a cidade com que sonhamos é a cidade que podemos construir

la ciudad que soñamos es la ciudad que podemos construir

the city we dream of is the one we can build ourselves

la cittá che sognamo é la cittá che possiamo costruire

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Escopo: São João del-Rei | Tiradentes | Ouro Preto | Minas Gerais | Brasil | Mundo

 

Espírito barroco sobrevive na Procissão do Enterro e a perpetua . Edson Paz

Descrição

Desaparecida em outras cidades históricas, por quê e como São João del-Rei preserva sua mais portentosa festividade religiosa nos moldes como foi concebida, há mais de 200 anos?

Início da noite de sexta-feira, 25 de março, lua cheia. Antigos guardas romanos de sandália e capacete, lança e escudo em punho, capitaneados por centurião de porte alto e forte, postura severa e barba, partem das proximidades da Matriz do Pilar rumo ao Largo das Mercês. Atravessam a multidão e galgam as escadarias do templo de Nossa Senhora das Mercês, acercando-se de Abraão, Jacó, São Pedro, Salomé, João Batista, Maria Madalena, José de Arimatéia, Nicodemos, Verônica, “virgens” de túnica branca e coroa de flores, “anjos”. Têm seus olhares voltados, bem como os da multidão que toma o Largo, para a expressão – iluminada por holofotes – de dor e espanto, mãos espalmadas e sete espadas de prata fincadas no peito de Nossa Senhora das Dores, e os corpos ensangüentados e rostos de torturados dos crucificados Dimas, Gestas e Cristo. Sob cores, luz e sombra, irrompem 60 vozes em canto: “Spiritus cordi nostri Christus / Dóminus morte turpessima / condemnatus”, e sobrevém o Sermão do Descendimento.

Hora e meia depois, eis o momento mais esperado da Semana Santa. O corpo de Cristo é lentamente despregado, descido e colocado no esquife por José de Arimatéia e Nicodemos, representados por dois sacerdotes. As palavras do pregador, em meio ao silêncio da multidão, mencionam cada etapa do descendimento, com uma narração teatral. Três mulheres de longos vestidos pretos, luvas e véus cobrindo o rosto – as “Três Marias” – cantam: “Heu! Domine, Salvator noster!” (Ai! Senhor, nosso Salvador!). Verônica ergue o sudário com a efígie do rosto de Cristo, entoando tristemente em latim: “Órfãos, fomos privados de nosso pai, e nossas mães são como viúvas”. A banda inicia a Marcha da Paixão, e a morte, razão da procissão, sai a andar lentamente pelas ruas apinhadas de gente, ao som rouco e áspero das matracas e o cheiro místico de incenso.

Os soldados romanos batem suas lanças de tempo em tempo no chão, representando o poder da época. Meninos “coroinhas” de terno e gravata borboleta levam objetos simbólicos da tortura sofrida por Cristo. Salomé carrega a cabeça de João Batista, mulheres de luto cantam chorosamente atrás do esquife. Trajes de gala e vara de prata próximo ao Pálio do Bispo, lanterna de prata ou opas de diferentes cores expõem e confirmam a estrutura das relações e posições sociais dos participantes.

Ao longo das calçadas, profundo respeito. O cortejo estaciona em frente às igrejas do Rosário (construída em 1719), São Francisco (1749), Carmo (1734), Pilar (1751) e próximo à antiga Casa de Câmara e Cadeia, momentos em que a Verônica, exibindo o sudário, canta. Conduzido em um esquife levado como um andor pelos irmãos da Irmandade do Santíssimo, o corpo de Cristo aproxima-se da Matriz, quando somente alguns membros de Irmandades, clero e o coro entram na igreja.

Mais do que devoção religiosa

O que revela esse portentoso espetáculo dramático, reproduzido há mais de dois séculos no Largo das Mercês, situado ao pé das primeiras minas de ouro são-joanenses? Qual seu sentido? A socióloga Suely Aparecida Campos Franco, com mestrado sobre a Procissão do Enterro em São João del-Rei e técnica-pesquisadora no Departamento de Ciências Sociais e Políticas da UFSJ, diz que é muito mais do que uma devoção religiosa. “É uma representação coletiva da morte que guarda traços culturais do tempo do ouro, onde imperava o gosto pela festa, pompa e pelo espetacular. Neste ritual vindo de Portugal, que ganhou feição local na época da mineração, está também representada a estrutura social e política colonial, e valores sociais que reforçam e reproduzem a ordem social”.

