sacos daqueles de ráfia lotados – lixo dos outros... No dia seguinte, voltamos lá e trouxemos os sacos cheios de volta para a cidade. Dez dias depois, numa segunda-feira depois do fim de semana, voltamos lá e coletamos seis sacos de lixo de 60 litros na região um pouco acima do Sete Metros e, no meio do lixo, coletamos um carrinho de bebê que estava abandonado no mato. Nós trouxemos e colocamos no ponto para o lixeiro levar. Todo mundo pode colaborar levando um saco vazio e trazendo o seu lixo de volta quando vai passear na Serra (Ulisses).

Esgoto - Um problema seríssimo na Serra é a questão do esgoto. A cidade cresceu, e está crescendo, e, se deixar, engole a serra. Existe uma pressão imobiliária muito grande. Então, a tendência é que aquelas margens, aquela proximidade, vão ser loteadas ou ocupadas e depois essas casas terão de ser supridas com a rede de esgotamento sanitário, fornecimento de água, energia elétrica... Então, a compatibilidade disso com o meio ambiente tem de ser estudada antes de qualquer liberação. Ao longo de muitos anos, na região do Sr. dos Montes, uma parte das construções ultrapassou a cumieira do morro em direção à serra. Não tem como esgoto subir morro... Então, como não tinha caimento para a cidade, esse esgoto ao longo dos anos foi sendo jogado para dentro da área da Serra. Parece que há muitos anos foi feita uma fossa séptica, que já está completamente esgotada; então existe um escorrimento de esgoto que fica na entrada do parque municipal, na região do Córrego Seco... Um metro depois da estrada ele já está caindo no mato e escorre para o leito do Córrego Seco, que é uma área de proteção, e logo abaixo vai contaminar o Ribeirão São Francisco Xavier, justamente numa região tão maravilhosa chamada “Bacião” que tem o Poço das Lavadeiras... Esgoto correndo em área de proteção ambiental (Ulisses).

Íntegra do encontro “Serra do Lenheiro: Patrimônio Natural” no Museu Regional de São João del-Rei: https://www.youtube.com/watch?v=6r8tQgR3ELg

Fonte: Jornal das Lages

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