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Justiça eleitoral e prevenção da improbidade administrativa . Rogério Medeiros Garcia de Lima

Descrição

Rogério Medeiros Garcia de Lima/Sobre o autor e outros artigos de sua autoria

Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Doutor, em Direito Administrativo pela UFMG. Professor de cursos de pós-graduação e de graduação em Direito do Centro Universitário Newton Paiva.

A proximidade de mais um pleito nacional, quando os brasileiros elegerão o Presidente da República, governadores e parlamentares federais e estaduais, estimula a reflexão sobre o papel a ser desempenhado pela Justiça Eleitoral.

Preponderantemente no exercício da jurisdição eleitoral, os magistrados devem estar atentos à observância dos princípios e regras constitucionais e da legislação infraconstitucional. Devem também considerar o clamor social por probidade na Administração Pública. Entre nós, esse tema não tem merecido a devida atenção.

No entanto, há quase cinco décadas Bilac Pinto estabelecia arguta correlação entre improbidade administrativa e eleições (1960:17):

“O dinheiro roubado ao povo, por via da corrupção passiva, é o instrumento de que se utilizam para se perpetuarem no poder, mediante a compra de votos e a manutenção das máquinas políticas”.

De modo semelhante, reflete hoje o renomado constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho:

“Enquanto modelo ideal, a democracia pressupõe que o povo escolha pelo voto os seus representantes, que irão governá-lo. Pretende que nessa escolha o eleitor não leve em conta senão as qualidades do candidato e seu programa de atuação. Reclama que o eleito aja em vista exclusivamente do interesse geral, doa o que doer, custe o que custar. E tanto povo, como governante, nada devem esperar em troca de sua participação, exceto a satisfação do dever cumprido. (...)

“Na vida cotidiana das democracias, entretanto, a corrupção se insinua, seja no processo de escolha dos governantes- o processo eleitoral; seja no processo de atuação dos mesmos - o processo governamental”. (...)

“Assim, há corrupção, seja quando se usa desse recurso para a obtenção do poder, seja quanto se utiliza do poder para lograr proveito financeiro. Num caso, o dinheiro- use-se o nome- é meio ilícito para fim lícito, no segundo é o objetivo ilícito de uma conduta. (...)

“No plano do processo eleitoral, há todo o rol das inelegibilidades. Na Constituição vigente, prevê o art. 14,§ 9º, o estabelecimento de ‘casos de inelegibilidade..., a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições, contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta’.

“A legislação eleitoral, por outro lado, limita as despesas eleitorais e procura assim impedir abusos”. (...)
“O processo eleitoral apaixona mesmo os governantes mais sérios. O insucesso eleitoral, seu ou de seus aliados, configura-lhes o fracasso, que é preciso evitar de qualquer modo, até pelo modo mais irregular. O administrador mesmo probo, em vista disso, escorrega não raro na improbidade para vencer a eleição: o fim elevado- o bem comum- não justificaria os meios?”. [1]

Nesse contexto, não basta que as leis estabeleçam sanções aos abusos na prática eleitoral. Assinalava, há décadas, Barbosa Lima Sobrinho (1956:91-92):

“O que se impõe, antes de tudo, é a formação de uma mentalidade propícia à execução de tais medidas, através da ação dos próprios partidos. O certo é que todos os processos e expedientes de corrupção são usados e não há nenhum esforço para apurar esses fatos na Justiça Eleitoral, ou para investigá-los através das Comissões Parlamentares de Inquérito”.

O saudoso político e jornalista não poupava aqueles que então pretendiam reformar a legislação eleitoral (1956:97-98):

“A impunidade é a atitude farisaica dos que se apresentam como reformadores e modelos de virtude, quando são os que mais chafurdam na lama dos crimes eleitorais, como se os crimes praticados contra a verdade e a liberdade dos pleitos pudessem figurar na categoria das virtudes republicanas. Por isso dizemos que o problema fundamental, nesses domínios, ainda é um problema de ética: o enquadramento dos costumes eleitorais, já não dizemos no plano geral da moralidade política, mas ao menos no campo do próprio Código Penal, para que o banditismo eleitoral não se converta em título de benemerência pública”.

Mediante eficiente e rigorosa atuação dos juízes e tribunais eleitorais, pode-se podar, pela raiz, o mal da corrupção:

“Aquele que transgride a lei para alcançar seus objetivos eleitorais está moralmente impedido de ocupar cargo público. A democracia não pode ser condescendente com quem se julga acima da lei, desprezando o jogo de iguais que deve caracterizar o processo eleitoral. Quem não respeita as regras do jogo, nos meios de chegar ao poder, certamente não observará, quando eleito, os princípios da moralidade e da impessoalidade aos quais está vinculado o administrador da coisa pública.

