São João del Rei Transparente

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Tipo: Artigos / Cartilhas / Livros / Teses e Monografias / Pesquisas / Personagens Urbanos / Diversos

Escopo: Local / Global

 

Nem só de pão (de queijo) vive o homem . Antonio Emilio da Costa

Descrição

Costa, Antonio Emilio da
Nem só de pão [de queijo] vive o homem / Antonio Emilio da Costa. – Brasília, 2009.
xvi, 81 f.: il.
Monografia (especialização) – Universidade de Brasília, Centro de Excelência em Turismo, 2009.
Orientador: Klaas Woortmann.
1. Turismo. 2. Gastronomia. 3.Minas Gerais. I. Título. II. Título: uma revisão.

Monografia apresentada ao Curso de Especialização em Formação de Professores na área de Turismo da Universidade de Brasília – UnB, como requisito parcial para obtenção do título de Especialista em Turismo.

Agradecimentos
Credito o mérito desta monografia a todos que conviveram comigo no período de março a julho de 2009 – aos que já faziam parte de minha vida e aos que passaram a fazer. São igualmente importantes e contribuíram igualmente para a realização deste trabalho.
Confesso minha gratidão a Minas, pó do universo de que fui criado, e também à UnB, janela para o infinito do saber, que tanto aprecio. Sou grato ao amigo Micênio Santos – sua ausência não impediu que estabelecéssemos um diálogo, mudo mas pleno de reflexões e respostas.
Os entrevistados, que generosamente cederam seu tempo e emprestaram sua história para o testemunho de observações e considerações, também merecem e recebem meus agradecimentos.
No meio acadêmico, agradeço à Professora Fátima Guerra, pelo estímulo e incentivo, e à Professora Sandra Lestering, que trouxe o lume solidário, numa hora sombria.
Por fim, meus agradecimentos aos professores Ellen e Klaas Woortmann: seus diálogos e orientações me ensinaram que, por meio da simplicidade e do desprendimento, é mais fácil perceber melhor o que está à nossa volta, mas nem sempre está à vista.
A todos, muito obrigado!

Resumo
A cozinha típica mineira expressa, na contemporaneidade, a formação e a evolução histórico-cultural de Minas Gerais ao longo de trezentos anos. Culinária rica de símbolos e significados, reproduz e transmite características, valores e ideais da alma mineira, descritos na obra literária de poetas e escritores daquele Estado.
Elemento identitário, de identificação e territorialidade do povo mineiro além das montanhas de Minas, a comida típica é discurso que pode ser articulado para favorecer o desenvolvimento turístico de Minas Gerais.
Palavras-chave: Comida típica. Poesia. Identidade. Memória. Patrimônio. Minas Gerais.

O título Nem só de pão [de queijo] vive o homem é citação alegórica à frase bíblica “nem só de pão viverá o homem”, presente nos evangelhos segundo São Mateus (4:4) e segundo São Lucas (4:4).

Abstract
The typical food expresses in contemporary times, the formation and culturalhistorical development of Minas Gerais over three hundred years until now. Rich food with symbols and meanings shows and transmits characteristics, values and ideals of the minero’s soul, described in literary publications of poets and writers
from that state. The typical food as an identity element, meaning identity and territory to the people beyond the mountains of Minas, is a speech that can be articulated to promote tourism development in Minas Gerais.
Key words: Typical food. Poetry. Identity. Memory. Heritage. Minas Gerais.

“(...) Mas há uma receita mais saborosa para você conhecer (e fazer) Minas Gerais: É sentar-se a uma mesa mineira e ir provando, devagarinho, os pratos típicos do País das Gerais.
Aí, talvez, você conhecerá melhor Minas, e conhecerá um personagem, o mineiro – que não é só um passionário de conspirações libertárias, não, é um homem cuja cultura consiste, também, na sua cozinha típica.
Uma cozinha que sabe, nos seus muitos e inesquecíveis gostos, ensinamentos portugueses, negros, índios, tropeiros, etc.
Ah, seja bem-vindo a uma doce e bem-temperada Minas!”1
Roberto Drummond

1 DRUMMOND, Roberto. Catálogo Telefônico. Belo Horizonte, Telemig, 1983.

Sumário
Introdução                                                                                                             11

Capítulo I
1. O mineiro: houve este mundo ou inventei?                                               14
2. O mineiro, sua identidade e a mesa de gavetas                                     16

Capítulo II
Sentimento de Minas. Sentimento do Mundo.                                               24

Capítulo III
A comida é comunhão                                                                                       29

Capítulo IV
O mineiro ausente de Minas                                                                            35

Capítulo V
1. A cozinha típica e a cozinha tradicional                                                      43
2. Feitiço Mineiro na cidade sem esquinas                                                   46
3. Por dentro do Feitiço                                                                                      50
4. Feitiço mineiro pela internet                                                                         52
5. Feitiço mineiro na encruzilhada tempo x espaço                                     55
6. O feitiço do Feitiço                                                                                           56
7. O feiticeiro do Feitiço                                                                                      58

Capítulo VI
1.Quando a comida é feitiço                                                                             64
2. A comida: feitiço do turismo                                                                          65
3. A comida: feitiço para o turismo                                                                   67
4. A comida: feitiço pelo turismo                                                                       69

Considerações finais
1. Restaurantes típicos: armazéns culturais e
entrepostos do turismo                                                                                       73
2. Comida típica e turismo - falta comunicação
neste cardápio                                                                                                       75
Referências Bibliográficas                                                                                  79

Introdução
Nos valemos da receita e do convite feito pelo escritor mineiro Roberto Drummond, apresentado na epígrafe, para abrir este trabalho, certos de que a culinária é um dos mais presentes e importantes elementos culturais de um povo ou de determinado grupo social. A observação de aspectos como a opção ou restrição a certos gêneros alimentícios, a forma de preparo transformando alimento em refeição, a apresentação, composição, modo e ocasião em que os pratos são servidos e saboreados permitem conhecer particularidades da vida daquela população, entre elas: componentes geográficos, origens históricas, atividades econômicas, organização social e práticas culturais.
Assim, além de revelar também complexidades, evolução e sofisticação estrutural, a culinária tem função relevante na transmissão de valores, referências, códigos, crenças e saberes; na preservação de costumes e ritos e, ainda, no fortalecimento de vínculos dos “herdeiros” e dos “proprietários” com sua raiz cultural. Deste modo, pode-se aferir que a culinária, sendo elemento cultural, é componente identitário de
suma relevância, tanto por estabelecer e consolidar vínculos objetivos e subjetivos, implícitos e explicitos, entre os membros da comunidade que a preserva e difunde, quanto por distinguí-los [os membros e a comunidade] individualmente e coletivamente, junto àqueles que dela não fazem parte.
Desde os primórdios da civilização era possível alimentar-se fora de casa em troca de pagamento (BOLAFFI: 2006), mas a idéia de restaurantes como locais “restauradores” surgiu no século XVI. Daquele tempo aos nossos dias, fruto da urbanização e da industrialização, o fornecimento de refeições foi se organizando como intensa e lucrativa atividade comercial e de serviços. Hoje, é bastante popularizada nos restaurantes que funcionam nos sistemas de buffets e de selfservices.
Contemporaneamente, ora por exigência da vida moderna, ora na procura de integração, lazer e prazer, o homem urbano busca e encontra, nos restaurantes, opção para atender a estas demandas, inclusive com a alternativa de conhecer aspectos de outras culturas ou resgatar e fortalecer laços afetivo-sentimentais e culturais com sua terra-mãe. E, neste segundo caso, mesmo em self-services e fast-foods, a culinária reaviva lembranças, reacende crenças, recupera valores e reitera vínculos com o passado e compromissos com o futuro. Deste modo, pode-se concluir que, atualmente, os espaços gastronômicos podem cumprir função “restauradora” em nível identitário e cultural.
Muitas vezes trabalhando com um artigo que pode ser, ao mesmo tempo, comercial e cultural, os restaurantes de culinária típica ou regional podem encontrar nesta dupla possibilidade tanto um novo diferencial competitivo quanto um serviço a ser prestado ao desenvolvimento da região que é sua origem ou tema.
Estas são algumas hipóteses que esta monografia pretende verificar, tomando como objeto de estudo o Restaurante Feitiço Mineiro, em funcionamento na capital brasileira desde 1989. O restaurante “serve” também programação cultural nas áreas da música e da literatura. Seguindo tendência que se expandiu nas últimas décadas, além dos pratos típicos a la carte que foram seu grande atrativo no início de seu funcionamento, passou a oferecer a opção pelo buffet, colocando à disposição dos clientes uma grande variedade de pratos tradicionais das cozinhas de Minas e das Gerais. Faz-se aqui a distinção cozinha de Minas / cozinha das Gerais, entendendo-se que na primeira predominam alimentos feitos na hora, com
grande uso de legumes e verduras frescas, cozidas ou refogadas, e na segunda alimentos mais secos, originalmente preparados para conservação prolongada, considerando seu transporte e consumo nas longas viagens dos tropeiros.
Buscando dar visibilidade à aproximação que existe entre a literatura, especialmente a poesia, e a cultura de Minas Gerais, algumas vezes serão usados poemas – ou versos – de autores mineiros para, ilustrativamente, complementar comentários e considerações.
Esta opção parte do princípio de que os poetas, se por um lado expõem questões pessoais e subjetivas, o que pode ter caráter testemunhal, por outro podem utilizar a individualização como recurso para expressar o sentimento coletivo que percebem, recolhem e codificam na linguagem poética, tendo em vista - mais do que a objetividade concreta - transmitir o sentimento que subjaz no objeto apreendido.
Constitui, ainda, intenção de integrar, neste trabalho, elementos de linguagem artística que são comuns na mineiridade e que também podem ser atrativos do turismo histórico-cultural, modalidade na qual se situa o tema deste estudo. Breves depoimentos, colhidos em entrevistas ou em observação participante, também são apresentados nesta monografia, com a finalidade ilustrativa e testemunhal para considerações teóricas, pressupostos e reflexões.
Desta forma, tentando “ler” os desenhos formados no dinâmico caleidoscópio onde se movimentam peças como identidade, memória, paladar, sabor, lembrança, sentimento, distância, comida, ausência, tempo, imagem, exílio, reencontro, desterro, esquecimento e perpetuidade é que se desenvolveu este trabalho.
Acredita-se que, como no brinquedo em que as teias e geometrias coloridas se fazem, se desfazem e se refazem até ao movimento mais delicado, a compreensão muito dependerá do olhar e da subjetividade na valoração do que serve como objeto, referência e fundamento das análises, considerações e conclusões.

Capítulo I
A palavra Minas

Minas não é palavra montanhosa,
é palavra abissal. Minas é dentro e fundo.
As montanhas escondem o que é Minas.
No alto mais celeste, subterrânea,
é galeria vertical varando o ferro
para chegar ninguém sabe onde.
Ninguém sabe Minas.
A pedra, o buriti, a carranca
o nevoeiro, o raio selam a verdade primeira,
sepultada em eras geológicas de sonho.
Só mineiros sabem. E não dizem nem a si mesmos
o irrevelável segredo chamado Minas.
Carlos Drummond de Andrade

1. O mineiro: houve este mundo ou inventei?1
Definir o Estado de Minas Gerais e seu povo é tarefa difícil e não são raras as obras que atribuem a Minas e aos mineiros características intangíveis, em geral opostas a qualquer forma de pragmatismo ou concretude. Referindo-se a Minas na música O Ciúme, Caetano Veloso define Minas como lugar “onde o oculto do mistério se escondeu”. Entre outros, Guimarães Rosa, mesmo sendo mineiro, também percebe
o segredo que envolve Minas, conforme citação extraída de ARRUDA (1990:125):

“Para se compreender Minas,
são necessárias artes de advinho. [...]
Assumido o mistério que envolve Minas,
fica excluída a possibilidade de deciframento.
‘Minas: patriazinha. Minas a gente olha, se lembra,
sente, pensa. Minas, a gente não sabe’.
O enigma é de natureza mítica, inexiste
temporalidade no mundo das coisas secretas.”

1 O título deste item alude ao verso “Houve esta vida ou inventei?” do poema Clareira (PRADO:1991,45)

O próprio título desta unidade, inspirado em verso de Adélia Prado (1991) provocanos a pactuar entendimento em torno de sentido para uma palavra que é, ao mesmo tempo, substantivo e adjetivo: a palavra mineiro.
Comumente empregada para designar tudo o que é natural, pertencente ou próprio de Minas Gerais, temos consciência de que, quando a utilizarmos como substantivo gentílico, estamos nos recorrendo a uma representação simbólica. Desde o próprio nome, Minas Gerais é um Estado plural (LIMA:1983), que abriga diferenças geográficas, históricas, econômicas, étnicas e culturais. Porém, é evidente a existência de intersecções que possibilitam afinidade e identidade entre aqueles que nasceram e vivem (ou viveram) em regiões culturalmente distintas daquele Estado.
Não a tomamos como ‘mineiro típico de padrão homogêneo’, negada por FRIEIRO (ABDALA:1997), por concordarmos com sua afirmação de que “a voz de Minas é pluritonal, não podendo ser fixada em caracterizações totalitárias”. Contudo, entendemos que a opção daquele autor pela palavra ‘voz’, no singular, é evidência inconteste de unidade na diversidade.
“Ser mineiro pode apresentar muita diversidade em primeiro lugar... Mas isto é visto de dentro de Minas. De fora de Minas, como diz o Nava, como diz o Mário de Andrade, somos todos uma canalha2 só”,
registra ABDALA (1997:177) resgatando em MELLO e SOUZA (1986:29) citação de ANTÔNIO CÂNDIDO. Segundo ABDALA (IDEM),
“De maneira geral, rótulos que desconsideram quaisquer diferenças levam a imagem do ‘típico mineiro’ para todos os cantos do país, representando diferentes sub-regiões de Minas, que reconhecem neles alguma unidade”

Para ela (IBIDEM), a imagem do mineiro não foi construída apenas com a epopéia setecentista da região mineradora, mas resulta de uma fusão que incluiu a história e a cultura de outras regiões do Estado, nos séculos XIX e XX. Na dinâmica que envolve a construção desta imagem, podemos estender hoje este período aos primeiros anos do século XXI.
Sendo, deste modo, a imagem do mineiro a síntese multifacetada, mas profundamente harmônica e integrada, de várias histórias sub-regionais, de diferentes temporalidades, que o povo mineiro vem construindo há mais de três séculos, é certo entender que, ao se utilizar a palavra “mineiro”, está-se referindo a este mosaico harmonioso, que por si só espelha a idéia de unidade (ABDALA:1997)
e o ideal conciliador (LIMA:1983), que são crença e ideal do povo daquele Estado.

2 Na busca de uma definição que dê sentido à palavra CANALHA, encontramos em HOUAISS
(2003:119), classificação como substantivo feminino, sinônimo de ‘canalhada’, corja, plebe.


2. O mineiro, sua identidade e a mesa de gavetas
Visitando museus das cidades históricas, percebe-se que era comum as mesas de jantar das salas coloniais mineiras terem uma ou mais gavetas fundas, com puxadores de ferro batido, sob o tampo grosso de madeira de lei. O anedotário popular explica sua finalidade: ao perceber a chegada de visita inesperada, bastava o instante de abrir e fechar a gaveta para o mineiro esconder seu prato. Ali ficaria o alimento, tanto tempo até que o intruso fosse embora. Nesta alegoria, certamente, podemos supor encontrar-se uma das situações imaginárias (e também um dos sentidos) que renderam ao mineiro o apelido de “come-quieto”.
Esta curiosa provocação bem ilustra a personalidade do mineiro na hora em que, no lar, faz suas refeições. Na casa mineira, a comida é sagrada e o momento da refeição, em família ou solitário, é quase devocional. Como em alguns países orientais, mineiros preferem privacidade nesta hora, evitando comer desinibidamente diante de estranhos, já que o ato alimentar, além de ser íntimo, também expõe a situação financeira e o status, pela revelação daquilo que se come (WOORTMANN, K:2006).
A religiosidade ensina que desperdiçar “é pecado”; jogar comida fora pode chamar privações como a fome e a miséria, por castigo divino. Por isso, sobras são sempre aproveitadas, o que deu origem ao apreciado mexido, que tem inconsciente função purificadora e, sinônimo de improvisação, despojamento e humildade, muitas vezes é comido na própria panela. Também por isto, na cozinha mineira o preparo da
alimentação impõe cuidados rigorosos para evitar deterioração e perdas, razão pela qual a maioria dos pratos requer apurada higienização e demorado cozimento.
O cardápio doméstico tradicional, do almoço de todo dia, inclusive dos sábados, é uma composição simples que inclui salada (mais comumente alface e/ou agrião e tomate), arroz, feijão, carne frita ou cozida (hoje a geralmente bovina, mas pode ser também suína ou de frango), um ou dois tipos de verdura e de legumes refogados, angu, ou farofa ou farinha de mandioca ou de milho.
Dependendo da idade e do estado de saúde, a combinação inclui ainda ovos fritos. Pode ser que, às vezes, lingüiça substitua a carne. Poeticamente, nos versos abaixo, PRADO (1991:42) registra esta combinação, aludindo ao caráter sagrado da refeição, e cita duas verduras peculiares da cozinha mineira - a taioba e o ora-pronobis.
A segunda, evoca no nome expressão invocatória em latim, que se tornou bastante popular em Minas porque era repetida seguidas vezes nas antigas ladainhas.