Citando historiadores, Suely diz que “a religiosidade mineira dos anos 1700 se expressava pelo culto aos santos e pelos atos externos, como procissões e ritualismos [apego excessivo a cerimônias, sem suficiente atenção ao significado que veiculam]. O catolicismo herdado dos colonizadores portugueses era menos uma convicção do que uma conveniência, era ‘menos atento ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e a pompa exterior’, uma espécie de ‘religiosidade epidérmica’. Através da exibição de requinte e do fausto, tão ao gosto da época e oportuno diante da opulência da capitania das Minas Gerais, o ritualismo festivo exercia um poder mágico sobre a população e servia ‘como instrumento encantatório persuasivo’. Constituía-se num ‘misto ostentoso de ritual católico, comprazimento intelectual e divertimento coletivo’”.

Com quatro igrejas de vulto construídas somente no seu primeiro cinqüentenário, “a absorção do catolicismo – religião das classes dirigentes e do Estado – levou toda a população são-joanense a ter nas cerimônias do culto sua ocupação predileta”, diz Suely. “As festas religiosas passaram a representar o foco cultural da sociedade, tanto que as irmandades contavam com músicos que executavam missas, novenas, matinas, motetos e outras peças compostas especialmente para as festas religiosas. Todas as músicas executadas na Semana Santa são-joanense são de compositores locais da época, e executadas por uma das duas orquestras bicentenárias – Ribeiro Bastos – criada em 1755 para os serviços musicais".

Além de foco cultural, Suely aponta que as festas “também passaram a ser um instrumento transformador de valores individuais em sociais, e as irmandades, sempre cumprindo a função de mantenedoras ativas das promoções das festas e rituais religiosos, expressam uma religiosidade popular, reforçam a hegemonia social da igreja católica, o poder político de seus organizadores e a explosão do espírito lúdico oriundo da sociedade mineradora”.

 Lanternas e fantasias, extremidades opostas da pirâmide social

Por que políticos, autoridades, pessoas de destaque no meio social são-joanense ostentam lanternas? Suely sorri. “A atuação dos sujeitos, a relação entre eles dentro da Procissão demonstra a estrutura das relações sociais. Aqueles que promovem a festa, que a organizam, assumem posições de controle ou de destaque, semelhantes à que ocupam na hierarquia social. Assim, os membros da mesa administrativa da Irmandade do Santíssimo posicionam-se com trajes de gala e levam varas de prata, próximos ao pálio [sobrecéu portátil, com varas] do bispo, lugar de maior destaque na procissão, porque ali localiza-se a máxima autoridade da igreja na cidade. Às Ordens Terceiras, pela importância na hierarquia das associações religiosas, por serem formadas no período colonial e até cerca de 1930 por pessoas ricas ou de destaque social, são concedidas uma lanterna de prata ricamente trabalhada e bastante diferenciada das outras. As posições de destaque são ocupadas pelas autoridades”.

Suely sublinha o fato de que “ainda hoje as procissões significam local de afirmação social e demonstração de ‘status’ para a população, e as posições no ritual religioso podem servir para legitimar instituições, status e relações de autoridades. A distribuição das lanternas define e mantém a hierarquia e a posição social. Grande parte da vida social de São João del-Rei gira em torno das festas da igreja católica, que criam uma zona de convivência, cujo sentido ultrapassa as normas religiosas”. Suely, ao realizar a pesquisa para a dissertação, em 1995, diz que notou “a explícita diferença entre aqueles que carregam lanternas ao longo dos andores e aqueles que vestem as fantasias dos personagens do antigo e do novo testamento. Ocupam as extremidades da pirâmide social”.

Identidade cultural

Suely sublinha que “o espaço de destaque e a riqueza e o aparato da Procissão do Enterro ainda nos dias de hoje retratam a aceitação e manutenção pela sociedade são-joanense contemporânea de costumes culturais trazidos pelo colonizador português. O significado da manutenção das festividades religiosas na forma como foram concebidas há dois séculos, refletindo o modelo baseado no período colonial, é bem maior que o simples ‘apego a tradição’ e ‘orgulho em conservar as relíquias do passado’, como garantem os moradores de São João del-Rei e membros das irmandades. A eficácia e os significados que justificam as realizações da festa atribuem a esta sociedade sua identidade cultural e estão simbolizados no rito, isto é, nas regras e cerimônias da Procissão”.

Fonte: Jornal Cultura Local . Editora Ponte da Cadeia
www.editorapontedacadeia.com.br

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