“Importantíssimo, então, é o papel da Justiça Eleitoral quando se trata de apurar os abusos e aplicar as penas de natureza política que a eles correspondem”. [2]

O Brasil é pátria do coronelismo, consistente na política baseada na aliança entre os chefes políticos locais e os governadores dos estados, e entre estes últimos e o Presidente da República” (CARVALHO, 1995:32). Explanava o clássico Victor Nunes Leal (1949:20):

“O ‘coronelismo’ é sobretudo um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras. Não é possível, pois, compreender o fenômeno sem referência à nossa estrutura agrária, que fornece a base de sustentação das manifestações de poder privado ainda tão visíveis no interior do Brasil.

“Paradoxalmente, entretanto, esses remanescentes de privatismo são alimentados pelo poder público, e isto se explica justamente em função do regime representativo, com sufrágio amplo, pois o governo não pode prescindir de eleitorado rural, cuja situação de dependência ainda é incontestável”.

Mudando os tempos, adveio o progresso tecnológico. Emissoras de rádio e televisão propiciam hoje a manipulação da opinião pública. Políticos tornam-se proprietários de impérios de comunicação, como, por exemplo, José Sarney, no Maranhão, e o falecido Antônio Carlos Magalhães, na Bahia. É o coronelismo eletrônico.

Quando era ministro das Comunicações no governo do então presidente Sarney, Magalhães incentivava a disseminação do coronelismo eletrônico, afirma João Carlos Teixeira Gomes (2001:412):

“A extensão dos malefícios causados ao Brasil pela política de concessão de rádios e TVs comandada, no governo Sarney, pelo ministro Antônio Carlos Magalhães ainda não foi avaliada em toda a sua magnitude, impondo-se um estudo sociológico a respeito. É um desafio para pesquisadores, num país quase sempre indiferente à reflexão sobre o seu processo de alienação social. Mais do que nunca, a partir de 84, os donos do poder criaram um perverso instrumento de dominação ideológica sobre a consciência de um povo politicamente dependente e fragilizado. Isso, além da ostensiva influência do dinheiro dos megaempresários, esvazia a representatividade das eleições brasileiras, transformando-as numa farsa, de conotação puramente formal”.

Em nosso país, assinalava Darcy Ribeiro (1995:69), as oligarquias se perpetuam no poder:

“Tudo, nos séculos, transformou-se incessantemente. Só ela, a classe dirigente, permaneceu igual a si mesma, exercendo sua interminável hegemonia. Senhorios velhos se sucedem em senhorios novos, super-homogêneos e solidários entre si, numa férrea união superarmada e a tudo predisposta para manter o povo gemendo e produzindo. Não o que querem e precisam, mas o que lhes mandam produzir, na forma que impõem, indiferentes a seu destino”.

Dom Pedro Casaldáliga, ex-bispo de São Félix do Araguaia-MT, também observou:

- Há 500 anos, atuam no Brasil as mesmas oligarquias. Os mesmos coronéis que brigam entre si antes das eleições, quando chega a hora, se unem para não perder o poder.[3]

Recentemente o jornal Folha de São Paulo lamentou a aliança do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com as forças do atraso:

“Em Alagoas, o presidente rasgou elogios a uma notória dupla de congressistas. ‘Quero aqui fazer justiça ao comportamento do senador Collor e do senador Renan, que têm dado uma sustentação muito grande aos trabalhos do governo no Senado.’ Dias antes, Lula fizera "justiça" ao ex-presidente José Sarney e expusera o PT a mais um vexame histórico.

“O presidente da República torna-se o fiador do que há de mais retrógrado na política brasileira. Abençoa de bom grado o compadrio -bem como sua matriz, o patrimonialismo- que displicentemente afirma combater. O uso de contratos, cargos e dinheiro públicos para beneficiar amigos e parentes é o roteiro monótono do interminável escândalo do Senado. Alguns de seus protagonistas gozam da proteção de Lula.

“Os modernistas inventaram a metáfora da antropofagia para designar a sua plataforma estética. Cabia devorar a tradição, como os caetés devoraram o bispo Sardinha, para dar à luz algo novo e vigoroso - no caso, uma cultura nacional. Na relação entre Lula e os velhos oligarcas, não se sabe ao certo quem é devorado e quem devora.

“Parecem todos desfrutar do mesmo banquete de privilégios e mandonismo. No século 21, o presidente Lula e seus compadres dão sobrevida ao Brasil decadente retratado por Graciliano Ramos -um mundo que já deveria estar sepultado”. [4]

Do coronelismo involuímos ao banditismo eleitoral.[5] Passam os séculos e nosso País não progride no campo da moralidade pública. Passam as gerações de políticos, mas a corrupção permanece vicejante. É desalentador. Em São Paulo, maior cidade do Brasil, 29% dos eleitores já disseram preferir votar em quem “rouba, mas faz”. [6]