“... a casa entre bananeiras, pés de manjericão e cravo-santo parece dourada. Dentro dela, agachados, na porta da rua, sentados no fogão, ou aí mesmo, rápidos como se fossem ao Êxodo, comem feijão com arroz, taioba, ora-pro-nobis, muitas vezes abóbora. Depois, café na canequinha e pito. O que um homem precisa para falar, entre enxada e sono: Louvado seja Deus!

O jantar repete o almoço, substituindo algum item vegetal, mas, para ser mais leve, não tem obrigação de manter tanta diversidade. O mexido, juntando a sobra do jantar, é preparado e comido informalmente por quem chega mais tarde. Assim, evita-se que os alimentos fiquem “dormidos”, hábito que ABDALA (2009:125) atribui à “lógica da economia dos tempos difíceis” que, ainda no século XVIII, devido à
escassez, impôs alimentos cozidos e o aproveitamento de tudo, inclusive das sobras.
Massas, que denotam urbanidade e excepcionalidade, normalmente fazem parte do almoço dominical, de dias santos e feriados, sendo mais comuns lasanha e macarrão, nos tipos spaguetti ou talharim, com molho de cebola e tomate e bastante queijo ralado. Do mesmo modo os assados, geralmente pernil ou lombo suíno e frangos, empadões e tortas, o que se explica pelo caráter ritual da refeição feita nos dias especiais, não dedicados ao trabalho (WOORTMANN, K: 2006).
Dependendo da região do Estado, peixes são mais raros e seu consumo aumenta a partir da Quarta-feira de Cinzas, no tempo da Quaresma. Nos lares onde cultiva-se maior apego à religião católica tradicional, evita-se comer carne vermelha às sextas-feiras desse período e, na falta do peixe fresco, a opção é por ovos ou pela sardinha em lata. Bacalhau, ingrediente quase ritualístico, apesar do preço alto, é
indispensavelmente comido na Sexta-feira da Paixão, nem que seja em quantidade simbólica, até pelas pessoas de menor poder aquisitivo.
A brincadeira da gaveta - na verdade usada para guardar objetos auxiliares do serviço de mesa, como toalhas, guardanapos, talheres e suportes para travessas - chama nossa atenção para um aspecto real, que foi sublimado na construção da imagem de que o mineiro é, invariavelmente, generoso e hospitaleiro.
Ele de fato o é, desde que – antes - o “outro” tenha provado merecer consideração.
Caso contrário, certamente encontrará uma forma gentil, sutil e reticente de adiar o acolhimento, fazendo com que o estranho se sinta agraciado e agradecido apenas com a promessa de, a qualquer hora, ser recebido com a intimidade que se confere a alguém da família. Porém o(s) mineiro(s) sabe(m) que isto pode não acontecer, se não for vencida a desconfiança preliminar à identificação de afinidades, seguida da
conquista da confiança pelo amadurecimento das relações, que até então se darão, de preferência, na sala de visitas ou da porta para fora.
O processo histórico de Minas Gerais, sobretudo o ambiente social, político, cultural e econômico em que aconteceram o ciclo do ouro e a Inconfidência Mineira, moldaram firmes traços culturais nesse povo, forjando um perfil arguto, mas também dual, que alguns, pejorativamente, apelidam mineirice. Segundo NEVES (1986:134)

“O psiquismo mineiro, refletido no comportamento, era um psiquismo dividido, dúbio, para além da ambiguidade. A contradição era a alma desta gente e o barroco era a voz pública desta alma dividida. Não bastassem as pressões sociais (policiamento da Coroa Portuguesa, fiscalismo, submissão a desclassificados sociais tornados agentes da ordem social – o que talvez tenha gerado muito da psicologia
‘desconfiada” e dúbia do mineiro), o conflito entre o temporal e espiritual gerenciava grande parte desta contradição.”

Um novo conceito, surgido com a intenção de captar e explicar peculiaridades que são exclusivas do homem de Minas Gerais, foi denominado mineiridade (ARRUDA:1990,121). Corresponde à difusão de uma imagem ideal, construída a partir de atributos específicos, notadamente para percepção externa, mas também para a autocompreensão e para a auto-representação. Porém, o imaginário nacional referente aos mineiros deixa claro que tanto a mineirice quanto a mineiridade, apesar de por vezes se impregnarem da dubiedade mencionada acima, não se esquivam de responder à seguinte indagação (LIMA:1983,35):

“Em tudo isso, o que vemos senão a preeminência da pessoa humana, tão constante em tudo o que diz respeito a Minas Gerais? (...) o próprio sonho do ouro passou sem deixar senão algumas legendas... O ouro e os brilhantes passaram por Minas sem contaminarem a simplicidade de uma existência simplória
e desataviada.”

Aos conceitos de mineirice e mineiridade, Afonso Arinos acrescentou o de ‘mineirismo’, que VELOSO (2003) assim os define e explica, por eles auxiliando na elaboração do conceito do mineiro e do perfil do povo de Minas:

“Mineiridade seria a síntese ou o gênero do qual mineirismo cultural e mineirice política seriam espécies. A partir daí, seria possível interpretar o espírito mineiro. O mineirismo cultural e a mineirice política confluem para a síntese histórica da mineiridade ... que é própria de Minas, porque é o espírito de sua gente – o mineiro – que no dizer de Guimarães Rosa ‘desconhece castas.
Não tolera tiranias, sabe deslizar para fora delas. Se precisar, briga. Mas como ouviu e não entendeu a pitonisa, teme as vitórias de Pirro. Não tem audácias visíveis. Tem memória longa. Ele escorrega para cima. Só quer o essencial, não as cascas ...
Não acredita que coisa alguma se resolva por um gesto ou um ato, mas aprendeu que as coisas voltam, que a vida dá muitas voltas, que tudo pode tornar a voltar’.”
A relação particular do mineiro com a refeição no seu ambiente doméstico também norteia o modo como ele se relaciona com os restaurantes de sua cidade, na refeição fora do lar. De modo geral, somente em situações muito especiais, confortavelmente ele se dispõe a comer “na rua” os mesmos pratos que pode comer “em casa”.
Neste sentido, o argumento mais comum é que os pratos de casa são melhores, mais saborosos, mais “seguros” e mais “garantidos”, entendendo-se os adjetivos “melhores”, “seguros” e “garantidos” como referências à qualidade, higiene, procedência e preparo dos ingredientes.

Porém, observa-se que a diferença que há entre “a rua” e “a casa” expressa, na verdade, o antagonismo que há entre as referências simbólicas ligadas a uma e à outra, bem como à circunstância em que se dá a refeição, conforme apresentado comparativamente no quadro a seguir:

Em casa Na rua
Íntima, particular e sagrada Pública , coletiva e profana
Obtida com o suor do rosto Comprada com o dinheiro do bolso
A comida é comunhão A comida tem culpa de infidelidade, quase gosto de prevaricação.

A dicotomia entre esses dois universos distintos é assim explicada por DA MATTA (1991: 70 e 73):
“A categoria rua indica basicamente o mundo, com seus imprevistos, acidentes e paixões, ao passo que a casa remete a um universo controlado, onde as coisas estão nos seus devidos lugares. A rua implica movimento, novidade, ação e a casa subentende harmonia e calma, local de calor e afeto. Na rua se
trabalha, em casa descansa-se. [...]
Na rua é preciso estar atento para não violar hierarquias não sabidas ou não percebidas, escapar do cerco daqueles que querem nos iludir e submeter, pois a regra básica do universo da rua é o engano, a decepção e a malandragem. Na rua todos tendem a estar em luta contra todos [...] Tudo, pois, que remete ao uso, cuidados e recuperação do corpo e que, como consequência, implica descanso e renovação está ligado ao mundo doméstico. Já as ações que estão ligadas aos aspectos externos do mundo social dizem
respeito ao mundo público, ao mundo da rua.”

Fora de seu estado natal, porém, o mineiro se relaciona de modo diferente com os restaurantes típicos. Em terras estranhas, onde carece de vínculos de origem, os restaurantes, que na sua cidade eram considerados externos à casa – e, portanto, partes da rua – são ressignificados na geografia da memória como espaços que conseguem, evocando o paladar e o sabor de um momento passado e de um lugar
distante, reconstituir laços afetivos e sentimentais, recompor em tecido íntegro fios esgarçados do tempo cronológico, psicológico e emocional. Assim, imaginariamente se tornam casa, pela possibilidade de reencontros consigo próprio por meio do encontro com conterrâneos e com a comida [ou a representação da comida] da terra natal, como explicado por DUTRA (1991), citado por WOORTMANN, E (2006:57):

“O paladar muitas vezes é o último a se desnacionalizar, a perder a referência da cultura original. A culinária atua com um dos referenciais do sentimento de identidade: é por sua característica de portable [...] que ela pode se tornar referencial de identidade em terras estranhas.”
Por isto, não importa tanto a fidelidade aos ingredientes tradicionais e o rigor no preparo da receita, já que o que se busca não é o aspecto nutricional do alimento nem o seu sabor antigo, mas o que ele significa e representa na vida do mineiro, ausente de sua terra ou do melhor tempo de sua vida.
Tanto isso é verdade que, em viagem à cidade histórica de São João Del-Rei, numa conversa com moradores idosos sobre lembranças de infância, em especial sobre a comida de antigamente, recolhemos o seguinte fragmento:

“... por mais que eu esteja comendo o mesmo prato, o mesmo doce, fruta da mesma espécie, o que eu como hoje não mata a vontade que eu tenho de comer o que eu comia antigamente. O
que eu como agora é lembrança e saudade de um tempo que já se foi...”3

3 Trecho de depoimento de Carmen Trindade da Costa, 81 anos, dona de casa, colhido em São
João Del-Rei, em janeiro de 2009.


A ambiência apresentada nesta Introdução é pano de fundo para o que este trabalho pretende refletir sumariamente sobre o significado que o mineiro, distante de Minas Gerais, atribui à comida típica de sua terra e, mais, o que ele busca quando frequenta restaurantes mineiros.
É, também, o cenário onde se buscará verificar e analisar o papel que esses espaços gastronômicos - como empreendimentos e instituições - e seus produtos gastronômico-culturais desempenham em três frentes: como territórios de memória e identidade, como potencializadores e disseminadores da mineiridade e como divulgadores das riquezas turísticas de Minas Gerais.

Capítulo II
Dona doida

Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso,
com trovoada e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas, as poças tremiam
com os últimos pingos. Minha mãe, como quem sabe
que vai escrever um poema, decidiu inspirada:
chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados.
Meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.
Adélia Prado

Sentimento de Minas. Sentimento do Mundo.
Falar sobre a importância da comida típica no processo de manutenção e fortalecimento da identidade do mineiro que vive em outros Estados requer, antes de mais nada, lembrar algumas particularidades da cultura do povo de Minas Gerais, incluindo-se aí a memória afetivo-sentimental. Nela, os significados e
conceitos codificados e expressos em patrimônios materiais e imateriais; os princípios e motivos que fundamentam seu pensar, sentir e agir; o espírito reflexivo que, entre a tradição e a modernidade, o faz procurar, sempre e em tudo, o consenso, a temperança e o equilíbrio.
Não se pretende, neste capítulo, abordar a mineiridade como um “mito”, ou um “discurso”, criado pelos intelectuais mineiros como rótulo que convinha ao povo mineiro ser identificado pelos “outros” (DUTRA:1991); como uma imagem que se desejava fosse projetada no grande painel das gentes brasileiras. Nossa intenção é tomar a mineiridade no sentido inverso, como a visão que o mineiro tem de si e para si, na construção de seu próprio imaginário, tomando como objeto de análise determinados aspectos e características da cultura de Minas Gerais. Com marcantes diferenças geográficas, econômicas e culturais que não ameaçam o sentimento de integridade geopolítica, o Estado que é objeto deste estudo bem configura a unidade na diversidade, expressa em nome composto e plural: Minas Gerais. Pela precedência histórica quando, no século XVIII, a abundância de riquezas possibilitou à região mineradora grande importância econômica, evolução urbana, notável desenvolvimento artístico e singularidade cultural, é Minas que figura no imaginário brasileiro como a face fiel do Estado. A Minas das cidades coloniais, das tradições barrocas, da erudição, dos heróis inconfidentes, da sobriedade, da sensatez, da simplicidade cotidiana a esconder posses, poderes e predicados.
Também internamente é esta a imagem que os mineiros mais fortemente adotam como marca e representação, a começar pela bandeira, desenhada pelos inconfidentes. Principalmente os órgãos oficiais valem-se das paisagens setecentistas e de detalhes das obras barrocas de Aleijadinho e Atayde - em
especial dos profetas de Congonhas do Campo e das igrejas de Ouro Preto - como ícones de apresentação no país e no exterior.
A dualidade é a base da cultura de Minas. Riqueza e miséria; opulência e austeridade; modéstia, vaidade e orgulho; religiosidade e sutil erotismo; culpa, penitência e prazer; inquietação e comodismo; unidade, integridade e ruptura; projeção e introspecção - entre outros antagonismos - fazem o mineiro oscilar entre
opostos, procurando situar-se no limite exato onde eles se juntam e se separam.
Desta forma, acredita ser possível compatibilizar o geral e o particular, o todo e a parte, o coletivo e o individual, o sagrado e o profano, o humano e o divino, o universal e o regional.
A conjugação destes contrastes permeia, para transmissão subliminar, as celebrações religiosas, as comemorações cívicas, as lendas infantis, as manifestações folclóricas, os ritos populares, as práticas cotidianas e, principalmente, os pensamentos. Como resultado desta construção cultural secular,
tem-se um sentimento humano flexível, tolerante, maleável, mas também ambíguo e às vezes contraditório, quando o posicionamento público não corresponde aos anseios que se verifica na esfera privada.
Há provas de que tal dualidade nem sempre fica apenas no plano intelectual, mas se materializa em atitudes e comportamentos públicos, não condenáveis pelo povo nem pelas instituições. Provam isso a atitude de duas jovens que, na cidade histórica de São João Del-Rei, por anos seguidos na década de noventa do século passado, durante eventos de grande expressão popular, desempenharam papéis
antagônicos no campo do sagrado e do profano, “encarnando” personagens emblemáticos na cultura local - a madrinha de bateria e a Verônica. Como sambistas, desfilaram vestidas “a caráter” à frente da bateria de uma escola de samba, no frenesi do Carnaval são-joanense. Representando a mulher que enxugou o rosto ensanguentado de Cristo no caminho do Calvário, ficando com aquela imagem estampada no Sudário, vieram à frente do Senhor Morto na Procissão do Enterro de Sexta-feira da Paixão (PAZ: 2004). Tradicionalmente na mesma procissão, atrás da Verônica vêm são-joanenses que ocupam ou ocuparam
funções públicas importantes nas esferas federal, estadual e municipal, como procuradores da República, ministros, governadores do Estado, deputados federais e estaduais, juízes, prefeitos e vereadores.
O sentimento que o mineiro tem do mundo e a forma com a qual ele expressa este sentimento moldaram-lhe um semblante social que os outros brasileiros associam à timidez, à passividade, ao ensimesmamento, à simplicidade, à modéstia, ao conformismo e à “boa” educação. Essa imagem, ele não recusa, por considerá-la positiva, mesmo sabendo que nem sempre é essa face a que a ele o espelho
mostra.
Contrariamente ao pensamento de que se trata de um “povo” acomodado, fácil de ser convencido ou enganado, o mineiro, protegido pelas montanhas, vê o mundo no eixo vertical, de alto a baixo, em profundidade (DRUMMOND:1980), percebendo ou imaginando em tudo causa e consequência. Suas ambições em geral são controladas pela religiosidade própria de um ambiente físico, temporal e humano
que induz a atitudes contemplativas, complacentes e autocomplacentes.
Mas o espelho também lhe mostra uma face desconfiada, arisca, dissimulada, esperta, teimosa, seja tal teimosia insistência, resistência ou desconsideração e descrédito ao outro. Mas uma sabedoria quase ingênua de tal modo o ensina a lidar com esses “defeitos” que, pelos outros, são percebidos quase como virtudes.
O espírito barroco deu a Minas e aos mineiros forte dramaticidade, olhar trágico e existencialista sobre o mundo, a realidade e o futuro, o que não significa tristeza ou dor (PRADO:1991). É uma outra forma de perceber, de sentir e de ler os símbolos, os signos e os sinais, a partir de uma temporalidade autônoma, na qual o passado não é necessariamente o tempo que já se foi nem o futuro o desconhecido porvir.
Ambos estão tão ligados e tão pertencentes um ao outro que emocionalmente não é possível saber onde um termina e outro começa, sobretudo devido à dinâmica que, num processo circular, transforma a polaridade em alteridade.
Esta lógica se faz presente também em relação à cozinha mineira, pois a memória ancestral da fome que castigou os primeiros mineradores certamente contribuiu para a sacralização da comida, que ainda hoje persiste na valorização máxima de reaproveitamentos e na repulsa a qualquer forma de desperdício.
O espírito de Minas acompanha o mineiro em todos os caminhos, persegue-o por toda parte, de modo que CARDOSO (in PRAZERES:1984,88) chegou a defini-lo como “espinho que não consigo arrancar de meu coração”. Por isso, a comida de Minas, comida fora de Minas, estará cumprindo seu papel cultural se for percebida como harmonização de todos os temperos conceituais, históricos, políticos e poéticos que fazem parte da alma do mineiro. Deste modo, os restaurantes típicos poderão ser considerados territórios de Minas fora de Minas se garantirem aos mineiros reforço de pertencimento, ou seja, sentimento de que eles não precisarão retornar à terra de que foram feitos porque dela nunca se separaram, o que NETTO
(IDEM:IBIDEM,84) afirma na pergunta abaixo, seguida da resposta:

“ Como entender a profunda ligação desses homens com sua terra? Quando voltam do fundo da mina, não se sabe se são de carne ou de minério. Quando descem, o coração da terra bate dentro deles.”

