São João del Rei Transparente

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Tipo: Artigos / Cartilhas / Livros / Teses e Monografias / Pesquisas / Personagens Urbanos / Diversos

Escopo: Local / Global

 

Consciência e preservação . Luiz Cruz

Descrição

“A riqueza do patrimônio histórico sob a responsabilidade da Igreja Católica cobra da instituição uma atitude mais firme em sua conservação”
Para se criar uma obra de arte é preciso concentração, inspiração, labor - um momento único. Provavelmente, esse seja o momento em que mais nos aproximamos de Deus. Com a arte, ou através dela, pode ser a melhor maneira para se chegar ao Pai. Talvez, por isso, o Vaticano seja um portento da arte: arquitetura, pintura, escultura, ourivesaria, jóia, mobiliário, tapeçaria, música, acústica. Uma infinidade de obras para tornar a Casa de Pedro num primor artístico. Seguindo este mesmo princípio, a Igreja Católica foi construindo templos e mais templos, por todos os cantos do planeta, sempre requisitando o melhor das artes.
Em Minas Gerais, não foi diferente, desde os primeiros tempos de ocupação das Minas e das Gerais a construção de um templo religioso era uma das primeiras providências. Seguia-se o costume português de se dar a denominação ao local descoberto o do santo do dia. Muitas vezes o mesmo santo tornava-se o orago principal. A primeira capela geralmente era uma construção muito simples e logo era substituída por outra. A segunda era cuidadosamente arquitetada. Com a riqueza gerada pelas jazidas de ouro, podia se contratar artistas experientes, vindos de Portugal; até que a colônia pudesse ter seus próprios artistas, o que veio ocorrer já na segunda metade do século XVIII. Teremos grandes artistas mineiros, como o mestre Aleijadinho, Manuel da Costa Athaíde, Manoel Victor de Jesus e outros.
Foi através da construção de templos que se conseguiu reter um pouco do ouro explorado no território mineiro. E, com o poder e a força da Igreja, construiu-se belas edificações por todas as vilas setecentistas. Assim, Minas tornou-se detentora do maior patrimônio histórico nacional.
Ao entrarmos no século XX, nosso estado praticamente deixa de produzir ouro. As cidades vão encontrando novas maneiras de sobreviver, cada uma buscando sua nova sustentabilidade. O valioso patrimônio constituído pelos monumentos religiosos passa a enfrentar sérios problemas, como: o abandono; as goteiras, que aos poucos vão lavando as pinturas e douramentos; os roubos de peças sacras; o pseudo espírito moderno - que achava que igreja velha precisava de reforma, ou de ser demolida, assim, levando ao desaparecimento de inúmeros templos importantes, como a igreja de Matozinhos, de São João Del Rei.
O IPHAN faz o que pode, mas sabemos que qualquer órgão público tem dificuldades. Para que o órgão responsável pelo patrimônio tenha bons resultados é necessária, também, a participação dos responsáveis diretos pelos monumentos religiosos e da própria comunidade. Nesse sentido, muito do que se perdeu é devido a falta de cultura - ou melhor, formação inadequada dos religiosos. Em muitos casos, os templos foram demolidos pelos próprios padres. Muitas peças sacras foram vendidas pelos próprios padres. Muitos monumentos foram dilapidados pelos próprios padres. Muitos arquivos paroquiais foram destruídos pelos próprios padres. E sobre arquivo, inacreditavelmente, ainda temos padres que não conseguem entender a importância dos documentos velhos e rendilhados pelas traças têm para a história do País. A desinformação está sempre colocando em risco de desaparecimento os arquivos paroquiais. Muitos documentos que estão nos arquivos paroquiais são registros de nascimentos ou de óbitos, estes documentos são públicos, porque, não havendo registro civil, a Igreja tinha a função de registrá-los. Por isso, eles contam a história local e, antes de mais nada, pertencem à comunidade. Nesse aspecto, não consigo me lembrar de um bom exemplo para citar.
Felizmente, temos algumas histórias mais positivas. Aqui em Tiradentes, no período mais acentuado da pobreza da cidade, 1920 a 1950, tivemos um padre com extraordinária visão. Padre José Bernardino foi a grande figura de nossa preservação. Com apenas os recursos obtidos através do tradicional Jubileu da Santíssima Trindade, o padre fez inúmeras obras, sempre tentando proteger o patrimônio histórico. Se hoje temos um dos maiores acervos de peças em prata do estado, devemos a ele. Padre Bernardino construiu uma caixa forte, um verdadeiro cofre, para guardar o acervo da paróquia. Ele reforçou todas as portas das igrejas com ferragens. Dificultou todas as possibilidades de roubo. Além disso, fez reformas, fez a manutenção das igrejas e capelas. A comunidade participava ativamente. Todas as celebrações religiosas ficavam repletas de participantes e havia muito respeito ao pároco, às celebrações, aos templos.