Nessa involução cívica, infratores do Código Penal ascendem pelo voto popular aos cargos públicos. É o poder do banditismo: indivíduos ligados à criminalidade, possuidores de obscuras fontes de rendas, são eleitos para cargos executivos e legislativos. É fenômeno de extrema gravidade. Reportando-se ao Rio de Janeiro, o jornalista Gilberto Paim assinalava que “o voto de cabresto dos coronéis cedeu lugar ao voto fidelíssimo que o narcotráfico oferece”.[7] Pelo país, pululam políticos eleitos com o deliberado intuito de fazer fortuna mediante negociatas e de obter imunidade (ou “impunidade”?) parlamentar.[8]

Foi, ainda, instituída a possibilidade de reeleição dos Chefes do Executivo. A novidade institucional contrariou a tradição republicana brasileira, avessa à reeleição. A Emenda Constitucional nº 16, de 04 de junho de 1997, deu a seguinte redação ao §5º do artigo 14 da Constituição Federal de 1988:

“O Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal, os Prefeitos e quem os houver sucedido ou substituído no curso dos mandatos poderão ser reeleitos para um único período subseqüente”.

Com a notória agravante de que os Chefes do Executivo, candidatos à reeleição, sequer precisam se afastar dos cargos durante os seis meses anteriores ao pleito (§7º do artigo 14 da Constituição Federal).

Prado Kelly sustentava não ser da nossa tradição a reeleição dos Chefes do Executivo:

“Não preciso recordar que outro consectário de nossos costumes é a não reelegibilidade do Chefe da Nação.

“A esse propósito, não há dissidentes entre os constitucionalistas pátrios (ARAÚJO CASTRO, ‘A Nova Constituição Brasileira’, pág. 211).

“Ninguém melhor do que Barbalho situou o assunto no plano da moral pública: ‘De que poderosos meios não poderá lançar mão o presidente que pretende se fazer reeleger? Admitir presidente candidato é expor o eleitorado à pressão, corrupção e fraude na mais larga escala. Já de si a eleição presidencial engendra no país agitação não pequena e temerosa; e o que não se dará quando o candidato for o homem que dispõe da maior soma de poder e força, pela sua autoridade, pelos vastos recursos que pode pôr em ação para impor a sua reeleição?! E que perturbação na administração pública e que enorme prejuízo para o país no emprego dos elementos oficiais para esse fim? Não há incompatibilidade, pois, mais justificada (JOÃO BARBALHO, ‘Const. Fed. Bras.’ - Comentários, 2ª. Ed.)”. [9]

Indignava-se, então, o saudoso Barbosa Lima Sobrinho:

“Permitida a reeleição do presidente, não haverá mais argumento, nem autoridade, para evitar também a reeleição dos governadores e de todos os prefeitos. O argumento é o mesmo, para todos os casos. E se até agora havia prevalecido a não-reeleição dos governadores e dos prefeitos de todas as cidades é que se adotara, na Constituição de um regime federal, a proibição dessa reeleição para o presidente da República, nas quatro cartas magnas federais estabelecidas no Brasil em 1891, em 1934, em 1934 e em 1988.

“Ninguém tenha dúvidas a esse respeito. Não é só a reeleição dos governadores de estado e dos prefeitos. É, também, o ressurgimento das oligarquias, em todos os Estados, e até mesmo nas maiores cidades, que, nas pequenas, basta a própria oligarquia do Estado.

“Não há necessidade de nenhuma oferta, para anunciar essas conseqüências. Basta o senso comum e, sobretudo, o gosto pelo poder que, se conquistou o presidente da República não poupará nem os Estados, nem os maiores Municípios que, a essas horas, já devem inaugurar nas suas casas, ou na sede dos seus partidos, o retrato do Sr. Fernando Henrique Cardoso, para que o Brasil venha a se tornar o paraíso das oligarquias”.

O desembargador Gudesteu Bíber Sampaio, então presidente do Tribunal Regional Eleitoral de Minas Gerais, destacava a dificuldade em fiscalizar infrações decorrentes da desnecessidade de desincompatibilização do candidato à reeleição:

“O pior é que vai ser difícil diferenciar o que é palanque normal de administrador, que tem direito de fazer suas inaugurações, do que é palanque eleitoral”. [10]

Para o então deputado federal Luiz Gushiken (PT-SP),“quando o Estado se transforma em comitê eleitoral, fica difícil concorrer em igualdade de condições”. A imprensa noticiava almoço para dez prefeitos da Baixada Fluminense, quando era oficializado apoio ao candidato a governador do Rio de Janeiro, Luiz Paulo Correa da Rocha (PSDB), indicado pelo governador Marcelo Alencar. Ambos foram ao almoço em carros oficiais. E listava outros exemplos de práticas abusivas: a) o presidente Fernando Henrique Cardoso, depois de jantar, no Palácio da Alvorada, com empresários, inclusive da indústria automobilística, anunciou redução de 5% no IPI sobre automóveis (os empresários são doadores de recursos de campanha); b) em Pernambuco, foi incrementado programa de eletrificação rural; c) em Minas Gerais, foram nomeados 3.600 professores, após cinco anos sem nomeações; d) no Distrito Federal, foram reduzidas as tarifas de ônibus; e) na Bahia, foram restituídos valores das multas de trânsito aos infratores; f) no Paraná, foi reduzido o valor do pedágio nas rodovias estaduais; g) no Rio Grande do Sul, de modo inédito, foi antecipado o pagamento do13º salário dos servidores estaduais; e h) o ministro da saúde José Serra foi multado por utilizar aeronave da empresa estatal paulista CESP, a fim de participar de encontro do PSDB no interior do Estado de São Paulo. [11]