Da mesma forma, os restaurantes típicos mineiros instalados em outras regiões podem constituir uma alternativa para que outros brasileiros, e até estrangeiros, visitem Minas Gerais sem se deslocarem para as Alterosas, considerando que a cozinha mineira tem expressividade marcante, por trazer em si aspectos peculiares da história e da cultura de Minas e do modo de ser, pensar e sentir do povo daquele Estado, onde “as diferenças perdem a nitidez” (ABDALA:2009,129), também definido pela mesma autora como

“uma comunidade histórica, mescla de subregiões e de integração entre o passado e o presente, o que permite reforçar, hoje, a idéia de unidade fundamental. Daí a importância da cozinha nessa mágica que faz das várias Minas uma única.”

Capítulo III
A comida é comunhão

O mineiro sabe que ‘comida é muito mais do que apenas alimento’ (WOORTMANN, K:2006). Especialmente em casa, o arroz, o feijão, as verduras, os legumes e carnes, dispostos no prato à hora da refeição, lhe significam algo que remete à religião, a vínculos de afetividade e memória, ao universo do trabalho, às relações familiares, aos códigos sociais, levando-nos a citar o mesmo autor (IDEM,IBIDEM:23), quando diz que “Em qualquer sociedade, os alimentos não são apenas comidos, mas também pensados. Em outras palavras, a comida possui um significado simbólico – ela fala de algo mais que nutrientes. “
A refeição remete o mineiro à religião, pela sacralidade com que realiza o ato alimentar. Tanto isso é verdade que, na área rural e nas pequenas cidades do interior, ainda hoje é comum ter na sala de jantar uma estampa da Santa Ceia, quase tão importante quanto o quadro dos Sagrados Corações de Jesus e de
Maria, que povoa, às vezes com iluminação especial, a sala de visitas.
Vale lembrar que iconografia relativa a alimentação também decora importantes igrejas setecentistas, como por exemplo nas grandes telas intituladas A Ceia do Senhor e Jesus à mesa na casa de Simão, o Fariseu, na capela-mor da Matriz de Nossa Senhora do Pilar de São João Del-Rei, em cujo teto, na capela do Santíssimo Sacramento, uma pintura ilustra cena do Antigo Testamento em que Deus alimenta seu povo com maná caído do céu (ALVARENGA:1971). Outra alegoria à alimentação figura no sacrário do altar-mor, onde a virtude da Caridade é representada pela “figura simbólica do Pelicano, que alimenta, com o sangue do próprio coração, seus filhos amados” (IDEM, IBIDEM:71).
Também não é raro pessoas mais simples e de forte religiosidade se benzerem ou, em recolhimento e silêncio, fazerem oração à mesa, na hora das refeições. Nesta ambiência, inconscientemente, a muitos mineiros vem à lembrança o momento da missa em que Cristo consagra o pão e o vinho, transformando-os em carne e sangue, ilustrado na primeira tela citada acima, e convida a todos para o banquete sagrado. Isso, para eles, confere à refeição o sentido de comunhão e concórdia, razão pela qual à mesa se evita assuntos impuros, impróprios, desagradáveis, polêmicos, constrangedores ou condenatórios para alguém presente ou que possam causar discórdia e discussão. Pela mesma razão, evitam se sentar à mesa próximo de desafetos, visto que isto demandaria cordialidades, podendo facilitar
reconciliações.
A respeito das lembranças religiosas, destaca-se que a população mineira é majoritariamente católica, apesar do crescimento, nas últimas décadas, das igrejas pentecostais e evangélicas, em maior escala nos grandes centros urbanos, mas também nas pequenas cidades. Contudo, a forte presença da Igreja Católica em Minas desde a época colonial confere-lhe status de autoridade divina e poder social,
o que é explicado por ARRUDA (1999:176), quando afirma que

“... a Igreja, em Minas, significou o núcleo da vida societária, pois, por intermédio da religião, o ritualismo da sociedade pode encontrar sua forma adequada. Por isso, as festas religiosas desenrolavam-se à margem da Igreja.”

Os vínculos de afetividade e memória se mostram à mesa pela lembrança e citação de pessoas que fazem ou fizeram parte do grupo familiar mas no momento estão ausentes, seja circunstancialmente - por motivo de trabalho ou residirem em outra casa ou cidade - ou definitivamente, no caso de falecidos. Estes são lembrados principalmente quando se trata de data especial ou quando algum prato que está à
mesa era de sua preferência, o que é uma forma de, assim, manter vivos na memória aqueles que já se foram.
Para o mineiro, o trabalho está presente na comida e merece ser reconhecido, tanto no esforço de todos que se envolveram na plantação, produção e preparação quanto no de quem provê a casa e a mesa. O que está em jogo não é o valor financeiro dos alimentos nem o que se pagou por eles, mas a dedicação e a força de trabalho em tudo envolvida, já que dinheiro é um a coisa que vale outra, é o que custou para ganhar e o que ele pode comprar (PILAGALLO:2003,15).
Talvez se possa perceber o elo que os mineiros veem entre trabalho e a representação da comida a partir da situação contraditória que caracterizou a gênese do povo mineiro: de um lado a abundância do ouro, de outro a mais completa escassez de gêneros alimentícios, vivida por longas décadas no século XVIII, testemunhalmente descrita por ANTONIL (1982:169) nas seguintes palavras:

“Sendo a terra que dá ouro esterilíssima de tudo o que se há mister para a vida humana, e não menos estéril a maior parte dos caminhos das minas, não se pode crer o que padeceram ao princípio os mineiros por falta de mantimentos, achando-se não poucos mortos com uma espiga de milho na mão, sem
terem outro sustento.”

Na célebre obra Cultura e Opulência do Brasil, impressa em 1711 e incendiada em Lisboa no mesmo ano por ordem de D. João V, ANTONIL (IDEM:170), que veio para a maior colônia portuguesa a convite do padre Antônio Vieira, continua:

“... de todas as partes do Brasil se começou a enviar [para Minas] tudo o que dá a terra, com lucro não somente grande, mas excessivo. E, não havendo nas minas outra moeda mais que ouro em pó, o menos que se pedia e se dava por qualquer cousa eram oitavas de ouro. (...) Estes preços, tão altos e tão
correntes nas minas, foram causa de subir tanto os preços de todas as cousas, como se experimenta nos portos das cidades e vilas do Brasil, e de ficarem desfornecidos muitos engenhos de açúcar das peças necessárias e de padecerem os moradores grande carestia de mantimentos...”

A família e os códigos sociais também se fazem presentes, ou representados, e são respeitados à mesa, seja na disposição dos lugares que as pessoas ocupam, seja pela sequência no servir ou do que lhes é reservado. Contudo, assim como a estrutura hierárquica é observada na hora da refeição, indicando relações de precedência no sentar e no servir fundamentadas na autoridade e no poder, tal estrutura pode ser generosamente flexibilizada, muitas vezes começando-se o serviço de mesa por atender aos mais velhos e às crianças. Desta forma, fiéis à conciliação e ao equilíbrio que almejam alcançar, reverenciam o passado ao mesmo tempo em que preparam o futuro.

“Como pode o peixe vivo viver fora da água fria?”4
O verso acima, de modinha certa no repertório das serestas das cidades coloniais, é uma pergunta que o mineiro se faz quando deixa seu Estado, pois vivendo fora de Minas, ele se sente duplamente fora de casa. Ausente da casa propriamente dita, estendendo-se aí o conceito físico-espacial de domicilio e habitação ao sentido social de lar, a família, com toda a proteção e referência que esta instituição lhe oferece, proporciona e impõe. Também ausente do Estado, que é seu território, a base civil que consolidou institucionalmente seus valores de religião e família e os transformou em códigos e normas coletivos de comportamento e conduta. A relação do mineiro com sua terra é simbiótica, como assim confessa Pedro Nava, citado por ARRUDA (1999:112) :

“...Essas áreas não posso chamar de pátria porque não as amo civicamente. O meu sentimento é mais inevitável, mais profundo e mais alto porque vem da inseparabilidade, do entranhamento, da unidade e da consubstanciação (...) Essa é minha terra. Também ela me tem e a ela pertenço sem possibilidade de alforria.”

Fora de Minas, o mineiro tradicional em princípio se sente deserdado, até que encontre, na nova terra, pelo menos sinais que lhe permitam manter vivas na memória lembranças e referências que ficaram para trás. Por isso, sempre leva consigo algum objeto ou imagem que, exposto ou afixada no novo espaço como marco de identificação e territorialidade, lhe lembre suas origens, sua terra natal, nem que seja “apenas uma fotografia na parede.” (DRUMMOND:1980,45).

4 Verso da cantiga Peixe Vivo, tradicionalmente cantada em serestas mineiras. De autor e data desconhecidos, julga-se ser adaptação de cantiga de roda trazida pelos portugueses da região de
pastoreio para Minas (www.planetanews.com/news/2006/10368, acessado em 14/06/2009)


Repetindo o feito dos tropeiros, nas idas à sua terra, sempre traz na bagagem da volta alimentos ou gêneros alimentícios autenticamente regionais, não encontráveis na nova cidade, sendo comuns queijos, cachaça, fubá, goiabada cascão, figo em calda e cristalizado, doces de leite, de cidra e de marmelo, biscoitos, lingüiças e até carnes ‘de lata’. Estes artigos, nas horas mortas, tornarão mais ameno o sentimento de degredo, diminuindo o que Adélia PRADO (1991:50) definiu como “... a ausência
ocupando todos os meus cômodos...”
Este mesmo sentimento é que ele busca amenizar frequentando restaurantes típicos (e mais do que pelo sabor ou pelo paladar), para resgatar e fortalecer elementos de sua identidade, assim como para situar-se em território nativista imaginário, embaixada de sua ‘pátria’, praça de sua infância, lugar de sua existência. Tal busca assim foi codificada por DRUMMOND (1980:183) nos seguintes versos do poema Hotel Toffolo:

“E vieram dizer-nos que não havia jantar.
Como se não houvesse outras fomes
e outros alimentos. Como se a cidade
não nos servisse o seu pão de nuvens.
Não, hoteleiro, nosso repasto é interior
e só pretendemos a mesa. Comeríamos a mesa,
se no-lo ordenassem as Escrituras.
Tudo se come, tudo se comunica,
tudo, no coração, é ceia.”

Alquimia resultante da combinação de porções, ingredientes, temperos, temperaturas e tempos; panelas de ferro fumegando memórias, panelas de pedra borbulhando emoções, saudade destilada em barris de carvalho e umburana, lembranças antigas cristalizadas ou em calda, ternura licorosa, “...angústia
pendente que sorve em goles de antecipada saudade” (PRADO:1991,163). Muito mais do que apenas alimento, é isso que o mineiro ausente de Minas busca nos restaurantes típicos.
Por se tratar de outra temporalidade e de outra espacialidade, a comida que lhe satisfará este anseio não necessita, obrigatoriamente, ter sido elaborada com o mesmo rigor do preparo tradicional. O que ele busca ali encontrar é o seu significado (o próprio, pessoal, diante do tempo e do espaço, e o da comida, para
ele em relação à sua origem).
Para o mineiro, a comida tem o poder de ‘re-ligar’, o que, poeticamente, está traduzido nos seguintes versos de Adélia PRADO (1991,113)

“...A mãe no fogão atiça as brasas e acende na menina o nunca
mais apagado da memória: uma vez, banqueteando-se, comeu feijão com arroz mais um facho de luz. Com muita fome.”

Capítulo IV
Prece do mineiro no Rio
Espírito de Minas, me visita, e
(...) lança teu claro raio ordenador.
Conserva em mim ao menos a metade
do que fui de nascença e a vida esgarça:
(...) só me punja a saudade da pátria imaginária.
...
Espírito mineiro, circunspecto talvez,
mas encerrando uma partícula de fogo embriagador,
(...) não me fujas ... abre um portulano ante meus olhos
que a teu profundo mar conduza, Minas,
Minas além do som, Minas Gerais.
Carlos Drummond de Andrade

1. O mineiro ausente de Minas
Degredados, desterrados, deserdados, exilados – mas não desgarrados. Assim se sentem muitos mineiros que migram para outras paragens, forçados pelas circunstâncias ou espontaneamente buscando melhores oportunidades, horizontes mais amplos, futuro mais promissor. Mesmo quando o êxodo é voluntário estes sentimentos persistem, como se constata nas obras memorialistas, nos romances e
na poesia dos autores citados nas páginas neste trabalho.
Para verificar como os mineiros ausentes de Minas se relacionam com estes sentimentos, analisando também como tais sentimentos se transmutam, mitigam ou suavizam com o passar do tempo e adaptação à nova realidade, realizou-se entrevistas com mineiros de diferentes cidades, residentes em Brasília. Como
tratou-se de entrevistas abertas em que o entrevistado discorreu livremente sobre o assunto, produziu-se material qualitativo, no qual a questão da comida como fator de identidade comparece integrando um contexto maior, tanto no que diz respeito a memória e patrimônio em si quanto ao comprometimento político e atuação pelo seu resgate e preservação.
Os entrevistados deixaram suas cidades de médio porte no fim da adolescência, mudando-se para capitais onde já estavam os irmãos mais velhos, com quem foram morar. Isto deveria facilitar-lhes a adaptação e ambientação à nova realidade pelo convívio cotidiano com membros de seu grupo familiar. Contudo, a subjetividade do degredo de sua “pátria imaginária” (DRUMMOND:1980) os tornou melancólicos e
chorosos nos meses iniciais, a ponto de cogitarem o regresso para sua terra natal, conforme declarado em dois depoimentos:

“Eu conhecia pouco Brasília, mas por ser mais perto de Paracatu do que Belo Horizonte e por ter a estrutura que falei [seis irmãos morando na capital da República], terminei vindo para cá. Já conhecia Brasília, mas não tinha intimidade com a cidade e por isso o começo foi muito difícil. Achava tudo estranho demais e chorei muito durante vários meses. Mesmo morando com meus irmãos, o que me fazia sentir em família,
e indo a Paracatu nos fins de semana, feriados, férias da escola, não resolvia.
Acho que uma das coisas que fez o começo em Brasília ser tão difícil foi a falta que eu sentia de gente na rua, falta de esquina, falta de conversar com pessoas, tudo isso me dava muita solidão. No começo, achava muito estranho contato com pessoas tão diferentes, com os nordestinos de sotaque forte, por exemplo, depois fui acostumando e até achando muito rico conviver com pessoas de outros lugares, até de
outros países.” (Edina Morais – Paracatu/MG, 1962)
.........
“Mesmo indo ficar junto de meus irmãos e tios que já moravam em São Paulo , quando me mudei para lá, saindo de Januária, na beira do Rio São Francisco, chorei seis meses de saudade. Só consegui ficar em São Paulo porque pouco depois meu pai se aposentou em Januária e mudou com o resto da família para São Paulo.” (Nilda Castanha – Januária/MG, 1954)

A declaração do pranto, por meses sucessivos, indica que para muitos mineiros deixar a terra natal provoca sentimento de perda, de ruptura e descontinuidade. O choro é tão mais forte e prolongado quanto maior for o bem perdido, assim mensurado por Adélia PRADO (1991:131) no poema As mortes sucessivas:

“Quando minha irmã morreu eu chorei muito
e me consolei depressa. Tinha um vestido novo
e moitas no quintal onde eu ia existir.
Quando minha mãe morreu me consolei mais lento.
Tinha uma perturbação recém-achada: meus seios
conformavam dois montículos e eu fiquei muito nua.
Quando meu pai morreu, nunca mais me consolei.
Busquei retratos antigos, procurei conhecidos, parentes,
que lembrassem sua fala, seu modo de apertar os lábios
e ter certeza... Quem me consolará desta lembrança?”

Considerando-se a forte simbiose existente entre o mineiro e sua terra natal, mencionada no Capítulo II desta monografia citando NETTO (1984), pode-se aferir que - ao deixar sua terra - muitos mineiros estão partindo de si mesmos, iniciando o auto-degredo, fragmentando-se em partes separadas pela temporalidade subjetiva, que tem como marco a partida.
Nesta divisão, unidade e integridade caracterizam o que é anterior à partida e se sedimenta pela origem, pela história, pelo passado, pela tradição, pelo patrimônio, pela memória, pelo idílio, pela família. Com a partida, ganha existência uma nova realidade pessoal, subjetiva e dinâmica, que reticentemente se transforma a cada dia, com as novas vivências, novas experiências, novos aprendizados, novas
descobertas. Este processo, na maioria das vezes, acontece de fora para dentro, ou seja: se a primeira é fruto de uma trajetória historicamente vivida, a segunda resultará de um fazer, que pressupõe expor-se ao desconhecido e até ao acaso (DA MATTA:1979).
A dualidade destas duas partes - uma interna, outra externa; uma fincada no passado, outra projetada no futuro; uma situada na esfera privada e baseada na família e outra de representação pública e orientação formal; uma certa e outra duvidosa - permite retomarmos a analogia entre a casa e a rua, citada no Capítulo I deste trabalho, e, novamente, buscarmos no mesmo autor (IDEM:72) a distinção entre estes dois universos:

“O traço distintivo do domínio da casa parece ser o maior controle das relações sociais, o que certamente implica maior intimidade e menor distância social. [...] A rua implica uma certa falta de controle e um afastamento. É o local do castigo, da luta e do trabalho. Numa palavra, a rua é o que os brasileiros
chamam de ‘dura realidade da vida’. Em suma, a rua – enquanto categoria genérica em relação a casa – é o local público, controlada pelo Governo ou pelo destino, essas forças impessoais sobre as quais nosso controle é mínimo.”

