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Missa inculturada . Antônio Gaio Sobrinho

Descrição

A palavra inculturada é particípio de inculturar, que deriva de  inculturação. E inculturação é quase sinônimo de encarnação. O Cristianismo tem, como um de seus dogmas mais importantes, a crença de que Jesus é a encarnação humana de Deus, pois como diz Paulo, Jesus tinha a condição divina, mas, esvaziou-se a si mesmo e assumiu a condição de servo, tomando a semelhança humana (Fl 2,6.7), ou, ainda, João: O Verbo se fez carne e habitou entre nós (Jo, 1,14).

E Jesus, antes de sua ascensão aos céus, deixou a seus seguidores a incumbência de se espalharem pelo mundo,  levando a mensagem evangélica a todos os povos. Para isso, é claro, eles também tiveram de se adaptar a cada nação, de aprender não só a língua de cada povo, mas também seus costumes, seus cantos, suas expressões de alegria, quais recursos indispensáveis ao bom desempenho de sua missão.

A Festa de Pentecostes, ou Festa do Divino, relembra-nos exatamente como tudo isso começou: achavam-se em Jerusalém pessoas vindas de todas as nações da Terra (At 2,5) que tiveram a sorte de receber dos apóstolos, cada qual na própria língua, a boa notícia da salvação. E, desde então, o Espírito Santo de Deus vem repetindo, de forma sempre imprevisível, esse milagre, pois que os povos todos da terra, cada qual na sua língua, continuam recebendo a mesma mensagem. De forma imprevisível porque é inútil que qualquer religião, igreja ou povo envide esforços por monopolizá-lo. Ele é de todos.

Os brasileiros são uma sociedade formada, basicamente, de três povos ou de três culturas: os ameríndios, os europeus, os africanos. Entretanto, a liturgia católica, no Brasil, vinha se utilizando quase exclusivamente de elementos da cultura branca européia. Mas, as reformas litúrgicas, introduzidas na Igreja, de 50 anos para cá, permitiram que, ocasionalmente, no Brasil, se empregassem também alguns elementos culturais dos índios e dos negros. Foi assim que, por iniciativa de dois bispos – Hérder Câmara e Pedro Casaldáliga –  se compôs, por exemplo, um ritual celebrativo da missa, com a cara dos índios, a chamada Missa da Terra Sem Males, e, da mesma forma, a Missa do Quilombos, com o bonito jeito negro de celebrar. São ambas os melhores exemplos de missas inculturadas.

Inculturada na cultura negra tem sido também a Missa que, neste últimos anos, no santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, vem sendo celebrada na noite da sexta-feira que precede o domingo de Pentecostes. Nela predominam os ritmos, os cantos, as danças, os gestos, os instrumentos, tudo de acordo com o jeito alegre de celebrar dos povos negros, com suas vestimentas coloridas, que incluem abadás e saris, equetés e colares. A iniciativa é do Grupo de Afrodescendentes Raízes da Terra, do Bairro de São Geraldo. Na celebração deste ano, os momentos mais bonitos foram: o glória, a entrada da Bíblia, a oração eucarística, o abraço da paz e a comunhão.

A versão tradicional do glória foi  substituída pelo alegre canto do Tá caino fulô – Cai do céu, cai na Terra – ô tá caino fulô. Enquanto se canta, jovens ialorixás, vestindo saris brancos, percorrem dançando os espaços da igreja, lançando sobre os assistentes pétalas de rosas. Rosas que são sacramentais, símbolos das bênçãos e das graças que Deus faz cair do céu sobre a terra.

A entrada da Bíblia, precedida por um toque de berrante, se fez ao som do canto:  fazei ressoar a palavra de Deus em todo lugar. Enquanto isso uma jovem negra entrou, dançando em giros, apresentando a Bíblia para que todos a pudessem reverenciar. Diante do belo espetáculo, a nossa lembrança  voou  para  aquela  passagem  do  2º Livro  de Samuel  que  fala  da  alegria  de  Davi  e dos israelitas, conduzindo, em procissão, a Arca da Aliança: Davi e toda a casa de Israel dançavam, com todas  as  suas  energias,  cantando  ao  som  das  cítaras,  das  harpas, dos tamborins, dos pandeiros e
címbalos. No nosso caso, a Arca era a Bíblia e os instrumentos foram pandeiros e tambores, atabaques e agogôs, chocalhos e berrante. O objetivo,  porém, era o mesmo: celebrar a vida, glorificar a Deus com alegria, cada povo no seu jeito, na sua cultura.

A oração eucarística se traduziu, no poético Bendito Eucarístico, com palavras teológicamente exatas, que, acredito, seja uma composição de Dom Pedro Casaldáliga. Esse hino, para mim a parte mais bonita de toda a celebração, foi cantado alternadamente pelo padre que presidia a celebração e pelos integrantes do Raízes da Terra, em melodia de Folia de Reis, ou antes, Folia do Divino..

O abraço da paz foi um momento de confraternização, com o canto: Você sabe a cor de Deus?. Ninguém sabe, nem a cor, nem o sexo, nem a nacionalidade. Por isso, entre nós não deve haver mais nem judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher (Gl 3,28). São tempos de ecumenismo. Precisamos de Paz. Estamos carentes de Axé! Necessitados de Shalon!

 Durante a comunhão, o que experimentamos foi um convite a fazer da vida uma permanente alegria, uma constante partilha, um mundo fraterno, sem fronteiras nem desigualdades. Ô Alê aô! A mesa está pronta o Senhor já me chamou. Co’a flor do trigo, o Senhor me alimentou, com o vinho santo, o Senhor me saciou. Povo negro! Povo sofrido, mas feliz, feliz até nas tristezas. Povo que constrói a história, povo negro que é vida, povo negro que luta, povo negro que é santo, povo negro que confia e espera. Foi Olorum quem mandou celebrar esta história!

À ação de graças somou-se uma filial homenagem à Negra Mariama, também inculturada, Nossa Senhora Aparecida. Ação de graças que foi também nossa por termos podido participar dessa celebração tão linda. Ação de graças por esta gente preta tão festiva e alegra que a África, um dia, nos mandou. Ação de graças por aquele dia  – 25 de maio – que coincidiu com o Dia Internacional da África.  África, Mãe Preta da Humanidade, berço primeiro da vida, a quem o Brasil e São João del-Rei tanto devem.

Axé, irá chegar um novo dia... E é na esperança desse dia que, não só o povo negro, mas todos nós, igualmente sofridos, vamos vivendo. Esperança que não desiste, que insiste, que persiste. Esperança de igualdade entre os povos, de justiça social, sem corrupção, sem ladroagem, sem gatunagens políticas. Esperança do Reino de Olorum, do paraíso terrestre, da divina utopia de Jesus.

Antônio Gaio Sobrinho
Fonte: 
Jornal Asap

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