Abusam também os institutos de pesquisas eleitorais. Quando “erram” – e como “erram”! - usam a aleatória desculpa da “margem de erro”. Operam nefasta influência sobre as intenções de voto. Predispõem o eleitor a votar em “quem tem chances”.[12]

Os jornalistas Nirlando Beirão e Antônio Machado advertiam, no ano eleitoral de 2002:

“Há outra faceta nesta questão de pesquisas eleitorais, e que nada tem a ver com preferência partidária. Mercados se movem a cada ponto de percentagem a mais ou a menos na pontuação de Serra e de Lula. Quando mais o petista sobe, mais sobem os juros e os índices futuros, o dólar e a taxa de risco do país. O inverso ocorre com Serra. Cada mexida dessas significa milhões de reais de lucro - ou prejuízo. Bancos encomendam suas próprias pesquisas para antecipar tendências e faturar um troco. Aqui, novamente em nome da equanimidade das oportunidades, a divulgação desses exercícios de futurologia presidencial deveria obedecer a regras - por exemplo, só se tornarem conhecidas após o fechamento dos mercados, como fazem o Banco Central e qualquer empresa que tenha um fato relevante para anunciar. Nos mercados, como na política, há espaço para todo tipo de gente. Só não há lugar para otários”. [13]

O chamado marketing político é outra nefanda influência comprometedora da lisura dos pleitos. Para Fernando de Barros e Silva, trocamos Armando Falcão[14] pelo publicitário Duda Mendonça:

“É curioso ver como a política evaporou do horizonte. Não é possível reconhecer nas campanhas quaisquer diferenças ideológicas ou divergências programáticas entre os candidatos. (...)

“Os programas eleitorais se dirigem cada vez mais ao consumidor privado – e usam as técnicas habituais da publicidade para aliciá-lo. Na época em que a política se tornou um ramo do marketing e, além disso, tem um quê de diversionismo de massas, não faz mesmo muito sentido apelar à consciência do cidadão”. [15]

Os publicitários apregoam a “humanização” dos políticos. Humanizar é sinônimo de despolitizar e ocultar as diferenças entre Maluf e Lula: “Não é fácil. Collor foi o político brasileiro que usou o marketing com maior audácia e profundidade. Deu no que deu”. [16]

Ironiza Zuenir Ventura:

“Graças a esses seres iluminados, não estamos mais assistindo a uma corrida eleitoral, mas a uma disputa de campanhas publicitárias, em que o que interessa não é o produto nem sua qualidade, mas sua publicidade: o estilo, a embalagem, a mensagem – em suma, a forma não o conteúdo. O virtual em vez do real”. [17]

A “construção midiática” de candidatos é fenômeno global, como se apontava por ocasião das eleições parlamentares argentinas de 2009:

“À medida que o governo de Cristina Kirchner se enfraquece na Argentina, avança um setor da direita no país que explora a lógica dos meios de comunicação e o fim da política tradicional. Para o filósofo Ricardo Forster, o governo cometeu erros, mas perdeu as eleições legislativas na maior Província do país para um ‘personagem construído midiaticamente’ -o empresário Francisco De Narváez-, que compara aos ex-presidentes Fernando Collor de Mello e Alberto Fujimori (Peru)” (Folha de São Paulo, 05.07.2009, p. A-21).

Seguem infrenes os abusos no financiamento privado de campanhas. Jorram recursos, oriundos de fontes escusas, para beneficiar determinados candidatos. Os beneficiários promovem rica publicidade, a despeito das limitações impostas pela Lei nº 11.300/2006. Há flagrante desigualdade entre candidatos a vários cargos eletivos.

As contas prestadas aos Tribunais Eleitorais se transformam em peças de ficção elaboradas por técnicos no assunto. Todos fingem acreditar naquilo em que ninguém acredita.[18]

O deputado federal e constitucionalista Michel Temer defende o financiamento público das campanhas eleitorais:[19]

“O financiamento privado, como dito, facilita a violação do princípio da igualdade de oportunidade, alicerce do Estado de Direito. Anoto que o financiamento das campanhas eleitorais é permitido às grandes corporações, mas é mais restrito à participação de pessoas físicas, sindicatos e associações classistas dos trabalhadores, sendo que essas últimas não podem patrocinar campanhas.

“Fica claro, portanto, que a legislação é mais permissiva com o capital e seus representantes, no sentido de eleger seus candidatos, e menos aberta ao trabalho. As tentativas de limitação dos gastos privados têm sido de eficácia relativa. A contabilidade apresentada à Justiça Eleitoral nem sempre corresponde aos gastos efetivos”.