Alguns depoimentos a seguir apresentados confirmam o valor que os mineiros atribuem à informalidade, à proximidade e à familiaridade nos relacionamentos sociais, demonstrando também que a ruptura com este modelo para eles é um dos fatores mais imediatamente impactantes, o que mostra Nilda Castanha quando diz:

“Detestava a individualidade das pessoas de lá [de São Paulo], sentia vontade de conversar com as pessoas na rua, cumprimentar, mas era impossível. Isso me dava uma solidão horrível, mesmo estando sempre cercada de gente em uma imensa multidão. Também a frieza do povo me assustou muito.
As pessoas se ignoravam, pulavam por cima umas das outras, mesmo que alguém estivesse passando mal. Isso pra mim era contrário a tudo o que eu conhecia, pois minha mãe acolhia, na nos fundos do armazém de secos e molhados de meu pai, todo mundo que vinha do meio rural para cuidar da saúde em
Januária e não tinha onde ficar. Minissaia em São Paulo era uma inadequação. Ninguém se
vestia daquele jeito, era sair na rua e ser assediada, incomodada. Sempre me aborrecia. Diante dessa rigidez moral, passei a usar calça cumprida, manga, pra diminuir a repressão que começava na casa de meus tios. A primeira coisa que tive que abandonar foram minhas roupas...”

A referência ao guarda-roupa, vinculado ao termo “inadequação” é elucidativa quanto à exigência de que, para ser aceito como membro do novo grupo social, o ‘estrangeiro do país imaginário’ (DRUMMOND:1980) de imediato precisa familiarizar-se com as regras locais e “incorporar códigos desconhecidos, cuidando
para não violar hierarquias não-sabidas ou não-percebidas” (DA MATTA:1979).
Este torna-se um angustiante desafio para os mineiros, tanto pelo risco que significa não vencê-lo quanto pela velocidade com que deve ser dominado, considerando que, segundo ARRUDA (2000:124), “os princípios sociológicos de Minas, elaborados por Alceu Amoroso Lima, baseiam-se na permanência: ‘o primado da concentração sobre a irradiação; o primado da lentidão sobre a velocidade; o primado da qualidade sobre o número’”.
Se por um lado a adaptação à nova realidade pode ser facilitada se houver imediata adequação aos padrões culturais vigentes no local para onde emigrou, esse dispositivo sugere aos mineiros ameaça de enfraquecimento de sua identidade, o que eles tentam compensar de várias formas. Uma delas é participando da Festa dos Ausentes de sua cidade - tradicional comemoração anual que, geralmente
realizada na data do aniversário do município, reúne conterrâneos que vivem em outras localidades. As entrevistadas deste projeto não só confirmam esta afirmação quanto relatam outras experiências desenvolvidas no mesmo sentido.
“Com o tempo, mesmo morando aqui [em Brasília], passamos [a entrevistada e os irmãos] a atuar na política e na cultura de Paracatu. Fizemos campanha para um candidato que se elegeu deputado estadual, mais tarde prefeito, depois novamente deputado estadual. Em troca, ele apoiava os projetos culturais
que a gente propunha, dava estrutura para que eles acontecessem. Festivais de música, encontros de arte e cultura, isso tudo realizamos. Incentivamos o prefeito na restauração do centro histórico, na criação do museu e de espaços públicos de convivência.
Fizemos várias vezes a Festa do Paracatuense Ausente, inclusive em Brasília, reunindo as pessoas de Paracatu que viviam aqui.Tanto em uma como na outra, as pessoas se reencontravam, lembravam do passado, se colocavam à disposição umas das outras, reforçavam a amizade. A gente achava isso importante porque era uma forma de proteger o que estava se perdendo. No caso dos prédios antigos, era
tentativa de salvar o que estava ameaçado e reconstruir, com base em fotografias, o que existiu um dia mas já naquele tempo não existia mais, para os mais jovens saberem como tinha sido a cidade antigamente.” (Edina Morais)
Este relato revela uma atitude bastante adotada por mineiros ausentes de sua terra: o envolvimento com ações de resgate e preservação do patrimônio arquitetônico e cultural. Se por um lado tal sensibilização demonstra zelo para com as riquezas culturais de sua cidade, por outro o desejo de garantir maior perenidade a essas referências culturais denota preocupação com a identidade cultural própria, pessoal.
Como já se disse anteriormente, a relação do mineiro com sua terra é simbiótica. O depoimento de outra entrevistada também é comprobatório: “A gente tem um sonho de recuperar a praça, onde brincava
quando era criança e que hoje foi toda descaracterizada. Me lembro que quando passava um ‘vapor’ no Rio São Francisco, cheio de turistas, eles desciam para fotografar a gente, criança, nos nossos folguedos, jogando bolinha de gude de manhã, brincando de casinha à tarde, brincando de roda à noite. Os
turistas descendo do barco com as máquinas fotográficas encantavam tanto a gente que, quando perguntavam as crianças o que elas queriam ser quando crescessem, nossa resposta era imediata: quero ser turista!
Temos conseguido nos mobilizar para apoiar a realização das festas, em especial a Festa de Santa Cruz, conseguindo que uma ONG de Brasília, que tem pessoas de Januária, ajude com o que é possível.
Nosso sonho é recuperar a praça da igreja – a igreja não é mais possível, porque foi demolida – trocar o cruzeiro por um outro de madeira maciça, como era o antigo, roliça – não este horroroso que colocaram lá recentemente.” (Nilda Castanha)
No processo de emigração e fixação de moradia em outro Estado, sem enfraquecer os vínculos culturais, para os mineiros a cozinha tem um papel primordial. Tanto que muitos, nos frequentes retornos à terra natal, trazem de volta na bagagem muitos ingredientes que possibilitem preparar, na nova cidade, pratos mineiros “autênticos”. Desta forma, reabastecem na fonte o combustível cultural que alimenta suas identidades, conforme relatado pelas duas entrevistadas:
“No começo, sempre que eu ia a Paracatu [a 220 km de Brasília], na volta trazia pão de queijo, empada, doce de leite, doce de ovos, de amendoim, queijos, lingüiça de porco, frango caipira, ovos caipira, feijão, banana, costelinha de porco, carne, algumas coisas prontas e outras para preparar. Essas comidas
me faziam sentir aqui mais perto de Paracatu.(...)

Trinta anos vivendo em Brasília, a saudade de Paracatu ainda existe, mas já é suave. Quando volto de lá ainda trago lingüiça de porco, carne de porco, massa de pão de queijo, doces e muitas outras coisas.
Aqui a gente encontra essas coisas para comprar, mas não é a mesma coisa.. As de lá a gente sabe que são caipira de verdade, têm gosto diferente”. (Edina Morais)
............
“... é impossível ir a Montes Claros e não trazer pelo menos a carne serenada, para fazer o picado de arroz ou assada com mandioca.” (Nilda Castanha)

Capítulo V
“As comidas dos homens são poéticas,
tiradas dos três reinos da criação
e matam em mim duas formas de fome ...”
Adélia Prado

1. A cozinha típica e a cozinha tradicional
Nesta unidade, quando começamos a tratar especificamente da refeição que os mineiros fazem “na rua”, fora de sua terra natal, e dos significados que a essa prática eles atribuem, é mister estabelecer aqui distinção entre culinária tradicional e culinária típica5, que também se repete nas denominações restaurante tradicional e restaurante típico. Acreditamos ser oportuno, ainda, mencionar a diferença que
existe entre o conceito de cozinha e o de culinária, assim explicado MACIEL (2004:26):

“Uma cozinha faz parte de um sistema alimentar – ou seja, de um conjunto de elementos, produtos, técnicas, hábitos e comportamentos relativos à alimentação -, o qual inclui a culinária, que refere-se às maneiras de fazer o alimento, transformando-o em comida.”

Amparados no Dicionário Aurélio (1999:1962 e 1982), estabelecemos no quadro a seguir uma comparação entre os adjetivos ‘típico’ e ‘tradicional’:

Típico Tradicional
característico, alegórico,
simbólico
  relativo ou pertencente à
tradição, conservado na tradição

5 Na literatura sobre a cozinha mineira não se encontrou esta distinção, chegando autores como
ABDALA (1997) a usar os dois adjetivos como sinônimos, referindo-se à composição dos pratos e
não à procedência ou processamento dos ingredientes e forma de preparo e apresentação.


Assim, nos objetivos deste trabalho, julgamos pertinente tomar como culinária tradicional aquela em que o preparo dos pratos é feito segundo tradição secular, utilizando ingredientes “nativos” e equipamentos artesanais6, em um fazer que - por motivos operacionais e econômicos - inviabiliza sua prática para produção em grande escala. No caso da culinária mineira tradicional, sua prática fora dos locais
de produção demandaria, por exemplo, a ‘importação’ de ingredientes considerados autênticos porque trazidos da região de origem, como fubá-moinho dágua, broto de samambaia, boto de abóbora, massa de bolinho-de-feijão ralada na pedra, chouriço suíno, umbigo de bananeira7, entre outros. A maioria necessitando de sofisticada estrutura para transporte, devido à sua frágil conservação e fácil deterioração.
Já a cozinha típica, justificando sua função alegórica, não tem obrigação pelo cumprimento dos mesmos rigores, nem quanto aos ingredientes, nem quanto aos equipamentos usados e formas de preparo. Nela, tendo em vista a viabilidade comercial, os ingredientes artesanais podem ser substituídos por similares
industrializados; assim como os equipamentos domésticos cedem lugar aos aparelhos industriais ou semi-industriais. Até os requintes do preparo podem ser deixados de lado, dado a necessidade de uma produção ágil e massificada, que seja disponibilizada a qualquer hora, com rapidez, para um grande número de fregueses ou para um único cliente.
.
Assim, normalmente não fazem parte dos cardápios de restaurantes típicos pratos como maneco com jaleco e maneco sem jaleco, péla égua, péla bico, broto de samambaia ao molho de limão, broto de abóbora refogado, gembê8 de mamão verde, cariru, mugango, ora-pro-nobis, sopa de milho verde e outros. Também não são comumente encontradas bebidas ‘exóticas”, como cachaças com mel, com
especiarias, com frutas, com cascas, raízes e ervas medicinais.

6 Em cidades mineiras como Lagoa Dourada e São Brás do Suaçuí, é comum deparar-se com
placas em lanchonetes e padarias que utilizam o adjetivo ‘legítimo’ e ‘legítima’ para qualificar seus
produtos tradicionais: rocambole de goiabada e de doce de leite e empadas de galinha e de queijo.
Declará-los legítimos significa atestar autenticidade, por serem feitos com produtos do lugar e
segundo técnicas de antigamente. Estes diferenciais os legitimam como testemunhos da cultura e
do passado, conferindo-lhes valor intangível, além do nutritivo e do gustativo.
7 Última parte do cacho, no formato de um coração roxo, o umbigo de bananeira é ingrediente-base
de um prato que leva costelinha de porco ou carne bovina moída, alho, cebola de cabeça, cheiro
verde e salsa. A melhor parte para a culinária é o miolo e seu preparo requer seguidas fervuras em
água de limão para retirar o amargo, antes de ser picada e refogada com a carne escolhida.


Nota-se a existência de julgamento com base em valores sociais, estéticos e culturais que classifica os pratos típicos como superiores (de primeira classe) ou inferiores (de segunda categoria). Os primeiros, mesmo que sua origem tenha raiz popular, não desqualificam quem os come e por isso integram o cardápio dos restaurantes, ainda que possam parecer “exóticos”.
Já os considerados de segunda categoria - como por exemplo mocotó, miolo, péde- porco, rim, coração, pulmão (bofe) e outros ‘miúdos’ bovinos e suínos –, por sugerirem primitividade, inferioridade, pobreza e atraso, além de serem mais expostos a crendices e tabus, podem ‘denunciar a origem’, envergonhar e
constranger quem os saborear publicamente em ambiente mais oficial. Por isso, são relegados a espaços - igualmente a eles - de “segunda classe”, quase socialmente clandestinos, como botequins de rua, bancas de feiras e restaurantes de mercados populares.
Sob esta ótica, a cozinha típica não busca ser um simulacro da cozinha tradicional, mas uma acurada representação dela. Contudo, na linha de raciocínio adotada neste estudo, este fato pode ser insignificante se o restaurante típico dispuser de outros atributos, como referências culturais, ambientação física e sonora e oportunizar o encontro de conterrâneos, apresentando-se assim como território mineiro fora do Estado de Minas Gerais. Afinal, conforme escreveu o filósofo grego EPICURO (2002:41), cerca de 300 a.C.
“Os alimentos mais simples proporcionam o mesmo prazer que as iguarias mais requintadas, desde que ‘removam a dor provocada pela sua falta’. Pão e água produzem o prazer mais profundo quando ingeridos por quem deles necessita.”

8 Refogadinho de mamão verde ‘novinho’, descascado e cortado em pequenos cubos.

A questão da territorialidade mineira nos restaurantes típicos liga-se de modo circular à questão identitária. Assim, para que o restaurante tenha assegurada sua condição de territorialidade, precisa propiciar aos clientes oportunidades de resgate e fortalecimento de suas identidades culturais, do mesmo modo que quanto mais desempenhar essa função mais terá legitimada sua condição de território mineiro
fora de Minas.
Ao longo desta análise, percebemos que não basta ao mineiro que o restaurante típico apenas procure reproduzir cenograficamente um ambiente colonial, rural ou de fazenda. Que sirva em louça peculiar de Minas Gerais, como por exemplo os pratos de Monte Sião; que a comida venha à mesa em panelas de pedra, ferro ou alumínio, ou que o buffet completo fique sobre um protótipo de fogão a lenha. O
que de fato importa é que o ambiente seja revestido de um sentimento mineiro, que evoque lembranças afetivas, traga para mais próximo referências culturais distantes, como declarado em entrevista:
“Às vezes vou ao Feitiço Mineiro. O nome atrai e o ambiente me faz sentir bastante em casa. A comida não lembra tanto minha região, mas as pessoas, o clima faz a gente pensar que voltou a Minas. Acho que lá podia ser um espaço que lembrasse mais [a paisagem e os cenários mineiros], mas as situações, os shows de música compensam, fazem a gente imaginar que está mais perto de nossa terra.” (Nilda Castanha)

2. Feitiço mineiro na cidade sem esquinas
Há indicações históricas de que a comida mineira desembarcou em Brasília logo no início da construção da nova capital, conforme declarou o cozinheiro Rosental Ramos da Silva, em entrevista concedida ao Museu da Pessoa. Em seu depoimento, Rosental afirmou ter vindo diversas vezes do Rio de Janeiro ao
Planalto Central, no final da década de cinqüenta do século passado, a convite do presidente Juscelino Kubitschek, para preparar, no Palácio do Catetinho, diversos banquetes:

“O Juscelino gostava da minha comida que eu faço todo dia: arroz, feijão, feijão tropeiro, tutu à mineira, couve, lingüiça, torresmo à vontade” (www.museudapessoa.net, acessado em 24/06/09).

Quase quatro décadas depois, Rosental abriu em sua residência, na Vila Planalto (que, originalmente, nos anos cinqüenta, era um acampamento onde residiam engenheiros e técnicos ocupados na construção de Brasília), um pequeno restaurante caseiro. Lá, preparava e servia, até sua morte, em 2005, pratos
tradicionais da cozinha mineira para um público de classe média que incluía políticos, intelectuais, profissionais liberais. A estrutura doméstica, restringindo o atendimento a um público reduzido, garantia a autenticidade da culinária, tomandose como culinária a já citada definição de MACIEL (2004): modo de transformar alimentos em comida.
Contextualizando a expansão dos restaurantes típicos mineiros em Brasília, temos que, em finais da década de setenta, surgiram na capital do país alguns restaurantes denominados “de comida mineira”, e eram bastante frequentados por clientes que, independentemente de sua naturalidade, buscavam um cardápio composto por pratos que incluíam lombo assado, feijão tropeiro, costelinha, couve, tutu, torresminhos e a cachaça da roça – símbolos telúricos que remetiam à idéia de vitalidade, autenticidade e nacionalidade, em uma época em que o país, em especial sua capital, viviam sob forte regime militar.
Entretanto, o que em Brasília, na época da ditadura, era tendência, ganhou força com a Nova República - anunciada pelo precursor Tancredo Neves -, sobreviveu à passagem da “República do Pão de Queijo”9 e se consolidou como modalidade de serviço gastronômico, que hoje é oferecida por restaurantes dos mais diversos níveis.