No período em que vivi e estudei em Ouro Preto, de 1977 a 1980, assistia às missas na Matriz de Nossa Senhora do Pilar, que tem como pároco, já há mais de três décadas, o padre Simões. O pároco sempre esteve comprometido com o patrimônio. O padre Simões dava verdadeiras aulas sobre a história do ciclo do ouro, sobre o barroco e o rococó, mostrava detalhes importantes da decoração da igreja. Utilizava nas liturgias peças diferentes do acervo. Usava os paramentos antigos e explicava aos fiéis o porquê aquela peça ser importante. Fios de ouro e fios de prata - explanava sobre a trama dos tecidos. Quando a Semana
Santa era organizada pela Paróquia do Pilar eu ficava mais empolgado, o padre tinha o cuidado de explicar até os trajes dos figurantes das procissões, um por um. As procissões saiam do Pilar em destino à Matriz de Antônio Dias - uma beleza, todas as ruas cuidadosamente enfeitadas, uma expressiva participação das meninas vestidas de anjos. Tudo enchia os olhos de plasticidade e a alma de fé. Sempre que se entra na Matriz do Pilar a igreja está limpíssima, preparada para receber fiéis ou turistas. Ainda me lembro do padre Simões falando no altar, que se a Matriz do Pilar tivesse o coro da Matriz de Santo Antônio de Tiradentes, ela seria a igreja mais bonita do Brasil. Com tudo isso, o padre Simões sempre levava conhecimento aos seus fiéis, contribuía para a construção da cultura de seus paroquianos. Uma comunidade só pode ter compromisso com aquilo que conhece e sabe ser importante.
Outro exemplo muito interessante é o da primorosa igreja de São Francisco de Assis de São João Del Rei. Esta igreja está sempre impecável. A Ordem Terceira de São Francisco faz a manutenção do templo. A missa aos domingos, com a Orquestra Ribeiro Bastos, é uma bela comunhão entre a música, artes plásticas e religião. Os jardins da igreja são cuidadosamente mantidos, sempre estão floridos. No cemitério, acontece o mesmo, o bom zelo está presente. Curiosamente, qualquer pessoa pode entrar para rezar ou visitar, sem ter que pagar nenhuma taxa de visitação. A Ordem Terceira é quem cuida de todos os detalhes.
Um outro esforço pela preservação do patrimônio histórico que merece ser citado, também, vem de Piranga, através do padre José Julião da Silva, da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição. Sua paróquia elaborou, com ajuda de profissionais habilitados, uma preciosa cartilha, com o intuito de sensibilizar a comunidade para a preservação do patrimônio cultural de Piranga. A cartilha traz a história do local, um esclarecimento sobre o que é patrimônio e porquê preservá-lo. Terminando, vem uma lista com vários itens de como poder ajudar na preservação do patrimônio cultural. A cartilha “Piranga - Nosso Patrimônio” é um documento que deveria ser reproduzido pelas infinitas paróquias de Minas.
Lamentavelmente, ainda temos a predominância de maus exemplos com relação ao patrimônio histórico. Um dos mais tristes da atualidade vem da primaz Mariana, que abandonou o Palácio dos Bispos, construção do século XVIII. O tempo e o descaso estão transformando o peculiar imóvel em escombros. Mas ainda há tempo para recuperá-lo, basta a comunidade querer. Malfadadamente, ainda temos párocos que acham que, se quebrou uma telha da igreja, o único responsável é o IPHAN. Todos os recursos obtidos através das atividades realizadas nas igrejas, até mesmo as taxas de visitação, servem para tudo, menos para a preservação dos monumentos. A longevidade de cada monumento histórico está centrada em sua manutenção no dia-a-dia. Se um monumento não tiver manutenção, quando for restaurado, exigirá uma enormidade de recursos. A restauração fica complicada. Falta mão de obra especializada. A restauração vira um transtorno, como o que vem ocorrendo com a Matriz de Santo Antonio de Tiradentes, obra que está consumindo mais de dois milhões de reais. Dificilmente esta obra estaria sendo executada, se não fosse a interveniência da iniciativa privada. O Governo Federal ainda não vê a cultura ou o patrimônio histórico como prioridade, infelizmente. A tudo isso, acrescente-se que, a cada grande obra de restauração, o monumento fica vulnerável a qualquer tipo de acidente, devido ao maior número de pessoas circulando na área, armazenamento de produtos diversos, etc.
Para que nenhum monumento chegue a tal situação de risco, é preciso responsabilidade e cultura. É preciso compreender a importância do monumento. É preciso o comprometimento dos seus responsáveis. É preciso que a comunidade participe. E, ao participar da preservação de um monumento, com certeza a cultura de qualquer cidadão será ampliada, será contextualizada. Neste sentido, é, então, interessante lembrar que a preservação de uma cidade, ou de um monumento, só é feita por e para uma comunidade.
Assim, como a maioria dos nossos monumentos históricos são as igrejas, seria importante que nossos padres despertassem para a preservação. Que utilizassem a influência e o poder da própria Igreja para ajudar no processo de conscientização da comunidade, para a preservação do patrimônio histórico e cultural de cada cidade.
Preservar vale a pena! Já temos vários exemplos irrefutáveis!

Luiz Cruz é professor, artista plástico e bombeiro voluntário em Tiradentes

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