Mas quem garante que, instituído o financiamento público de campanhas eleitorais, determinados candidatos não continuarão operando “caixa dois” de suas campanha, alimentado por vultosas quantias recebidas de doadores inescrupulosos?

Não se olvide também a nociva manipulação da mídia. São favorecidos determinados candidatos, mediante noticiário tendencioso e propaganda implícita. Tornou-se célebre a frase do então ministro da Fazenda Rubens Ricupero, em 1994, ao ser flagrado no intervalo de entrevista ao jornalista Carlos Monfort, da TV Globo:

- O que é bom a gente fatura, o que é ruim a gente esconde.

A despeito das tantas mazelas do sistema eleitoral brasileiro, a Justiça Eleitoral constitui marco do sistema democrático em nosso País. Enfatizou o jurista Roberto Rosas:

“Não esqueceremos os grandes momentos da Justiça Eleitoral desde 1932, quando foi criada pelo Código Eleitoral. Ao longo de sua história há marcas visíveis na construção democrática brasileira e outras invisíveis, porém marcantes, na elaboração democrática. A Justiça Eleitoral nasceu dos ideais da Revolução de 1930 como tema central – a verdade eleitoral, propugnada por seus arautos, indignados com o passado de acertos políticos e eleitorais dos grupos dominantes. O voto era mera exibição democrática, pois as conveniências administravam as vitórias e decidiam os pleitos. A criação de uma Justiça exclusiva para o processo eleitoral foi uma das soluções, pois a administração da eleição fica entregue às mãos isentas da Justiça, e não dos chefes políticos, administradores das candidaturas, dos votos, dos resultados e da indicação dos eleitos. (...)

“Nestes dez anos de vigência da atual Carta Magna a Justiça Eleitoral continuou a prestar relevantes papéis ao sistema democrático. Não sofre a crítica relativa ao Judiciário em geral, pois sendo o processo eleitoral dinâmico, não-protelatório, evita a chamada morosidade”. [1]

Sem embargo do importante papel desempenhado pela Justiça Eleitoral, sua jurisprudência merece alguns reparos à luz do sistema consagrado pela Constituição Democrática de 1988. Refiro-me especialmente ao deferimento do registro de candidatos que respondem a processo judicial.

Com efeito, por nove votos a dois, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente o pedido da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) para permitir aos juízes negar registro das candidaturas de políticos que respondem a processo judicial, mas ainda não foram condenados em definitivo. A maioria dos ministros sustentou que a restrição viola os princípios constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal. Além do mais, o Judiciário não pode substituir o Legislativo e criar regras de inelegibilidade não previstas na Constituição e na Lei Complementar sobre a matéria. Ficaram vencidos os ministros Carlos Ayres Britto e Joaquim Barbosa. O primeiro, firmou posição favorável ao pedido da AMB. O segundo abriu uma terceira vertente e defendeu que juízes eleitorais podem vetar a candidatura de políticos com condenação em segunda instância (Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 144, rel. min. Celso de Mello; fonte: Notícias do STF, http://www.stj.gov.br/, captado em 06.08.2008).

Corroborou o Tribunal Superior Eleitoral:

“ELEIÇÕES 2008. RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO. OMISSÃO. ACÓRDÃO RECORRIDO. AUSÊNCIA. DISSÍDIO. NÃO CONFIGURAÇÃO. CANDIDATO. INCLUSÃO. LISTA. TRIBUNAL DE CONTAS. INSANABILIDADE. DEMONSTRAÇÃO. AUSÊNCIA. VIDA PREGRESSA. CANDIDATO. ADPF 144. REGISTRO. DOCUMENTO INDISPENSÁVEL. IRREGULARIDADE. SUPRIMENTO.

“1. Não há falar em ausência de fundamentação, tampouco de omissão no acórdão regional, porquanto as questões submetidas ao Tribunal de origem foram suficiente e adequadamente delineadas, com abordagem integral do tema e fundamentação compatível.

“2. Malgrado a tese de dissídio jurisprudencial, há necessidade, diante das normas legais regentes da matéria (art. 541, parágrafo único, do CPC, c/c art. 255 do RISTJ), de confronto, que não se satisfaz com a simples transcrição de ementas entre trechos do acórdão recorrido e das decisões apontadas como divergentes, mencionando-se as circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados. Ausente a demonstração analítica do dissenso, incide a censura da Súmula 284 do Supremo Tribunal Federal.

“3. O Tribunal Superior Eleitoral tem entendimento assente no sentido de que não supõe a insanabilidade das contas a simples inclusão do gestor na lista expedida pelo Tribunal de Contas remetida à Justiça Eleitoral, sendo certo que cabe ao impugnante demonstrar essa circunstância.