9 Alcunha atribuída ao grupo de políticos mineiros influente no governo federal durante a gestão
Itamar Franco na Presidência da República


O Feitiço Mineiro, citado pela entrevistada Nilda Castanha, foi o restaurante escolhido para ser analisado nos objetivos deste estudo. Criado em Brasília em 1989, na SCLN 306, Bloco B, Loja 51, além da comida típica mineira, oferece um cardápio cultural rico e diversificado que inclui, também, programação de shows,
recitais e lançamento de livros. Há presença marcante de músicos e escritores mineiros, mas lá também encontram palco e grande receptividade o samba carioca e brasiliense, a música instrumental, variadas expressões da música regional brasileira e até rock.
Conforme mencionado anteriormente, a necessidade de preparar e servir, com rapidez e a um só tempo, uma grande clientela foi um dos fatores que mais influenciaram para a transformação dos pratos autênticos, tradicionais, em pratos típicos, pela simplificação das formas de preparação, inclusive com uso de ingredientes congelados e pré-cozidos. A esse respeito, vale destacar que, mesmo na comida típica, a galinha ao molho pardo é um prato que vem se tornando mais raro, principalmente em função da complexidade de seu preparo, que requer ave caipira, recém-abatida, visto que o uso de seu sangue, fresco, garante sabor mais autêntico.
Nos primeiros anos de funcionamento do Feitiço Mineiro, o serviço era exclusivamente a la carte, com pratos emblemáticos da cozinha mineira tradicional: leitoa a pururuca, tutu de feijão com lombo, ovo e couve, feijão tropeiro, carne de sol, frango com quiabo e angu, galinha ao molho pardo, tendo como principais guarnições arroz branco, arroz com alho frito e arroz com queijo na panela de pedra. Completavam o menu torresmo, lingüiça, farofa de ovo, mandioca frita, mandioca cozida, batata doce, jiló e outras verduras.
Tendo em vista a necessidade de compatibilizar agilidade no atendimento - exigida pelo curto tempo que em geral os clientes dispõem para o almoço - com o acesso a maior variedade e diversidade de pratos, o Feitiço Mineiro adotou o sistema selfservice sem balança. O buffet, montado sobre um grande fogão a lenha cenográfico, tem preço fixo e permite saborear fartamente todos os pratos, inclusive alguns que não fazem parte da cozinha mineira tradicional mas são bem-vindos aos frequentadores, como o escondidinho de bacalhau. Na mesma linha, os petiscos, mais consumidos à noite, incluem pastéis de mussarela de búfala e tomate seco, polenta frita e kafta.
Aos sábados, é servida a ‘Feijoada do Feitiço’, na verdade um evento gastronômico-musical que, além do conjunto de pratos usuais na composição de uma feijoada, também oferece uma farta mesa mineira, ao som de chorinho. Vale ressaltar que o imaginário da comida mineira culturalmente é tão forte que
chega a “apropriar-se’ de pratos que, não se tendo garantia de sua origem exclusivamente mineira, são também representativos da cozinha tradicional de Estados vizinhos, como por exemplo Goiás. Porém, segundo ABDALA(1997:129) o que particulariza os pratos como mineiros “é o modo como são feitos em Minas, os rituais que envolvem sua preparação, o oferecimento e, principalmente, seu
significado para os mineiros. Os pratos considerados típicos [de Minas] são justamente aqueles que no passado foram partilhados por senhores, escravos, homens livres, tropeiros e fazendeiros.”
No Feitiço Mineiro, o cliente também encontra uma farta mesa de doces, que inclui sobremesas em pasta, em creme, em compotas, em calda, cristalizados, na qual se destacam o doce de leite, de mamão ralado, de abóbora com coco, de cidra, de figo, de laranja, de goiaba, além de manjares e pudins diversos.
Relatos dos viajantes que passaram por Minas no começo do século XIX informam que essa profusão das compotas de frutas é tradição que vem de longa data. Durante sua viagem ao Estado entre 1808 e 1810, “Luccock serve-se em São João Del-Rei de uma sobremesa com vinte e nove variedades de frutas, todas em compotas”, ilustra CASCUDO (2007:600).
Tal prodigalidade, segundo ABDALA (1997), era uma forma simbólica de demarcar status numa sociedade castigada pelas dificuldades de abastecimento, majoritariamente composta por desclassificados sociais que viviam nos limites da miséria. Nos dias atuais, quando a preocupação com a saúde e a estética incitam à moderação no uso de açúcar, há de se refletir se tão farta mesa de doces, como a do restaurante Feitiço Mineiro, não tem também sentido de ostentação, fartura e generosidade – a lógica da abundância reconhecendo e legitimando a lógica da escassez, por se opor a ela. E mais: se ao subverter, dessa forma, recomendações alimentares, não busca situar aquele ambiente gastronômico-cultural em um tempo
anterior à contemporaneidade.

3. Por dentro do Feitiço
O salão do restaurante é amplo e tem capacidade para 107 pessoas. Seu piso é de pedra ardósia esverdeada e as paredes, com textura discreta, são pintadas na cor amarelo claro, quase creme. Além do fogão a lenha, tem alguns elementos arquitetônicos e decorativos de influência colonial, como janelas no formato “canga de boi” e sanefa de lambrequins10 (pintadas de azul escuro) e um grande armário de
madeira, com pintura de arranjo floral, que lembra móvel de sacristia das velhas igrejas mineiras.
No jardim externo, rodas de carro-de-bois sugerem que para chegar ali imaginariamente é preciso transitar em carroças e carros-de-bois pelas estradas sinuosas e poeirentas do próprio interior, até transpor fronteiras do tempo e do espaço. Na área coberta, entre o jardim e o salão, conjuntos de duas mesas com
gavetas e quatro bancos cumpridos e sem recosto lembram o mobiliário das salas de jantar das casas simples mineiras nos séculos XVIII e XIX.
No salão principal do restaurante, a objetividade sincera da decoração discreta explicita que não é proposta da ‘casa’ reproduzir cenograficamente o ambiente de uma cozinha ou uma sala de jantar, mas fazer leve alusão a um tipo de ambiente ligado à refeições que existiu em Minas Gerais de fins do século XVIII à metade do século XX, porém situando-o no tempo presente. As mesas são simples, cobertas por toalhas brancas11, e as cadeiras se tornam quase imperceptíveis. Esta neotemporalização é obtida por meio de fotografias emolduradas e penduradas nas paredes, registrando eventos ali realizados e artistas que os protagonizaram ou por ali passaram, entre estes os mineiros Milton Nascimento e Ziraldo. Desta forma,
sugerem ao cliente discreta volta às casas do interior, onde os retratos pendurados nas paredes têm a função de tornar próximo e presente quem está distante e ausente (BOSI:1979).

10 Elemento arquitetônico presente na fachada de algumas casas das cidades históricas, no beiral
do telhado. De madeira recortada, se assemelham a uma franja barroca.


Sobre a opção por uma decoração mais racional em relação ao uso de pastiches e simulacros, vemos que ela encontra amparo no seguinte pensamento de ABDALA (1997:176):
“Nem só de passado vive a imagem. Tradição e inovação se combinam na tentativa de aliar um padrão ideal que subsiste na memória dos elementos do progresso, do presente. A projeção de um Estado que sempre se preocupou com seu papel no plano nacional exige atualização permanente de seus
elementos de modernização, ao mesmo tempo em que registra seus melhores momentos do passado.”
Alguns anos depois de sua criação, mais do que um espaço gastronômico, o Feitiço Mineiro tornou-se uma opção cultural, trazendo para apresentações expoentes da música mineira, como Fernando Brant, Tavinho Moura, Paulinho Pedra Azul, Dércio Marques, Tadeu Franco e Telo Borges. Também se apresentaram cariocas – sobretudo ligados ao samba - como Paulinho da Viola, Walter Alfaiate, Dona Ivone Lara, Teresa Cristina, Nelson Sargento, Noca da Portela e Dorina. Expressando o ideal democrático de união, integração e conciliação, tão presentes no imaginário mineiro, o palco do restaurante foi território livre e igualitário para paulistas como Cida Moreira, Simone Guimarães e Renato Teixeira; para nordestinos como Fausto
Nilo, Xangai e Naná Vasconcelos e para músicos de tantos outros Estados.

11 Sobre a importância da toalha na mesa de refeições mineira, em viagem a Minas no começo do
século XIX, BURTON registrou que “Uma das peculiaridades da mesa é a absoluta necessidade de
uma toalha; mesmo quando se é servido com um prato de feijão, por um hospedeiro negro, em
cima de uma canastra de viagem, ele faz questão de estender uma toalhinha”. (BURTON apud
ABDALA, 1997:99).


Por facilidades conjunturais, a maior ocupação hoje é por músicos locais. A programação musical movimenta o restaurante de segunda a sábado, com um artista diferente a cada dia, e a procura é tão grande que alguns shows têm lotação esgotada dias antes de sua realização.
Além da música, o Feitiço Mineiro implementou, de 1996 a 1999, importante projeto literário, lançando 13 números da revista literária Tira Prosa, que por três anos foi considerada nacionalmente uma das três melhores publicações na área de literatura (SANTOS:2008). A publicação, que reunia poesia, prosa, fotografia e artes plásticas, era pensada e preparada nas mesas do restaurante, que ganhava ares de
ambiente editorial, com reuniões de pauta e discussões de editoração literária. (IDEM, IBIDEM)

Em 2005, diversificando ainda mais o serviço, o restaurante ampliou seu espaço físico, o que possibilitou a inauguração do “Bar do Feitiço”, na entrada de acesso ao restaurante. Autodefinido “botequim típico dos anos cinqüenta” é identificado externamente com um grande painel fotográfico que na frente exibe uma visão panorâmica de Ouro Preto e na lateral fotos dos músicos que já se apresentaram nos eventos culturais do Feitiço Mineiro.
Internamente, como peça decorativa, o bar possui uma alta vitrine de madeira, onde expõe, para venda, grande diversidade de cachaças, algumas de nome pitoresco, entre elas: Biquinha, Doministro, Boi Parido, Artista, Xiboquinha, Boazinha, Rainha das Gerais e Puricana. Tanto as mesas e cadeiras do bar, quanto as do restaurante são simples e neutras, lembrando o mobiliário de bares tradicionais dos anos cinqüenta. O cardápio do bar além de tira-gostos convencionais, oferece como petiscos típicos de Minas torresmo, lingüiças de vários tipos, pão de queijo com pernil, fígado acebolado com jiló.

4. Feitiço mineiro pela internet
O restaurante Feitiço Mineiro utiliza o site www.feiticomineiro.com.br para estabelecer e intensificar relacionamento com os clientes, divulgando o cardápio e a programação cultural, além de permitir reservas para os shows e acesso a imagens que registram os espetáculos e também a visita de clientes / freqüentadores importantes, como políticos, intelectuais e personalidades de expressão local e nacional. Na ótica definida pelo foco deste trabalho, é pertinente observar que, apesar de se tratar de um restaurante, as fotografias em geral são posadas e não expõem as “celebridades” elevando brindes ou fazendo refeições.
Entende-se que tal opção pelas razoáveis formalidade e sobriedade confirma o pensamento de que para os mineiros – que ali são proprietários (e muito possivelmente os “fotógrafos”) e os freqüentadores (em maioria) - a refeição é um momento de relativa privacidade, assim como alimentar-se é um ato íntimo, que
merece ser respeitado e preservado, mesmo em ambiente gastronômico público.
O site tem, ainda, o mural eletrônico “Trem de Minero”. Trata-se de um espaço interativo, que disponibiliza um ‘cardápio’ de poesias, contos, causos e piadas encaminhadas por e-mail pelos clientes. Pelo volume de contribuições contabilizadas em 29 de junho de 2009 (24), nota-se que as piadas são o estilo literário preferido: em geral são bem-humoradas caricaturas escritas, que os freqüentadores fazem de si mesmos, de seus conterrâneos e de sua origem.
Por meio delas, se identificam e riem de si próprios nas peripécias do matuto protagonista de aventuras onde a ingenuidade e ‘esperteza’ se revezam, temperadas por uma dose de lascívia e picardia. Sem explícito juízo de valor, tudo se equilibra entre a inocência e a amoralidade. Dois produtos típicos da cozinha
mineira são recorrentes nas piadas do “Trem de Minero”: o queijo e o pão de queijo, reverenciados em anedotas que debocham da suposta preferência exagerada dos mineiros por estes dois produtos.
Mais do que produtos alimentícios, o queijo e o pão de queijo tornaram-se produtos culturais e até mesmo elementos simbólicos do Estado de Minas, sendo consumidos diariamente nas mais diferentes regiões do país. O queijo, produzido na cidade do Serro, em 2008 foi reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico
e Artístico Nacional - IPHAN como patrimônio imaterial brasileiro. O pão de queijo, imediatamente após a posse do vice-presidente Itamar Franco na Presidência da República em conseqüência do impeachment de Fernando Collor de Mello - e durante todo seu mandato - frequentemente foi utilizado pejorativamente pela imprensa nacional e pelos opositores do então Presidente para a identificação política de Minas como “república do pão de queijo”.
Sobre o papel desempenhado pelas piadas e ditos populares relativos ao povo de Minas e seu modo de viver, construídos como estereótipos da realidade e difundidos pelos próprios mineiros, e, ainda, ao modo como os mineiros se relacionam com as anedotas que os têm como tema e são por eles mesmos
inventadas, LIMA (1983:21 e 22) esclarece:

“Os mineiros são contadores de histórias, geralmente de histórias verdadeiras. Gostam de contar o que aconteceu e quase sempre acontece muita coisa em Minas. O mineiro tem profundo sentido da realidade, vai tomando nota de tudo e tudo observando com espantosa acuidade, mas não dá sinal aparente de nada. Guarda tudo consigo para comentar mais tarde, calmamente, com espírito humorístico.(...) Não é fácil
enganar um mineiro, apesar do que contam as anedotas. Talvez um pouco em consequência das anedotas, o fato é que o mineiro vive sempre prevenido.”
Na ‘aba’ “Histórico”, o site www.feiticomineiro.com.br faz uma descrição conceitual da cozinha de Minas que, transcrita a seguir, é merecedora da análise que fazemos mais abaixo, em breve consideração.
É arte e ciência. Panelas no fogo, misturando texturas, cheiros e sabores “ A cozinha mineira é feita de história, tradição e zelo, trazendo reminiscências de quando se tinha tempo de sentar em volta da
mesa generosa para prosear, saboreando uma galinha ao molho pardo, um pernil de porco magro bem temperado com pimenta bode (que não arde e solta um perfume de quero-mais) e o arroz branco e soltinho que não podia faltar. Cada prato da cozinha das Gerais traduz o gosto pela boa mesa. Farta em quantidade e qualidade. Das sobremesas que lembram as cristaleiras das avós, sempre repletas de doces e
afetuosas surpresas. A cozinha mineira é de muitas mãos.”

Observe-se que a descrição acima - apesar de sua finalidade notoriamente publicitária - associa aos pratos da cozinha mineira atributos ligados à temporalidade passada e à memória afetivo-emocional. Assim, sugere que a comida não é apenas percebida pelo sentido do paladar, mas, em uma experiência
sensorial plena, pode provocar e satisfazer os cinco sentidos, todos porém focados no que já é conhecido, e mais um sexto sentido, que é a memória, vivificada pela lembrança.
Além disso, também chama a atenção para o fato de que a cozinha mineira é plural e tem em sua origem elementos da cultura indígena, negra e européia. É bastante assertivo neste sentido o uso das palavras e expressões tradição, reminiscências, prosear, zelo, tempo de sentar em volta da mesa generosa, saboreando, bem temperado, perfume de quero-mais, cristaleiras das avós, afetuosas surpresas e
muitas mãos.

5. Feitiço mineiro na encruzilhada tempo x espaço
A fusão e complementaridade dos cardápios gastronômico, espacial, sensorial, cultural, afetivo e eletrônico do restaurante Feitiço Mineiro proporcionam aos freqüentadores mineiros, conforme anteriormente declarado pela entrevistada Nilda Castanha, o sentimento de estar “mais perto de nossa terra”. Entende-se que a opção por definir o sentimento como ‘aproximação’ (estar “mais perto de nossa terra”) - e não como ‘transporte’ (estar “em nossa terra”) - deve-se ao fato de que o restaurante não disfarça sua espacialidade e temporalidade atuais.
Ao contrário, reafirma sua existência contemporânea com ambientação que moderadamente utiliza recursos cenográficos e objetos decorativos ou utilitários, evitando simulações e pastiches de um estado12 – de um tempo e de um lugar – que já inexiste, ou, como precisou DRUMMOND (1980:70) no célebre poema “José”, referindo-se ao seu Estado natal, “... Minas não há mais...”.
A Minas, oferecida à mesa no restaurante Feitiço Mineiro, para encontro e degustação, é a Minas atual, contemporânea porque alimenta e se alimenta de raízes antigas, seculares, num processo que faz dos sonhos de reabilitação do passado seiva para nutrir os ideais de futura infinitude (ARRUDA:2000).
Esta constatação evidencia que os produtos gastronômicos e culturais do restaurante Feitiço Mineiro nada mais são do que o incentivo e a oportunidade para os frequentadores mineiros se encontrarem com lembranças pessoais, com a própria memória e consigo mesmos, na busca de, simbolicamente, fortalecerem sua identidade, visto que, também conforme DRUMMOND (1980:183) “Tudo se come, tudo se comunica, tudo, no coração, é ceia”.
Aos freqüentadores não-mineiros, que não são maioria mas representam percentual expressivo no total de clientes, o restaurante Feitiço Mineiro proporciona, por meio da comida em si e de seus significados e das produções literárias e musicais, a oportunidade de conhecerem e desfrutarem Minas Gerais - os sabores, os saberes, o passado, os temores, as crenças, a fé, a cultura e a arte - sem se deslocarem da capital da República para a região das Alterosas. Isto pode ser evidência concreta do que é sutil e velado na obra de escritores e poetas: de que Minas não tem fronteiras nem limites, está em toda parte (ROSA:2008).

12 O Dicionário Aurélio Século XXI(1999:826) apresenta, entre outras definições de ‘estado’, a de
“modo de ser ou estar; modo de existir na sociedade, situação social ou profissional, condição”.
Esta definição nos parece bastante adequada ao sentido que aqui se deseja empregar, visto que
não cabe a de unidade geopolítica.


