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Roubos de antiguidades pelos nazistas começam a ser desvendados 80 anos depois - gregos esconderam peças até em cavernas

Descrição

Quando as tropas nazistas invadiram a Grécia em 1941, Julius Ringel, um major-general do exército alemão, teve o papel ativo de iniciar escavações ilegais na ilha de Creta, onde a Civilização Minoica havia florescido mais de três mil anos antes.

A terra era rica em artefatos da herança cultural da ilha, e Ringel, muitas vezes ajudado por suas tropas, carregava todo tipo de cerâmicas, vasos, partes de estátuas — algumas para benefício próprio e outras para serem enviadas aos museus alemães como espólios da guerra.

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Comandante da 5ª Divisão de Montanha, Ringel também saqueou tesouros ancestrais que já haviam sido descobertos. Ele confiscou antiguidades da Villa Ariadne, a antiga casa do arqueólogo britânico Sir Arthur Evans, convertida no quartel-general da divisão. Ele furtou outros artefatos de uma sala trancada no histórico Palácio de Cnossos, um sítio arqueológico de cinco acres que era o centro da cultura minoica, segundo especialistas.

Oficiais do exército como Ringel não estavam apenas escavando e saqueando antiguidades para enriquecimento próprio, mas também eram responsáveis pela destruição de antiguidades em Creta, Macedônia, Tirinto, Assini e Samos — disse Vassilios Petrakos, estudioso que é curador de antiguidades e secretário-geral da Sociedade Arqueológica de Atenas.

Ainda que as façanhas de Indiana Jones no cinema nos anos 1980 tenham fornecido a visão popular e ficcional de um desejo nazista por antiguidades, o mundo das artes, compreensivelmente, concentrou mais atenção na apreensão de arte de judeus.

Mas o tema sobre o papel nazista no saque de antiguidades está chamando cada vez mais a atenção, em parte pelo trabalho de estudiosos que estão desvendando os mistérios do que aconteceu com os objetos que foram escavados ou apreendidos oito décadas atrás.

Na primavera passada, por exemplo, “The past in shackles”, um estudo de cinco volumes sobre o saque de antiguidades na Grécia durante a Segunda Guerra Mundial, escrito por Petrakos, foi publicado.

— A pesquisa se intensificou em diversos países, incluindo Estados Unidos, Alemanha, Itália, França, Polônia e Grécia — conta Irene Bald Romano, professora de antropologia da Universidade do Arizona e curadora de arqueologia mediterrânea do Museu do Estado do Arizona.

Simpósios e palestras sobre saques de antiguidades pelos nazistas foram realizados em várias cidades nos últimos anos, incluindo um na College Art Association, em Nova York, que apresentou um painel sobre o tema em sua conferência anual no último mês de fevereiro.

— Os estudos que foram feitos até o momento apenas arranham a superfície do tema — aponta Romano em entrevista por telefone.

Escultura de Aphrodite, Pan e Eros Foto: Hellenic Ministry of Culture and Sports/Hellenic Organization of Cultural Resources Development; National Archaeological Museum, Athens / NYT
Escultura de Aphrodite, Pan e Eros Foto: Hellenic Ministry of Culture and Sports/Hellenic Organization of Cultural Resources Development; National Archaeological Museum, Athens / NYT

Romano é co-editor do inédito “The Fate of Antiquities in the Nazi Era”, uma edição online especial da RIHA, publicação da Associação Internacional de Institutos de Pesquisa em História da Arte, que será produzida em associação com o Getty Research Institute e o Instituto Central de História da Arte de Munique. A edição está programada para ser publicada ainda este ano.

— As antiguidades não receberam o tipo de estudo aprofundado que mereceriam acerca do destino das antiguidades gregas, romanas, bizantinas, etruscas, próximo-orientais e egípcias saqueadas pelos nazistas — explica Claire Lyons, curadora de antiguidades do Museu Getty. — Precisamos focar mais esforços na Segunda Guerra.

A passagem do tempo dificultou para os estudiosos de hoje quantificar o alcance do saque de antiguidades que ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial, seja da Grécia, Itália ou Oriente Médio, especialmente no Egito.