“4. No julgamento da ADPF 144, Rel. o Min. Celso de Mello, restou decidido pelo STF que ‘a mera existência de inquéritos policiais em curso ou de processos judiciais em andamento ou de sentença penal condenatória ainda não transitada em julgado, além de não configurar, por si só, hipótese de inelegibilidade, também não impede o registro de candidatura de qualquer cidadão’, conforme ocorre no caso em tela, onde há ações criminais e ação civil pública de improbidade administrativa ajuizada contra o candidato julgadas procedentes, mas sem trânsito em julgado.

“5. Malgrado a apresentação de documento obrigatório após o pedido de registro, o fato é que a irregularidade foi suprida anteriormente à análise da impugnação por parte do Juízo de primeiro grau, que, dessa forma, teve oportunidade de verificar o preenchimento de todos os requisitos de elegibilidade do candidato, inclusive aquele relacionado à certidão faltante, qual seja, a sua vida pregressa. Nesse contexto, não há falar em indeferimento do pedido de registro de candidatura do agravado.

“6. Agravo regimental desprovido” (Tribunal Superior Eleitoral, Recurso Especial Eleitoral nº 33.191, min. Fernando Gonçalves, publicado na sessão de 11.12.2008).

“ELEIÇÕES 2008. REGISTRO DE CANDIDATO. PREFEITO. VIDA PREGRESSA. CONDENAÇÃO. TRÃNSITO EM JULGADO. AUSÊNCIA. ART. 14, § 9º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. NÃO AUTO-APLICABILIDADE. RECURSO PROVIDO. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO.

“1. Sem o trânsito em julgado de ação penal, de improbidade administrativa ou de ação civil pública, nenhum pré-candidato pode ter seu registro de candidatura recusado pela Justiça Eleitoral (Cta nº 1.621/PB).

“2. Decidiu o Supremo Tribunal Federal que a pretensão de impedir a candidatura daqueles que ainda respondem a processo – sem trânsito em julgado - viola os princípios constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal (ADPF nº 144/DF).

“3. Não é auto-aplicável o disposto no art. 14, § 9º, da CF.

“4. Agravo regimental desprovido” (Tribunal Superior Eleitoral, Recurso Especial Eleitoral nº 29.028, min. Marcelo Ribeiro, publicado na sessão de 26.08.2008).

Cumpre ressaltar que a sociedade brasileira clama por ética na vida pública. O juiz eleitoral tem de se pautar pelos valores dominantes entre os jurisdicionados. Para a legitimação da atuação da Justiça Eleitoral avulta o papel dos princípios.

Consoante Celso Antônio Bandeira de Mello (1975:4), o Direito não é senão o conjunto de regras, que se impõe, coercitivamente, na vida social, para disciplinar situações e comportamentos humanos. A Ciência do Direito não é a ciência do conhecimento destas várias regras, não é, na verdade, a simples inteligência da totalidade das regras, mas é a compreensão da lógica que preside o relacionamento entre elas. Podemos, por isso mesmo, dizer que alguém é cientista do Direito, conhecendo apenas um dado. Quem conhece o Direito Brasileiro não conhece, necessariamente, o Direito Hindu e será um cientista do direito, não porque ele saiba o conteúdo das regras jurídicas existentes no Brasil, mas porque ele apreende a essência que comanda o mecanismo de relacionamento das regras jurídicas, porque ele apreende a essência que comanda toda a mecânica do entrosamento das várias normas; porque tem condições para ponderar devidamente as diferentes normas existentes no sistema, sabendo quais delas possuem força categorial, quais delas têm o caráter, além de normas, de princípios e, por isso mesmo, diante dos mais variados sistemas, em lhe sendo dado o conteúdo da norma, ele será capaz de entendê-lo na sua totalidade. Um curso de hermenêutica é, fundamentalmente, um curso que pretende indicar ou extrair quais os elementos básicos, quais os instrumentos para a percepção lógica de um sistema. O Direito não é uma norma, o Direito é um sistema de normas, é um conjunto de normas.

Na dicção de Norberto Bobbio (1996:71-75), sistema é uma totalidade ordenada, um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem. Para que se possa falar de uma ordem, é necessário que os entes que a constituem não estejam somente em relacionamento com o todo, mas também num relacionamento de coerência entre si. Quando nos perguntamos se um ordenamento jurídico constitui um sistema, nos perguntamos se as normas que o compõem estão num relacionamento de coerência entre si, e em que condições é possível essa relação. O famoso jurisfilósofo italiano citava Del Vecchio:

“Cada proposição jurídica em particular, mesmo podendo ser considerada também em si mesma, na sua abstratividade, tende naturalmente a se constituir em sistema. A necessidade da coerência lógica leva a aproximar aquelas que são compatíveis ou respectivamente complementares entre si, e a eliminar as contraditórias ou incompatíveis. A vontade, que é uma lógica viva, não pode desenvolver-se também no campo do Direito, a não ser que ligue as suas afirmações, à guisa de reduzi-las a um todo harmônico”.