6. O feitiço do Feitiço
Toda cozinha, além de ser um conjunto de hábitos alimentares, é também território mágico onde se transforma alimentos em comida, transmutando natureza em cultura (ABDALA:1997,17). Especialmente a cozinha mineira, é um espaço privilegiado de convívio e relações sociais, onde, além de promover, por meio do fogo, do calor e dos utensílios, a citada transformação, se cria e se prepara o alimento para o viver, tanto biológico quanto cultural, conforme sistematizado a seguir:




Diversas culturas atribuem à comida função culturalmente vivificadora, transmissora e perpetuadora. Conforme LODDY (1979:32), nas religiões afrobrasileiras, “o espaço sagrado da cozinha é de alto significado para a perpetuação da divindade, sua manutenção e renovação da atividade mágica e dinâmica do Axé, elemento vitalizador das propriedades caracterizadoras dos deuses e seus domínios na natureza, projetando suas ações ao diário do homem.”
Entretanto, mesmo fora do campo religioso, a comida desempenha função semelhante à descrita na pesquisa Santo também come (IDEM, IBIDEM), resgatando lembranças de um passado conhecido ou imaginado, próprio ou ancestral, consolidando, materializando e transmitindo-as como referência, desejo
inconsciente, ideal e elemento identitário.
O trabalho de campo realizado mostrou-nos que o fato de ser preparada com fins comerciais necessariamente não desvincula a comida típica mineira de tal função e significado. No caso do restaurante Feitiço Mineiro, pelo contrário, há influência de um componente subjetivo, relacionado à infância e à figura paterna, oriundo da história pessoal do proprietário Jorge Luiz Santos Ferreira (SIC)13 e do chef
Geraldo Rocha.
Pelo que percebemos na entrevista realizada com o chef Geraldo Rocha, a subjetividade da lembrança de um tempo vivido converte-se em tempero e em um fazer que - ao materializar sentimentos e emoções - convertem a comida do Feitiço em “feitiço”. Prova disso é que, mesmo apesar do culto à forma física e das
recomendações alimentares por uma dieta mais leve, hipocalórica e natural, o restaurante Feitiço Mineiro, funcionando todos os dias da semana, tem uma clientela bastante numerosa. Este público é formado majoritariamente por pessoas de classe média, residentes em Brasília ou em visita a esta capital, em média com idade entre 35 e 60 anos.
Sintetizando as considerações acima, temos que a natureza transformada em cultura e o alimento convertido em comida (ABDALA:1997), principalmente quando somados a um elemento subjetivo, afetivo-sentimental, e a uma programação musical e literária, criam um produto alimentício-cultural capaz de satisfazer, ao mesmo tempo, as necessidades nutricionais e culturais de mineiros e não mineiros.

7. O feiticeiro do Feitiço
Analisando a cozinha e a culinária (MACIEL:2004,26) do restaurante Feitiço Mineiro, constatamos que nelas coexistem diversos componentes objetivos, relacionais, conceituais, emocinais, psicológicos e sociológicos que autores como LIMA (1983), ARRUDA (2000), ABDALA (1997) e outros que se dedicaram a
estudar o povo e a comida de Minas definiram como peculiares e caracterizadores dos mineiros. Pensamos que tal coexistência muito se deve ao fato de tanto o proprietário quanto o chef serem, eles próprios, a um só tempo, cada um no seu papel, detentores e disseminadores do que a comida possui como elemento constitutivo da identidade dos mineiros.

13 Jorge Ferreira, mineiro de Cruzília, 50 anos, é proprietário de oito restaurantes de grande porte
em Brasília. Apesar de sua receptividade ao convite para entrevista, não foi possível realizá-la, por
indisponibilidade em sua agenda devido a viagens no período de realização desta pesquisa. Lançou
recentemente o livro Fazimento, de “causos” mineiros e poesias.


A história do chef Geraldo Rocha é emblemática e fornece elementos enriquecedores para a identificação e compreensão de um fator que é capaz de conferir autenticidade e legitimidade à comida típica: a relação da história de vida de quem a faz - e do próprio fazer culinário - com o produto final, que é ao mesmo
tempo gastronômico e cultural.
Mineiro da cidade de Uruana de Minas14, órfão de mãe desde o segundo ano de vida, Geraldo era o caçula de 11 irmãos e veio para Brasília aos 9 anos, em 1984, depois da morte do pai, que o criara. Na capital brasileira foi acolhido por um irmão em uma chácara, distante a aproximadamente 40km do Plano Piloto, onde trabalhou na agricultura até completar 16 anos.
A partir de então, empregou-se na construção civil e, como servente de pedreiro, trabalhou na construção do restaurante Feitiço Mineiro, que durou cerca de 5 meses. Concluída a obra, viu no restaurante a oportunidade de melhorar as condições de trabalho e, ao mesmo tempo, dedicar-se a uma atividade que estava ligada a uma forte lembrança de sua infância: o preparo da comida mineira, feita pelo pai que, pela ausência definitiva da mãe, passou a sustentar – inclusive com o preparo alimentar - os irmãos órfãos.
Em Aruana de Minas, Geraldo lembra, comiam muita língua de vaca15, cansanção16, taioba, inhame, ovo da terra17 e outras raízes semelhantes a “comida de índio”18. Esses pratos “rústicos”, dos dias comuns, eram as únicas coisas de que comiam nas épocas de dificuldade. Nos dias especiais e em tempos de fartura, o pai também preparava tutu, feijão com caldo, galinha caipira, galinha com orapronobis, ao molho pardo, verduras e outras comidas de que hoje ele se lembra todo dia, quando prepara o buffet do Feitiço Mineiro. Sem dar-se conta, seu aprendizado começou ainda na infância quando, após a matança de porcos, ajudava o pai a limpar e tratar as carnes para que viessem a se tornar alimentação.

14 À época de sua vinda para Brasília, Uruana de Minas pertencia ao município de Unaí, do qual
emancipou-se em 1995. Situado no noroeste de Minas, Uruana hoje possui menos de 3.000
habitantes mas ainda tem a base de sua economia fundamentada na agricultura de frutas, algodão,
café, chás e condimentos (www.ibge.org.br, acessado em 07/07/2009).
15 Erva nativa, conhecida em todo Estado, servida refogada, principalmente no cardápio do almoço.
16 Erva nativa, da família das urtigas, é comida refogada
17 Raiz que, ralada e batida, produz espuma que adicionada a farinha e frita resulta em um prato
semelhante a bolinho de ovo.


Concluída a obra e tendo se interessado pela natureza do negócio que ali funcionaria, Geraldo pediu emprego ao proprietário do restaurante e foi contratado.
Começou trabalhando como ajudante de cozinha, depois foi chapeiro, cozinheiro, substituto do chef e, ao fim do segundo ano, chegou à função máxima - chef de cozinha - que desempenha há 18 anos.
Hoje com 37 anos de idade, Geraldo é casado, tem cinco filhos (três homens e duas mulheres) e, por opção, para transformar em realidade as lembranças distantes, continua residindo na mesma chácara que o abrigou quando veio para Brasília. Ensinou à mulher os segredos da cozinha mineira e coloca o mesmo
saber à disposição dos filhos, mas não os incentiva a utilizar profissionalmente estes conhecimentos, “porque é muita responsabilidade”.
Conforme declara, é da emoção nascida nos tempos difíceis da infância que vem o gosto peculiar que imposta às comidas preparadas no restaurante Feitiço Mineiro19. Prepara os pratos de cor, “pela própria cabeça”; tempera seguindo a “intuição” e cozinha por “sabedoria”.

“Todo dia, na hora que estou cozinhando, lembro de meu pai, cozinho pensando nele. Vem à cabeça aqueles tempos difíceis, quando por necessidade a gente tinha que comer feijão puro20,
arroz com açúcar21, guariroba à força. Eu não gostava de guariroba... Hoje, quando preparo os pratos do restaurante, me lembro daquelas dificuldades e então faço tudo para que as pessoas que vêm comer aqui não sintam o mesmo que eu passei. Elas pagam para ter um momento bom, gastam para comer com a
boca e com os olhos. A gente que está do lado de cá tem que proporcionar isso a elas.”

18 Na entrevista, relatou julgar ter descendência indígena na declaração “minha avó era ‘enraçada’
de índio”. Apesar de os indígenas serem etnia formadora do povo brasileiro, não é comum em
Minas se reconhecer descendente de índios.
19 Geraldo declara-se autodidata. Não segue livro de receitas nem tomou aulas de culinária,
argumenta que sua habilidade à frente de ingredientes e temperos tanto é fruto de lembranças e
observações quanto é algo divino, involuntário: “você pega a profissão e a profissão pega você. É
um dom divino. Nem você se livra dela nem ela se livra de você...” Esta explicação se assemelha à
que é utilizada por adeptos das religiões afrobrasileiras quando se referem às entidades que deles
se “apoderam”. Percebe-se nela certa intenção de exprimir determinismo e sortilégio.


Esta declaração, ao se referir aos tempos difíceis, evidencia que, devido à orfandade materna, aos dois anos, seguida da “orfandade cultural”, aos oito anos, o chef encontrou na cozinha um espaço de resgate afetivo e da memória pessoal, de participação e intervenção cultural. Nas reflexões deste trabalho, tal depoimento remete-nos aos fatos e considerações anteriormente mencionados em referência à
história do surgimento, povoamento e desenvolvimento cultural da Capitania de Minas Gerais. Também nos revela sentimentos presentes nas obras literárias e poéticas que, citadas em capítulos anteriores, falam do mineiro ausente de Minas.
Podemos supor que, inconscientemente - já que sua naturalidade22 e seu nível instrucional não lhe proporcionam grande conhecimento da história de Minas - Geraldo procura utilizar a cozinha típica como instrumento para, a um só tempo, evocar e transpor uma realidade que funde elementos da ancestralidade coletiva e de sua história pessoal.
Pela emoção e pelo sentimento, busca na memória individual situações que são similares a um histórico longínquo e coletivo e os resgata compensatoriamente nos pratos que prepara e disponibiliza. Assim, utilizando-se do fogo, do calor e de objetos domésticos ou industriais, reinventa o processo que transforma natureza em cultura, possibilitando uma re-interpretação do passado com base em nova referência e nova temporalidade. Inverte, na abundância gastronômica e simbólica dos pratos que prepara, a memória de um tempo de carências e privações. Sem saber que há semelhanças concretas entre sua infância e a “infância de Minas”, quando no início do século XVIII a população das áreas de mineração era vitimada pela fome absoluta, se apraz em chefiar uma cozinha que nasceu naquela época distante.

20 Segundo CASCUDO (2007), ter unicamente feijão (ou milho) como refeição era comum em
Minas nas primeiras décadas do povoamento do Estado, devido à grande dificuldade de gêneros
alimentícios.
21 Percebemos na combinação arroz com açúcar evolução do hábito que, segundo diversos
autores, predominou em Minas por mais de dois séculos mas hoje é inusitado: comer mandioca
com açúcar.
22 A história de sua cidade natal, onde viveu 8. anos, é recente e se iniciou na segunda metade do
século XX.


Ao informar que no seu dia-a-dia, por vontade própria, não se alimenta dos pratos que prepara no restaurante, preferindo a “comida caseira que come ao voltar para a chácara: arroz com feijão, verduras, carne simples, frango caipira, costelinha de porco, ovo frito, por exemplo,” evidencia a opção por conservar o hábito doméstico da comida simples, cotidiana.
Novamente aponta-nos a diferenciação que o mineiro faz entre a comida de casa e a comida da rua, ao mesmo tempo em que nos mostra uma equação singular, da qual fazem parte fatores como trabalho, suor do rosto, dinheiro no bolso - definidores da análise comparativa já apresentada na Introdução desta monografia, mas que julgamos oportuno aqui repetir:

Em casa, a comida é: Na rua, a comida é:
Íntima, particular e sagrada Pública, coletiva e profana
Obtida com o suor do rosto Comprada com o dinheiro do bolso
Comunhão Culpa de infidelidade, quase gosto
de prevaricação

Outra análise que fazemos, com base nesta preferência do chef Geraldo, é que a comida tipificada como mineira com fins turísticos e comerciais hoje não faz parte do dia-a-dia das pessoas, sobretudo nas grandes cidades, mas tem forte caráter rememorativo ou comemorativo, o que faz com que, para os mineiros, seja preferida em ocasiões ou situações especiais.
Por fim, ainda amparados no depoimento relativo à refeição de preferência deste nosso entrevistado, preparada pela mulher e comida em casa, ao voltar do trabalho, percebemos clara relação de correspondência e diferenciação entre a cozinha do restaurante e a cozinha de casa, assim como os espaços sociais de representação e papéis masculino e feminino em relação à casa, à cozinha e à comida.
Quanto à dimensão cozinha, nota-se que no ambiente doméstico convencional é espaço de domínio feminino, com acesso mais controlado, onde se conjugam questões em diversos aspectos restritas, tanto no plano familiar, afetivo e privado quanto no econômico, no social e no de re/des-velar a realidade.
No caso dos restaurantes, a cozinha possui outros contornos e deve funcionar segundo padrões altamente profissionais, precisos, impessoais, assépticos e públicos, para manter qualidade constante. Mesmo nos restaurantes de atendimento mais personalizado e intimista, a cozinha tem características industriais. Desta forma, nas cozinhas dos restaurantes, os homens desempenham funções públicas de cozinheiros e chefs, mas no espaço que é o lar, retornam à posição provedores e são servidos pelas mulheres.
Na caracterização de um mineiro típico, Geraldo destacou o aspecto rural (roceiro), disposição e dinamismo (trabalhador, pega no pesado), desconfiança (pessoa cismada, presta a atenção em tudo), sinceridade (não gosta de fuxico), seriedade (não é de muito riso, gosta de tudo certo), metodicidade (é sistemático) e determinação (se não gostar, pode até não reclamar, mas nunca mais volta), características que ele disse manter, apesar de ter deixado Minas aos 8 anos.
Indagado sobre mudanças que faria no restaurante, caso viesse a se tornar proprietário, referiu-se a um ajuste na decoração, tornando-a mais marcante em relação aos arquétipos de Minas, sobretudo em relação aos ambientes rural e de fazenda. Quanto à cozinha e à culinária, acha que seria um grande diferencial importar produtos autênticos como ovos caipiras, lingüiça e verduras que não encontra em Brasília.
A primeira observação (ambientação) vai ao encontro da percepção da entrevistada Nilda Castanha, no depoimento que encerra o item 1 deste Capítulo e a segunda (procedência dos alimentos) se aproxima da consideração feita na abertura do mesmo capítulo, quando abordamos a diferença que percebemos entre cozinha típica e cozinha tradicional.

Capítulo VI
1. Quando a comida é feitiço
A sabedoria popular usa a expressão “Peixe morre é pela boca” quando pretende ensinar, reforçar ou argumentar que o sabor23 tem grande força persuasiva. Por evocar lembranças ou aguçar curiosidade pelo desconhecido, frequentar restaurantes típicos é programa muito procurado, quando o desejo é aliar à
alimentação fatores que sugerem alteração de rotina, como a ilusão de viagens e de estar em um lugar diferente daquele que, de fato, se está. A comida regional tem capacidade de cumprir essa função, simulando outras realidades e outras temporalidades, ou seja, pela comida é possível, imaginariamente, viajar no tempo e no espaço.
Outra questão a se considerar é que a comida, além do prazer advindo do sabor, promove a saciedade, que também se manifesta como prazer pela sensação de reconforto, plenitude e bem-estar – função que orientou a criação dos primeiros restaurantes na França do século XVIII e derivou no nome que passou a designar o tipo de estabelecimento que servia ‘refeições restauradoras’ (BOLAFFI:2006).
Contribui para esta sensação satisfatória e restauradora que a comida proporciona o fato de, comumente, as refeições serem feitas em grupo, em um clima de amizade, solidariedade, empatia, gentileza e cooperação. Mesmo sendo um ato fisiológico que remete à animalidade, para o homem civilizado a prática do ato alimentar quase sempre é ritualizada, o que lhe imprime sentido cultural e função civilizadora (ELIAS:1990). Assim, é indicativo de evolução social e cultural, caracterizada pelo afastamento dos vínculos primitivos com a natureza e avanço rumo à codificação, à abstração e à civilização.
Além disso, como lembra ABDALA (1997) citando VALERI (1989), a comida tem sua importância simbólica extremamente ampliada “frente à destruição de laços tradicionais” característica das sociedades atuais, o que explica o sucesso das cozinhas regionais como caminho para o resgate e o encontro identitário, assim
como elementos de resistência cultural.

23 O substantivo sabor tem, nesta consideração, não apenas o sentido de paladar, mas refere-se também ao prazer provocado por sabor agradável e suas lembranças, avançando do campo fisiológico (sensorial) para o psíquico (emocional).

A exemplo da língua materna, a alimentação materna pode caracterizar elementos de continuidade e permanência de sociedades e etnias, o que pode ser melhor percebido entre emigrantes numa esfera mundial (ABDALA:1997,155).
Desta forma, podemos dizer que a comida típica – enquanto produto cultural e tudo o que em torno dele gravita – tem a propriedade ‘mágica’ de estabelecer aproximações, evoluções e distanciamentos entre a natureza e a cultura, entre o animal e o intelectual, entre o primitivo e o civilizado, entre o aqui e o lá, entre o
igual e o diferente, entre o agora e o ontem. A comida liga e religa e, por isso, tem feitiço, enfeitiça.