— Uma visão completa do que foi furtado não existe e não é mais possível — lamenta Petrakos, referindo-se à situação na Grécia. — Os saques foram realizados por militares alemães e italianos, que roubaram museus e artefatos das escavações. Nem sabemos a quantidade de itens que foram encontrados nessas escavações.

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O rastreamento de itens é dificultado pelo fato de que o saque ocorreu num período em que o mercado de antiguidades estava florescendo, especialmente na Alemanha, Suíça e França — particularmente na Paris ocupada.

Hoje em dia, apontam os especialistas, a Alemanha tem sido bem solícita com relação aos pedidos de repatriação de antiguidades saqueadas, embora não esteja claro se algumas ainda residam em seus museus, porque pode ser muito difícil determinar a história completa de artefatos antigos.

— Os alemães foram muito abertos sobre suas coleções, criaram bancos de dados para tornar as informações e arquivos de suas coleções acessíveis, realizaram pesquisas de proveniência em museus públicos e restituíram muitas obras de arte — aponta Romano. — A situação não é perfeita, mas a Alemanha tem um alto padrão para museus com relação a questões de proveniência, especialmente durante o período nazista.

Embora pequenas escavações tenham ocorrido sob supervisão alemã em toda a Grécia, houve grandes escavações na região da Tessália, no norte do país, revela Petrakos. Segundo ele, as escavações da Tessália foram organizadas por Alfred Rosenberg, o teórico nazista que chefiava o Einsatzstab Reichsleiter Rosenberg, que saqueava artes, arquivos e bibliotecas por toda Europa.

Heinrich Himmler, chefe da Gestapo e da SS, também iniciou escavações na Grécia sob os auspícios de sua organização Ahnenerbe (Herança Ancestral), visando provar que os alemães faziam parte de uma raça ariana e herdeiros da cultura grega antiga.

Obras enterradas

Na Itália, algumas antiguidades foram exportadas para a Alemanha sob a autoridade direta de Benito Mussolini. Na Grécia, em antecipação à invasão nazista em abril de 1941, museus começaram a esconder objetos seis meses antes. Algumas obras foram colocadas em cavernas, criptas ou enterradas em jardins para protegê-las de bombardeios e saques. Algumas estátuas foram colocadas horizontalmente em valas, que foram preenchidas com areia e seladas com cimento. Peças de ouro e catálogos de museus, vistos como valiosos inventários do que as instituições possuíam, foram enviados para os cofres do Banco da Grécia.

— O esconderijo de antiguidades foi bem sucedido apenas para os grandes museus, aqueles de Atenas, Olímpia, Delphi, Tessalônica e Cálcis — fala Petrakos. — Os museus menores, exceto o de Náuplia, não foram protegidos adequadamente e muitas antiguidades foram roubadas.

Eleni Pipelia, arqueóloga do Ministério da Cultura grego, disse que uma escultora que conhecia a relatou que, durante a guerra, criou antiguidades falsas e as vendeu para os alemães ocupantes em um esforço para saciar a necessidade deles em levar antiguidades para casa e para arrecadar dinheiro para a resistência.

Outro herói da preservação de antiguidades gregas foi Nikolaos Platon, diretor do Museu Arqueológico de Heraclião, em Creta, que, com certo risco pessoal, era conhecido por brigar com alemães para impedir o saque.

Platon, que morreu em 1992, manteve um inventário dos itens que Ringel havia tirado do Museu de Heraclião. Há quatro anos, com base em parte nas pesquisas e relatórios de Platon, a Universidade de Graz, na Áustria, devolveu 26 antiguidades ao museu que haviam sido levadas por Ringel, segundo Georgia Flouda, curadora de antiguidades pré-históricas e minoicas do museu.

Uma instituição, o Museu Pfahlbau em Uhldingen-Mühlhofen, na Alemanhã, devolveu mais de 13 mil artefatos que foram retirados da Tessália - fragmentos de cerâmica, pequenas figuras de barro, ferramentas de pedra, ossos de animais, documentos de escavação e fotos que agora estão nos depósitos do Museu Arqueológico Nacional de Atenas, de acordo com Kostas Nikolentzos, chefe do departamento de antiguidades pré-históricas, egípcias, cipriotas e próximo-orientais do museu.