E concluía com Perassi:

“As normas, que entram para constituir um ordenamento, não ficam isoladas, mas tornam-se parte de um sistema, uma vez que certos princípios agem como ligações, pelas quais as normas são mantidas juntas de maneira a constituir um bloco sistemático”.

Entre nós, assinalava o clássico Pontes de Miranda (1967, III:527):

“A técnica da Justiça começa por enfrentar dois temas difíceis: o da independência dos juízes e o da subordinação dos juízes à lei. Teremos ensejo de ver que a subordinação é ao direito, e não à lei,, por ser possível lei contra o direito. Aliás, já temos tratado largamente, desde 1922, da insubsistência das leis intrinsecamente incompatíveis com princípios imanentes à ordem jurídica. A formulação dos dois princípios – o da independência dos juízes e o da subordinação dos juízes à lei – tem de ser o primeiro cuidado do legislador constitucional, no tratar do Poder Judiciário” (grifos no original).

Robert Alexy (Revista de Direito Privado, 25/298-303) aponta a coerência como contributo para a racionalidade prática. Aponta Ronald Dworkin (Law’s Empire), para quem a lei, como integridade, requer um juiz para testar a interpretação “de qualquer parte da grande rede de estruturas políticas e decisões de sua comunidade, perguntando se poderia fazer parte de uma teoria coerente que justifique a rede como um todo”. Também se reporta a HEGEL (Phänomenolegie des Geistes), com seu dito “o verdadeiro é o todo”. E define os princípios:

“São normas que ordenam que algo, relativamente às possibilidades físicas e às jurídicas, seja realizado em medida tão alta quanto possível. Princípios são, segundo isso, mandamentos de otimização, que são caracterizados pelo fato de a medida ordenada de seu cumprimento depender não só das possibilidades fáticas, mas também das jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado essencialmente por princípios em sentido contrário. Em colisões de princípios, por exemplo, na entre o direito individual à fruição da natureza e o bem coletivo da proteção ambiental, não se trata disto, de despedir um de ambos os princípios, mas disto, de otimizar ambos os princípios no sistema. Isso é um problema de produção de coerência. A solução do problema pode dar bom resultado somente pela fixação de relações de primazia, mais ou menos concretas, definitivas, condicionadas, assim como pela determinação de primazias” (grifei).

Em outro ensaio, Alexy ressalva a propensão dos princípios a colidir (Revista de Direito Privado, 24/334-344). A colisão de princípios somente por ponderação pode ser resolvida. Num caso concreto, exemplifica, pode haver colisão entre o princípio da liberdade de expressão e direito personalíssimo à intimidade. Pela ponderação, mediante critério de proporcionalidade, verificará o intérprete qual dos princípios terá primazia naquele caso concreto:

“Quanto mais alto é o grau do não-cumprimento ou prejuízo de um princípio, tanto maior deve ser a importância do cumprimento do outro”.

Di Pietro considera uma das tendências do direito administrativo brasileiro, no momento atual, o “alargamento do princípio da legalidade, pela adoção dos princípios do Estado Democrático de Direito, trazendo como conseqüência a maior limitação à discricionariedade administrativa (em decorrência da submissão da Administração Pública a princípios e valores) e a ampliação do controle judicial” (Revista Brasileira de Direito Público, 16/29).

A festejada autora paulista se reporta à mudança na concepção do princípio da legalidade: a lei, por influência do positivismo jurídico, passou a ser vista em seu aspecto estritamente formal, despida de qualquer conteúdo de justiça; a preocupação com as normas do Direito Natural, vigente no período do Estado Liberal, deixou de existir; obedece-se à lei apenas porque ela contém uma ordem e não porque ela seja justa. Agora, mantém-se a idéia de submissão da Administração Pública à lei, porém não se trata mais da lei em sua concepção formalista, vazia de conteúdo e eficácia. Algumas Constituições falam em obediência à lei e ao Direito, coma Lei Fundamental da República Federal da Alemanha e a Constituição Espanhola de 1978, querendo significar que todos os órgãos do Estado devem se submeter não só à lei, em sentido formal, mas também a todos os princípios que se encontram na base do ordenamento jurídico, independentemente de sua previsão expressa no direito positivo (DI PIETRO, 1997:19-26).

Caio Mário da Silva Pereira, ao receber o título de Doutor honoris causa da Universidade de Coimbra, discursou:

“Posso dizer, com a autoridade de quem enfrenta essa luta há mais de sessenta anos, que é necessário acreditar que se pode construir o futuro sobre os alicerces jurídicos. (...) Visualizando o Direito, sem me ater a particularismos que interessem a tal ou qual categoria social, ou a algum sentimento personalíssimo, penso que ele é ‘todo inteiro’, na expressão de Del Vecchio, ‘um complexo sistema de valores’, e, mais especialmente, ‘uma conciliação dos valores da ordem e os valores da liberdade’” (jornal Estado de Minas, Belo Horizonte-MG, edição de 19 de agosto de 1999, p. 10).