2. A comida: feitiço do turismo
Em relação ao turismo, não é diferente: a comida típica pode, por meio dos sabores e significados de pratos e bebidas, proporcionar a quem a degusta verdadeiras viagens sem sair da mesa. Mais do que isso, pode transmitir conhecimentos diversos, desde a história do povo que a criou e mantém até a história de vida de quem a prepara. Pode, ainda, constituir atrativo e estímulo para que quem a aprecia se interesse e deseje conhecer in loco a região que é sua origem e o modo como originalmente é feita, atuando assim como aliciante e eficaz divulgadora.
Especialmente a cozinha mineira tem fatores que facilitam sua aceitação pelos brasileiros, sobretudo das regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. A diversidade alimentar do Estado com o passar do tempo deu origem a um cardápio que, sobretudo nos restaurantes, cotidianamente, oferece opções de carne bovina,
suína, de aves (galinha e frango) e peixe; grande variedade de verduras e legumes, bem como a utilização de gêneros que são a base da refeição nacional, como o arroz e o feijão.
Em um processo antropofágico, a partir da última década dos anos oitocentos, a cozinha mineira absorveu, transformou e incorporou pratos vindos de outras regiões e até de outros países, trazidos pelos trabalhadores que chegaram sobretudo para a construção de Belo Horizonte (ABDALA:1997). Ao adequá-los de modo tão particular aos ingredientes, modo de fazer, tradições e gostos locais,
possibilitam que os pratos, apesar de sua origem “estrangeira”, pudessem, mais tarde, vir a ser considerados como pratos mineiros (IDEM:IBIDEM).
O controle das texturas, a medida do cozimento e o equilíbrio apurado no uso de temperos e condimentos, fazendo com que todos os sabores sejam harmonicamente percebidos, mas nenhum se sobressaia aos demais, também constituem elementos facilitadores de aceitação.
Observe-se que a “temperança” no uso de condimentos expressa estreita afinidade com os ideais mineiros de igualdade, democracia, diversidade e conciliação (ARRUDA:1990), podendo-se até abstrair tratar-se de um discurso alimentar - construído a partir de um repertório formado principalmente por carnes, verduras,
legumes, grãos, farinhas, sal, cebola, alho, pimenta, cravo, canela, limão, leite, ovos, frutas e açúcar - em favor da tolerância e da convivência harmoniosa. A característica caseira da comida típica mineira proporciona relativa informalidade e intimidade; sugere despojamento, fartura, vitalidade, descontração, proximidade e companheirismo. Ao mesmo tempo, transmite sensação de higiene e exclusividade (individualização), mesmo quando servida no balcão self-service. Na cozinha mineira, o sentimento nativista é, consciente ou inconscientemente, percebido como resultado de um arquétipo construído a partir de imagens como a de que os produtos (tanto os ingredientes quanto os pratos) são representações do
‘interior’24 e, portanto, da ‘nossa’ terra. E também a de que o ambiente do restaurante, pela espontaneidade, generosidade e ‘autenticidade’ remete a situações acolhedoras e desejáveis, como almoço em família, visita a parentes que vivem em pequenas cidades, volta aos interiores geográficos e humanos e outras situações de encontro e natural congraçamento.

24 A expressão interior reveste-se de dois significados: o primeiro refere-se ao interior do Estado e
do país; o segundo, ao interior da terra, estabelecendo-se correspondência entre comida e as
riquezas minerais que o mineiro recolhia, pegando sobre a terra nas catas, garimpando nos rios e
buscando em veios nas fendas de betas profundas e nos subterrâneos de longas galerias.


Nota-se que, mesmo geralmente não existindo nos salões e cozinhas dos restaurantes típicos mineiros um fogão a lenha aceso, há, no imaginário relacionado a estes espaços, a presença do fogo primitivo, domesticado tanto para o cozimento dos alimentos quanto como elemento purificador e também fonte de
calor para sentimentos vigorosos.
Assim sendo, nos objetivos desta monografia, tem-se que a comida típica mineira é, hoje, um dos cartões de visita do Estado de Minas e de seu povo, mas pensa-se que a cozinha mineira pode vir a se tornar, também, um cartão de boas-vindas a Minas Gerais. Esta é a questão que trataremos nos próximos itens deste capítulo: a utilização da comida típica mineira como canal e veículo de divulgação turística
de Minas Gerais.

3. A comida: feitiço para o turismo
A comida típica, como produto cultural - tanto no sentido antropológico quanto como forma de lazer e entretenimento – reúne uma grande variedade de elementos que remetem à história, à memória, ao patrimônio imaterial e ao imaginário sobre o povo da região onde tais hábitos alimentares se originaram.
No interesse do turismo, trata-se de produto peculiar porque pressupõe deguste – modo pelo qual a cultura que a comida representa é fisicamente incorporada àquele que a experimenta. Pelo deguste, a comida e a cultura entram no corpo de quem é alimentado. Este é um dos diferenciais que a comida típica apresenta em relação a outros produtos turísticos, assim como também o é a possibilidade de transpor limites temporais e geográficos para ser servida distante do local de que é característica.
Em torno da comida típica, no mesmo espaço onde ela é servida, podem se incluir elementos que complementem a formação de conhecimento e informação sobre o local que culturalmente deu origem àqueles pratos, em especial a música que, exatamente por sua imaterialidade, é eficaz na construção de ambiências. No restaurante Feitiço Mineiro, até a frequência majoritária de mineiros contribui para intensificar esta caracterização, inclusive como fator de autenticidade e “certificação”25.
Vale ressaltar que no caso dos mineiros ausentes de Minas, os restaurantes típicos são também espaços de resgate e fortalecimento identitário. Segundo o paulistano Mauro Calichman, diretor comercial do grupo de 8 restaurantes de diferentes cozinhas, do qual o Feitiço Mineiro foi uma das matrizes,

“(...) O Feitiço Mineiro é uma embaixada de Minas na capital da República”. Aqui os mineiros, que são maioria e também os freqüentadores mais assíduos, se sentem mais perto das esquinas de suas cidades, das montanhas de sua terra. Matam a saudade com a comida, mas também com as
conversas, com tudo aquilo que ficou para trás mas que o ambiente do restaurante ajuda a lembrar”.

Este depoimento tem relevância especial porque se baseia na visão objetiva de um administrador empresarial, não mineiro, que passa parte de seu dia no restaurante Feitiço Mineiro, em contato direto com clientes, fornecedores e funcionários. Vimos nele importante reforço testemunhal para a hipótese de que, pelo que oferecem e possibilitam aos mineiros ausentes de seu Estado, os restaurantes típicos podem
constituir territórios de Minas além das montanhas e das divisas geopolíticas. ABDALA (1990) registra que, há cerca de 25 anos, iniciou-se em Minas um esforço de valorização da cozinha mineira como bem patrimonial e elemento de identificação de Minas face aos demais Estados. Datam desta época a expansão comercial e a popularização nacional do pão de queijo - distribuído para várias regiões por meio de franquia - e o aumento do número de restaurantes típicos de comida mineira nas principais capitais do país.
Contudo, na prática, a comida mineira ainda não é reconhecida nem utilizada como linguagem e discurso nem, tampouco, potencializada como canal de divulgação do Estado visando o incremento do turismo. Apoiados em ABDALA (IDEM), percebemos que, em parte, isto se deve à descontinuidade do apoio
governamental ao trabalho de valorização da comida típica mineira como patrimônio do Estado, decorrente de mudança no quadro político estadual, na metade da década de oitenta. Mas a este fato acreditamos se somar dois outros fatores:
► não-inclusão plena da comunicação no planejamento turístico. O que se observa são ações de publicidade e propaganda com objetivos de divulgação;
► limitada atuação dos setores locais (em maioria órgãos públicos ligados às prefeituras) envolvidos na promoção e desenvolvimento do turismo municipal.

25 A esse respeito, vale resgatar a designação “legítima”, citada anteriormente nesta monografia,
usada em placas de beira de estrada na região de Lagoa Dourada e de Entre Rios de Minas para
qualificar, como tradicionais e autênticos, rocamboles e empadas.


4. Comida: feitiço pelo turismo
Os restaurantes típicos privados são empreendimentos comerciais e, como tal, se mantêm com o superávit obtido com a oferta de alimentos produzidos sob inspiração da cozinha regional. Mesmo aqueles que seguem piamente orientações abstratas enunciadas nas primeiras páginas dos documentos de planejamentos estratégicos convencionais - como missão, filosofia, princípios, valores, visão de
futuro, público-alvo e campo de atuação - só desfrutam longa existência se não minimizarem sua natureza comercial, voltada primeiramente para o lucro. No interesse deste trabalho, tem-se que, fora de Minas, o público-alvo prioritário, mesmo dos restaurantes típicos das grandes cidades, é a população local (ou
segmentos dela), assim como o campo de atuação desses empreendimentos restringe-se à própria cidade (ou a áreas específicas) onde o restaurante está situado. Fora desses limites, os interesses são menores e pontuais, incluindo-se, no primeiro caso, os clientes eventuais, vindos de outras cidades a turismo, lazer ou negócios, e, no segundo, principalmente fornecedores de outras praças.

Por sua vez, nacionalmente, a maioria das localidades de potencial turístico – apesar do grande holofote que a mídia joga sobre o turismo como atividade econômico-cultural - foca sua pequena atuação exclusivamente para acolher visitantes. Neste sentido, tentam disseminar entre os habitantes locais a
consciência da importância do turismo e estimular a criação de pequenos estabelecimentos nos segmentos de hospedagem, alimentação e lazer.
No Estado de Minas, mesmo as cidades com maior expressividade e tradição no desenvolvimento do turismo, quando atuam fora dos limites locais e regionais, o fazem com campanhas focadas na divulgação realizada por meio da publicidade e da propaganda. Especificamente em relação à comida como elemento cultural de interesse turístico, houve um esforço institucional do Governo de Minas neste sentido, com a definição de uma política cultural que, destinada a fortalecer a associação da imagem do povo mineiro à comida e à cozinha, criou um Grupo de Trabalho encarregado de realizar e pesquisas e desenvolver projetos com este fim, além de investir na publicação de livros sobre o tema (ABDALA:1999).
Na ocasião, a Secretaria de Estado de Esportes, Lazer e Turismo lançou um folder com finalidade turística, distribuído amplamente, denominado Cozinha Mineira. Nele, particularidades da cozinha mineira eram descritas de modo convidativo, como apresentação para 23 receitas culinárias ensinando a preparar os seguintes pratos típicos, quitandas e doces:

► Frango à caipira com quiabo e angu; Arroz panela de pedra com queijo; Couve à mineira; Angu; Feijão “de” tropeiro; Torresmo; Canjiquinha; Tutu com linguiça e couve; Lombo de porco à mineira;
Biscoito frito; Bolo de fubá; Pão de queijo; Brevidade; Pudim de queijo; Queca; Doce de leite; Goiabada; Doce de abóbora; Curau de milho verde; Ambrosia; Ovos queimados; Quentão e Caipirinha
mineira.
Também a iniciativa privada se juntou a este mesmo esforço. A Construtora Andrade Gutierrez, por exemplo, lançou um vídeo institucional, denominado Inconfidências Culinárias, no qual apresentava a “tradicional comida mineira como parte da identidade e das
raízes mais caras de Minas Gerais”.
No que chamou de “conversa de compadres26”, o vídeo com duração de quase 90 minutos, ensina o preparo de vários pratos típicos. A mensagem de apresentação, impressa na contracapa, conclui que:
“Hoje em dia, apesar da pressa do mundo moderno, é preciso resgatar esta saudável reunião de pessoas em torno de uma mesa. Desta forma, tornamos a vida mais prazerosa e as pessoas mais próximas e unidas.”
A produção de uma peça promocional versando sobre a cozinha mineira por uma empresa do porte da Construtora Andrade Gutierrez e sua distribuição como brinde para um público seleto, mais do que a simples divulgação dos hábitos alimentares característicos da população de Minas Gerais, certamente teve outros objetivos.
Entre eles, certamente, estava o de elevar os pratos simples da cozinha mineira à condição de gastronomia original, considerando tanto o status econômico da empresa que oferecia o brinde quanto a condição – e a posição – social e econômica de quem o recebeu.
Nesta mesma linha, podemos abstrair que, por ser a Andrade Gutierrez uma empresa mineira, o resgate e divulgação dos fazeres e dos hábitos alimentares que expressam parte representativa da história e da cultura de Minas significaram, sob uma ótica determinada, o resgate e divulgação da identidade cultural da
própria companhia e de muitos de seus empregados, inclusive daqueles que, mineiros, trabalhavam lotados em outros Estados e até em outros países. Afinal, como explica ABDALA (1997:170), “A cozinha foi investida da responsabilidade de resgatar uma identidade da gente de Minas. (...) é um elemento agregador, mesmo dos mineiros que, desbravadores, herdeiros do bandeirismo povoador, se aventuraram em outras terras e vivem hoje fora de Minas. A cozinha materna, assim como a língua, permanece como referência viva até na memória daqueles que migram, constituindo elemento importante na pauta da
identidade.”

26 Paráfrase positivada da expressão “conversa de comadres”. A masculinização do termo deve-se
ao fato de que as receitas são apresentadas por chefs, assim como o brinde, sendo institucional, foi
distribuído para clientes da construtora, que são majoritariamente do sexo masculino.


Entretanto, a interrupção, a partir de 1987, do apoio governamental ao projeto de valorização e divulgação da cozinha mineira como pilar fundamental da caracterização de uma mineiridade (ABDALA:1997,170) pôs fim a uma iniciativa que visava resultados profundos e duradouros, a serem obtidos por meio da
implementação de políticas culturais e ações estratégicas e operacionais consistentes.
Mesmo a criação do Instituto Estrada Real, em tempos mais recentes, não conseguiu suficientemente reverter esta situação, pois, ao que nos parece, as ações da Instituição, desde sua implantação até os dias atuais, se direcionam basicamente para duas frentes:
► a estruturação interna do turismo e, simultaneamente,
► a divulgação externa dos atrativos turísticos de Minas Gerais.
Numa perspectiva geral, a comida é “vendida” como um subproduto a ser consumido in loco, durante a visita turística. Um artigo complementar à paisagem, à história, à “cultura”. Não identificada como produto cultural nem reconhecida como um produto turístico em si - mas considerada como apêndice de outros
atrativos turísticos julgados mais importantes - a comida regional não é valorizada como potencial instrumento de divulgação nem de incentivo a deslocamentos para destinos turísticos mineiros. Em consequência, os restaurantes típicos não são vislumbrados como possíveis canais, parceiros e aliados estratégicos na busca de se atingir esses objetivos.

Considerações finais
Minas, tantas há por aqui, subterrâneas ou à flor da pele, que bem achado foi apelidá-las Gerais: Minas Gerais, quase meio triste em seu muito silêncio, ..., quase alegre de ipês no seu agosto amarelo [...] Que boa fatalidade ser herdeiro de Minas, ter por riqueza seus bois, poeira, cerrados, oratórios, rezas, violas, seu luto aliviado de quaresmeiras, tudo o que é lamentoso e triste e gasta tempo para se fazer, doces, namoros, olhares, promessa de festa no corpo e eternidade na alma, montanhas, luares, amanheceres sobre picos com muita e densa neblina, frios. Estou inventando Minas? Certamente, mas tudo é mesmo inventado. E isto é Minas também.
Adélia Prado

1. Restaurantes típicos:
Armazéns da cultura e entrepostos do turismo
Mesmo que não seja esta sua função principal, os restaurantes de cozinha mineira, por sua característica regional, prestam importante serviço à valorização e divulgação de um aspecto peculiar da cultura de Minas: a comida típica.
Para se dimensionar o valor desta contribuição, basta considerar que hoje vivemos um tempo marcado pela padronização e pela imediaticidade, quando o grande sonho do homem atual é antecipar o futuro e viver agora o que só irá acontecer amanhã. Por isso, neste tempo em que o passado parece não ter vez, oferecer como produto uma comida que é a síntese de 300 anos de história pode parecer anacronismo. Mas o sentido simbólico e a força identitária (ABDALA:1997) dos pratos oferecidos no cardápio típico mineiro têm capacidade de inverter esta lógica e transformar estes restaurantes em locais singulares, pontos de encontro gastronômico e cultural, com representações históricas, antropológicas, sociológicas e psicológicas do povo de Minas.
O simples fato de trabalharem com “produto” que é repleto de significados e simbolismos confere aos restaurantes de cozinha mineira a condição de espaços culturais. Entretanto, de modo geral, esta condição é pouco percebida pelos proprietários, pelos clientes e - no caso de nosso interesse - por setores ligados à promoção do turismo em Minas Gerais.
Sempre que for identificada e valorizada sua característica cultural, muitos restaurantes de comida mineira poderão oferecer muito mais do que um cardápio composto por tutus, lombos, couves, linguiças, torresmos, frangos27, quiabos e angus. Poderão se tornar grandes vitrines e até armazéns da cultura mineira, colocando também à disposição dos clientes outros produtos culturais, como música, literatura, artesanato etc... O restaurante Feitiço Mineiro, observado durante a realização deste estudo, na sua proposta de acolher o lançamento de livros e ser espaço para apresentações musicais, de certo modo é exemplo de entreposto da cultura de Minas em Brasília.
Sendo o negócio de um restaurante típico mineiro servir comercialmente pratos característicos da culinária de Minas, é natural que a potencialização de suas outras características culturais - entre elas o papel de vitrine, armazém e entreposto – precise ser incentivada, estimulada e facilitada por setores diretamente envolvidos e que se beneficiam com a promoção e o desenvolvimento do turismo no Estado. No nosso entendimento, estes setores incluem o poder público, nas esferas estadual e municipal, e a iniciativa privada dos locais turísticos.
Daí a importância de que a atuação destes setores seja articulada, estruturada por um planejamento estratégico, no qual a visão quanto aos meios possíveis de divulgação turística seja ampliada, avançando da publicidade e propaganda para outras formas de despertar o interesse e o desejo para os bens turísticos de Minas Gerais. Neste sentido, a difusão cultural do patrimônio material, imaterial e
paisagístico do Estado, por meio da transmissão de conhecimento e da informação, será tão mais eficaz quanto mais sair da previsibilidade e avançar para o uso de recursos não-convencionais.