A restituição começou em 1951 e foi concluída em 2014 — conta Nikolentzos. Segundo ele, os itens não foram exibidos publicamente, em parte porque muitos estavam em más condições no momento da escavação.

Funcionários do Museu Nacional de Atenas Foto: Hellenic Ministry of Culture and Sports/Hellenic Organization of Cultural Resources Development; National Archaeological Museum, Athens / NYT
Funcionários do Museu Nacional de Atenas Foto: Hellenic Ministry of Culture and Sports/Hellenic Organization of Cultural Resources Development; National Archaeological Museum, Athens / NYT

A doutora Maria Lagogianni-Georgakarakos, diretora emérita do museu disse que a duração do processo de repatriação foi influenciada pela divisão da Alemanha ao final da guerra. — Documentos e antiguidades foram divididos em vários locais da Alemanha Oriental e Ocidental. O diretor do Museu Pfahlbau explicou que foram necessárias duas décadas para que as pesquisas sobre as origens das antiguidades fossem concluídas.

O saque de antiguidades nazistas entra em foco quando museus de todo o mundo enfrentam uma pressão crescente para revisar itens originalmente adquiridos por colonizadores e forças de ocupação em épocas que antecedem a Segunda Guerra Mundial.

— A Grécia foi saqueada desde as Guerras Persas — relembra Petrakos.

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— O Museu Britânico, assim como muitos museus nacionais europeus, estão cheios de objetos que foram apreendidos em várias circunstâncias de territórios coloniais e outras esferas de influência europeias ao redor do globo — explica Elizabeth Marlowe, professora associada de arte antiga e medieval da Colgate University e especialista em saques e repatriação de antiguidades.

Como as antiguidades saqueadas pelos nazistas foram repatriadas ou devolvidas aos seus donos originais, muitas foram vendidas ou doadas para os principais museus do mundo.

O Getty possui duas antiguidades – uma estatueta de bronze de uma mulher e uma gema de cornalina – que foram restituídas após terem sido vendidas a um negociante que adquiria obras para Adolf Hitler, segundo Lyons, curador de antiguidades do museu. As obras estão em exposição na Getty Villa.

Busto de um estadista ou filósofo Foto: Museu de Belas Artes de Boston / NYT
Busto de um estadista ou filósofo Foto: Museu de Belas Artes de Boston / NYT

Victoria Reed, curadora de proveniência do Museu de Belas Artes de Boston, disse que descobriu que o museu possui três esculturas clássicas que foram devolvidas a um colecionador depois de confiscadas pelos nazistas e depois restituídas: um busto de um estadista ou filósofo e um jovem sátiro, ambas guardadas no arquivo, e uma escultura em relevo, que está em exposição.

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— Ao contrário das pinturas de antigos mestres, muitas antiguidades são extremamente difíceis de pesquisar — aponta Reed. — Não são atribuíveis a um artista em particular, e os critérios, incluindo um título descritivo, dimensões e condições podem mudar drasticamente em um curto período, com perdas ou acréscimos.

Mas Reed revela que a pesquisa está se tornando mais fácil. — Muitos livros e catálogos estão cada vez mais acessíveis por meio de serviços de digitalização online. A Universidade de Heidelberg, o Getty Research Institute e os Museus Estatais de Berlim colaboraram para disponibilizar o conteúdo de milhares de catálogos de leilões da Alemanha, Áustria e Suíça. Arquivos de fotos e registros digitalizados de organizações nazistas e aliadas estão disponíveis online.

Flouda, curadora do Museu Arqueológico de Heraclião que pesquisou as escavações alemãs em Creta, disse estar preocupada com o fato de que aqueles que rastreiam o que aconteceu com antiguidades saqueadas ainda não tenham acesso total às pesquisas realizadas por alguns estudiosos alemães e austríacos.

— Não temos todas as evidências e nem sempre estamos em condições de saber quais documentos estão escondidos na Alemanha e na Áustria — disse. — Mas muitas vezes, novos documentos vêm à tona e não podemos excluir a possibilidade de que houve mais escavações das quais não temos conhecimento.

Fonte: O Globo Cultura | Milton Esterow / The New York Times | 25/01/2022 por Conservação e Preservação do Patrimônio Histórico

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