27 Conforme dissemos anteriormente, o frango ou a galinha ao molho pardo são cada vez mais
raros, por razões urbanas, econômicas, industriais e operacionais.


Os restaurantes típicos podem ser aliados e parceiros importantes do turismo neste sentido, pois desde a decoração e ambientação até o cardápio (impresso e alimentar), passando pelo relacionamento com o público-cliente, tudo pode ser canal de informação e comunicação se utilizado criativamente, com objetivos
turísticos. A opção pelo uso, nos salões dos restaurantes, de fotografias, trilha sonora, louças, toalhas28 e outros utensílios que remetam à Minas - mãe e matriz - é eficaz alternativa para isso, assim como expor e/ou comercializar produtos alimentícios e artigos culturais, como livros, artesanatos, CDs, DVDs, gravuras e outros. Incluir no “cardápio” uma programação cultural que contemple apresentações musicais e
literárias de temática mineira também converge na mesma direção.
É comum os restaurantes típicos utilizarem a Internet como instrumento de divulgação, criando sites próprios onde expõem, por meio de fotos e textos, sua história, cardápio, depoimentos de frequentadores, poemas e até anedotas. Pelo alcance do meio eletrônico, é um canal a ser percebido e utilizado nos objetivos propostos, divulgando aspectos peculiares da cozinha mineira, da história que ela
sintetiza e de outros traços culturais a ela relacionados.
Para que propostas desta natureza se tornem realidade, basta que os setores envolvidos, citados anteriormente, estabeleçam um relacionamento de aliança e parceria com os restaurantes típicos, sobretudo oferecendo e disponibilizando para eles materiais diversos, mas principalmente informações históricas e pitorescas já organizadas e formatadas que possam ser usadas nos cardápios, sites e em
outros meios. Como exemplo, temos o cardápio do restaurante Feitiço Mineiro, que é ilustrado
com reprodução de detalhes da obra do pintor setecentista Manuel da Costa Ataíde (Mestre Ataíde), autor da pintura do teto da nave de diversas igrejas de Ouro Preto e Mariana. O cardápio traz, também, em destaques, versos de poetas como Carlos Drummond de Andrade e um manuscrito de Fernando Brant, autor da letra de muitas músicas de Milton Nascimento, dedicado ao proprietário Jorge Ferreira.

28 Segundo relato de viajantes como SAINT-HILAIRE, POHL, BURTON, WELL e LUCCOCK, que
passaram por Minas no começo do século XIX, mesmo nas casas simples, a mesa mineira
montada em situações especiais ostentava acessórios luxuosos, como toalhas adamascadas,
talheres de prata e louças de porcelana. Esta tradição teve origem nas vilas coloniais, como
instrumento para revelar diferenciação social e tornar notório o status do proprietário, antecipando
implicitamente resposta para a pergunta: você sabe com quem está falando?


2. Comida típica & turismo: falta comunicação no cardápio
Mais do que um hábito alimentar, a comida típica é um código narrativo e registro da história. No recorte desta pesquisa, percebe-se que a hoje considerada cozinha típica mineira é um texto gastronômico, codificado em alimentos, preparados e servidos de modo particular. Nele, os ingredientes, transformados em comida, ganham novo sentido e, ao mesmo tempo em que são representações, são mensagens que contam a história de Minas, desde o raiar do século XVIIl – quando a mineração deu origem às primeiras vilas coloniais - até o começo do século XX, quando a capital foi transferida para Belo Horizonte, o que é assim explicado por ABDALA (1997:176).
“No caso de Minas, as condições históricas propiciaram longa permanência dos hábitos alimentares, numa tradição que combina elementos do século do ouro, quando as dificuldades de abastecimento que atingiam senhores, escravos e homens livres nem sempre propiciavam um cardápio diferenciado – às
épocas posteriores, quando surgiu grande variedade de quitandas.
A manutenção de um vínculo com o passado assume importância na construção de uma identidade, tanto mais se os elementos que compõem o mito que a torna viva têm origem nesse mesmo passado, lembrado como glorioso.”
Sendo simultaneamente representação e mensagem, percebemos que, além de expressar 300 anos de história, a comida típica mineira, em processo semelhante ao da Comunicação, atua em dois sentidos: de dentro para fora e de dentro para dentro, para o centro, para o fundo.
No primeiro caso, projeta e expõe para quem não é de Minas as crenças, costumes, valores, tradições, enfim a psicologia e a sociologia (ÁVILA:1983) do povo mineiro. No segundo, introjeta no próprio mineiro a sua cultura, tanto transmitindo-a para novas gerações quanto alimentando-a, reavivando lembranças,
preservando e fortalecendo identidades.
Nas várias definições e propostas do turismo, uma das mais importantes é a que atribui à atividade turística – além da função de lazer e entretenimento – o papel de ser fonte de informação e conhecimento. Partindo deste pressuposto, e tendo em vista o que a cozinha típica mineira possibilita aos mineiros ausentes resgatar, e aos freqüentadores não-mineiros vivenciar, acredita-se que os restaurantes típicos
podem ser também embaixadores da cultura e do turismo de Minas Gerais.
Para isso, é importante que os setores envolvidos e responsáveis pelo desenvolvimento do turismo no Estado percebam que estes empreendimentos, mais do que espaços gastronômicos, podem ser porta-vozes da cultura de Minas, difundindo, não só pela comida mas também por outros recursos, o que
particulariza Minas Gerais no conjunto dos estados brasileiros. Mas mais do que isso e antes disso, é necessário que os mesmos setores reconheçam a comida mineira como um produto cultural e um discurso que, se traz à lembrança fatos de um passado distante, pode ser também uma mensagem informativa e um convite para que se visite e se desfrute Minas.
Os restaurantes típicos materializam29 e oferecem um produto que, para os mineiros, é sagrado: a comida. Não só a comida em si - na forma de alimento resultante do processamento e organização de um conjunto de ingredientes - mas o que ela representa e simboliza como processo de evolução histórica e cultural e,
mais do que isto, o que ela diz e transmite.
Na lógica religiosa da sacralidade, vemos no ato de transformar alimento em comida (cozinhar) correlação direta com o momento da consagração quando, na missa, o pão é convertido no corpo
de Cristo que, em sequência, nas velhas igrejas mineiras era “servido” na mesa da comunhão.
A mesa típica mineira, na sua diversidade de cores, texturas, perfumes, consistências e sabores, é a harmonização e expressão de registros, lembranças, sentimentos, emoções, vivências, expectativas. Mais do que recordação do passado, é confirmação do presente e pretende ser a certeza de um futuro. Um
futuro que, de tão longínquo e tão perpétuo, em alguma temporalidade se unirá ao passado, fechando o círculo para impulsionar um movimento contínuo, garantidor da perenidade que é o ideal pretensioso do homem de Minas, autodenunciado e definido por Carlos DRUMMOND (1980:210) no verso:
“E como ficou chato ser moderno. Agora serei eterno. (...)
Eterno, é o menino recém-nascido antes que lhe dêem nome
e lhe comuniquem o sentido do efêmero.”

No processo de reatar vínculos e criar novos elos por meio da comida, os restaurantes típicos mineiros têm papel fundamental. São eles o espaço onde os mineiros ausentes buscam alimentar seu cordão umbilical, reaproximar-se da terramãe ao identificar, pela fraternidade cultural, o irmão desconhecido.
São também eles o espaço onde não-mineiros vão, atraídos pelo sabor, em busca de uma história desconhecida, mas com a qual podem vir a se identificar porque ela traz em si a ideologia igualitária e conciliatória, que a comida típica mineira, na sua harmonia de sabores, simboliza e que o povo de Minas deseja ser porta-voz e materialização.

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Centro de Excelência em Turismo
Pós-Graduação Lato Sensu
Curso de Formação de Professores em Turismo

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Texto publicado no 3º Congresso Brasileiro de Gastronomia:

NEM SÓ DE PÃO [DE QUEIJO] VIVE O HOMEM
Comida típica, identidade e territorialidade de Minas Gerais*
Antônio Emílio da Costa

Palavras chave: comida típica, territorialidade, patrimônio cultural, Minas Gerais.

Introdução
Culinária, cozinha e comida estão entre os mais importantes elementos culturais de um povo. O preparo que transforma alimentos em refeição, assim como o modo e a ocasião em que os pratos são servidos e consumidos permitem conhecer aspectos da vida daquela população, entre elas: componentes geográficos, origem histórica, realidade econômica, organização social e tradições culturais. Assim, cozinha, culinária e comida transmitem códigos, crenças, referências e valores; preservam costumes e ritos e, ainda, fortalecem elos com a matriz histórico-cultural. Por tudo isso, constituem elemento de identidade e territorialidade, estabelecendo, consolidando e nutrindo vínculos entre os membros da comunidade que a originou e preserva. E também distinguindo-os, entre os membros de outras comunidades.

Objetivos
O principal objetivo deste trabalho foi, a partir de pesquisa do perfil psicocultural do mineiro e dos aspectos históricos da cozinha de Minas Gerais, avaliar o grau de importância e reconhecimento que o povo daquele estado atribui à sua comida típica como patrimônio cultural. Do mesmo modo, analisar o significado dos restaurantes típicos para os mineiros que vivem fora de Minas.

Metodologia
A metodologia empregada utilizou os seguintes instrumentos: pesquisa bibliográfica, observação participante e entrevistas com mineiros residentes na capital brasileira.

A pesquisa bibliográfica contemplou a leitura de obras historiográficas, como a primeiro relato sobre a problemática da escassez alimentar em Minas Gerais no início do século XVIII, escrito por Antonil ao visitar a região, em 1703, e relatos de viajantes ingleses que, no século XIX, registraram em suas anotações não só os hábitos alimentares, mas também aspectos socioculturais das populações de várias cidades mineiras. Incluiu também a análise de obras contemporâneas que versam sobre cultura, história e alimentação, em especial a produção literária de Adélia Prado, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e outros escritores que mencionam a comida e sua ambiência como elementos constituintes do espírito mineiro.

A observação participante ocorreu estrategicamente em dois territórios distintos: em Minas e fora de Minas. Em Minas, envolveu contato com pessoas idosas, visita a restaurantes e diálogo com interlocutores em São João Del-Rei; análise de placas publicitárias em restaurantes, bares, lanchonetes e estradas da região e análise da iconografia alusiva a alimentos e ao ato alimentar nas igrejas barrocas são-joanenses.

Fora de Minas, ocorreu no Restaurante Feitiço Mineiro – um dos maiores e mais tradicionais restaurantes típicos mineiros na capital do país, que também oferece “cardápio cultural”. De Minas, mas vivendo fora de Minas foram os entrevistados, um deles, inclusive, chefe de cozinha do restaurante observado.

Discussão e análise
Em geral, no imaginário brasileiro, Minas é percebida como Estado marcado pela abstração e pelo humanismo (LIMA, 1983), o que faz com que o mineiro, em conseqüência, seja visto como altruísta, discreto, culto e agregador. Para Caetano Veloso, é “lugar onde o mistério do oculto se escondeu”. Guimarães Rosa declarou que, “para compreender Minas são necessárias artes de advinho e, assumido o mistério, não há possibilidade de deciframento”. Assim, conceituamos o mineiro típico como uma representação simbólica, difundida pelos próprios “nativos” para demonstrar equilíbrio, harmonia e unidade na diversidade, reforçando o ideário de conciliação, temperança e consenso - características estão presentes na comida típica mineira.

Na casa mineira, a comida é sagrada e o ato da refeição é quase devocional. A refeição cotidiana, de composição muito simples, só é partilhada com os íntimos, visto que a comida revela particularidades de quem a come (WOORTMANN, K. 2006). Como a religiosidade ensina que desperdiçar é pecado, os pratos são preparados com rigorosa higiene e demorado cozimento, sobretudo para evitar deterioração, e até as sobras são aproveitadas, no tradicional mexido. São lembranças inconscientes da escassez de alimentos, que outrora castigou as regiões mineradoras, e também voto de humildade, simplicidade e despojamento.

Em Minas, a relação do mineiro com a refeição no ambiente doméstico norteia o modo como ele se relaciona com os restaurantes locais, na refeição fora do lar, mostrando claro antagonismo entre ‘a casa e a rua’ (DA MATTA, 1991), onde simbolicamente a comida é:
 

Em casa Na rua
 
Íntima, particular e sagrada Pública coletiva e profana
Obtida com o suor do rosto  Comprada com o dinheiro do bolso
 
É comunhão Tem culpa de infidelidade, gosto de prevaricação


Esta lógica considera que a rua é o próprio mundo, regido por incertezas, pelo acaso e por fatalidades; território de enganos, desilusões, luta, trabalho e malandragem, contrário ao universo da casa, onde predominam a ordem estabelecida, o controle, o afeto e o descanso.

Fora do estado natal, os mineiros se relacionam de modo diferente com os restaurantes típicos. Carecendo de manter vínculos com a origem, os restaurantes que em sua cidade seriam considerados externos à casa são ressignificados na geografia da memória como espaços de identidade e temporalidade. Neste sentido, não se busca mais o rigor da cozinha fiel à tradição, mas se contenta com a culinária típica, pelo que a representação da comida tradicional significa para o mineiro ausente de sua terra ou de um tempo especial de sua vida.
Esta percepção converge para o entendimento de que os restaurantes desempenham função restauradora (BOLAFFI, 2006) e, no caso dos restaurantes típicos, para os mineiros ausentes de Minas, além de satisfazerem as necessidades nutricionais, cumprem finalidade restauradora nos aspectos identitários e culturais. O diagrama abaixo esquematiza como se dá, a partir da cozinha, a transformação do alimento nutricional em comida, que é elemento cultural.



Conclusões
A dualidade, que é base da cultura de Minas, está presente também na cozinha mineira. Por um lado, a lógica da escassez (ABDALA, 1997) que - oriunda da memória ancestral da fome enfrentada no início do século XVIII – sacralizou a comida, levando à utilização alimentar de plantas nativas, à valorização máxima de reaproveitamentos e à repulsa a desperdícios. Por outro, a lógica da abundância, presente na quantidade excessiva de pratos nas mesas dos almoços dominicais e de celebrações festivas, para mostrar tanto o contentamento quanto as posses do anfitrião, numa sociedade que originalmente foi castigada pela dificuldade de abastecimento (IDEM). Vivendo em outras terras, o mineiro tradicional, sentindo-se deserdado de sua pátria (ROSA, in ARRUDA, 1990) e de si próprio (PRADO, 1991), busca amenizar tal ausência freqüentando restaurantes típicos, para resgatar e fortalecer sua identidade e situar-se em território nativista e existencial imaginário (IDEM).

O forte sentimento de perda induz o mineiro a flexibilizar os conceitos e a delimitação dos espaços da casa e da rua, ampliando os limites da primeira em relação à segunda. Nesta perspectiva, os restaurantes típicos, que na cidade natal são considerados rua, tornam-se casa - não no sentido doméstico ou domiciliar, mas como embaixada de Minas, templo de lembranças, encontros e re-vivências. Por outro lado, o cardápio tipificado como mineiro com fins comerciais ou turísticos, sobretudo nas grandes cidades, não faz parte do dia a dia das pessoas, mas tem forte caráter rememorativo ou comemorativo (CASCUDO, 2007), o que faz com que, pelos mineiros, seja preferido em dias festivos ou ocasiões especiais.

O sabor tem grande força persuasiva . Por evocar lembranças ou aguçar curiosidade pelo desconhecido, freqüentar restaurantes típicos é programa muito apreciado, quando o desejo é aliar à alimentação fatores que sugerem alteração de rotina, como a ilusão de viagens e de estar em um lugar diferente daquele que de fato se está. A comida regional tem capacidade de cumprir essa função, simulando outras realidades e outras temporalidades: pela comida é possível viajar no tempo e no espaço. Além disso, a comida tem importância simbólica extremamente ampliada frente à destruição de laços tradicionais, que é própria do tempo atual (ABDALA: 1997), o que explica o sucesso da cozinha típica mineira como caminho para o resgate e para o reencontro identitário (WOORTMANN, E. 2006), como importante elemento de resistência cultural.

Referências Bibliográficas
ABDALA, M.C. Da casa ao restaurante: representações sobre o comer fora em Minas Gerais, in ARAUJO, W. e TENSER, C. (org.) Gastronomia: Cortes e Recortes v.1. Brasília: Editora Senac DF, 2006.
______________ Receita de Mineiridade. A cozinha e a construção da imagem do mineiro. Uberlândia: Editora da Universidade Federal de Uberlândia, 1997.
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WOORTMANN, K. O sentido simbólico das práticas alimentares, in ARAUJO, W. e TENSER, C. (org.) Gastronomia: Cortes e Recortes v.1. Brasília: Editora Senac DF, 2006.

Arquivo

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