Assim definia Carlos Maximiliano (1988:295):

“Todo conjunto harmônico de regras positivas é apenas o resumo, a síntese, o ‘substratum’ de um complexo de altos ditames, o índice materializado de um sistema orgânico, a concretização de uma doutrina, série de postulados que enfeixam princípios superiores. Constituem estes as diretivas idéias do hermeneuta, os pressupostos científicos da ordem jurídica” (grifo do autor).

Nessa linha conceitual, são os princípios idéias gerais e abstratas, que expressam em maior ou menor escala todas as normas que compõem a seara do Direito. Cada área do Direito não é senão a concretização de certo número de princípios, que constituem o seu núcleo central. Eles possuem uma força que permeia todo o campo sob o seu alcance (BASTOS, 1996:23).

Para Fábio Konder Comparato (PIOVESAN, 1998:11-14), a axiologia transformou a ética contemporânea. Há uma revolução axiológica, abalando o insensível positivismo jurídico vigorante na maior parte do século 20.

O sistema jurídico, em geral, é controlado e aplicado como uma rede axiológica e hierarquizada de princípios, de normas e de valores jurídicos, cuja função é dar cumprimento aos princípios e objetivos fundamentais do Estado Democrático de Direito, assim como se encontram consubstanciados, expressa ou implicitamente, na Constituição (FREITAS, 1997:49).

Surge nova materialidade constitucional e alcança o patamar supremo da Constituição. Ao mesmo passo, insere-se na órbita principal, com superioridade normativa, no que toca aos demais preceitos da Constituição. Em caso de conflito constitucional, o princípio é superior à regra. O princípio se aplica, a regra não. Os juristas do positivismo sempre foram contundentes no menosprezo e aversão aos princípios. As correntes anti-positivistas, deste fim de século, fundaram uma Nova Hermenêutica. Retiraram os princípios — dantes designados simplesmente princípios gerais de Direito — da esfera menor dos Códigos, onde jaziam como a mais frágil, subsidiária e insignificante das peças hermenêuticas do sistema, para a região mais elevada e aberta das Constituições, cujo espaço oxigenado entraram a ocupar até se fixarem com aquela densidade normativa que os converteu em senhores supremos da jurisdicidade constitucional. De tal sorte que, por derradeiro, os princípios governam a Constituição e a governam nos termos absolutos que a legitimidade impõe (BONAVIDES, 1998:22-29).

Segundo Canotilho, hoje a subordinação à lei e ao Direito, por parte dos juízes reclama, de forma incontornável, a “principialização” da jurisprudência. O Direito do Estado de Direito do Século XIX e da primeira metade do Século XX é o Direito das regras dos códigos. O Direito do Estado Constitucional Democrático e de Direito leva a sério os princípios, é um Direito de princípios. O tomar a sério os princípios implica uma mudança profunda na metódica de concretização do Direito e, por conseguinte, na atividade jurisdicional dos juízes (Revista de Processo, 98/83-84). A existência de regras e princípios permite a descodificação, em termos de um “constitucionalismo adequado” (Alexy), de estrutura sistêmica. Isto é, possibilita a compreensão da Constituição como sistema aberto de regras e princípios. Um modelo ou sistema constituído exclusivamente por regras conduzir-nos-ia a um sistema jurídico de limitada racionalidade prática. Exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa - legalismo - do mundo e da vida, fixando, em termos definitivos, as premissas e os resultados das regras jurídicas. Conseguir-se-ia um “sistema de segurança”, mas não haveria qualquer espaço livre para a complementação e desenvolvimento de um sistema, como constitucional, que é necessariamente aberto (CANOTILHO, 1993:168-169).

O juiz - escrevia o então ministro Ruy Rosado de Aguiar Júnior, do Superior Tribunal de Justiça - está subordinado aos princípios democráticos. Sua atividade, se não pode ser discricionária, também não será neutra (Revista dos Tribunais, 751:35-50):

“O juiz responde perante a sociedade pelo exercício da sua função, que é, como as demais funções do Estado, meio de realização dos valores fundamentais por ela consagrados. No Estado democrático, o juiz assume o compromisso de exercer o poder estatal de acordo com os princípios orientadores do ordenamento jurídico que o investiu no cargo e de onde lhe advém a força da decisão. Do descumprimento desse dever podem derivar duas espécies de responsabilidade, a responsabilidade jurídica, com possibilidade de perda do cargo se infringir o princípio constitucional, como está previsto na Constituição da República Federal da Alemanha, e a responsabilidade social, que é de ordem ética. (...) A atividade do juiz, (...) de descoberta do direito, não é neutra, mas também não é discricionária, devendo ser adotada em função das regras e princípios, implícitos e explícitos adotados pelo sistema, de tal sorte que a decisão, ainda que inovadora, mantenha coerência com o ordenamento jurídico vigente, que não perde por isso a sua identidade. O sistema jurídico de um Estado democrático permite liberdade decisória, nas condições acima referidas, e espera do juiz, a quem garante independência institucional e funcional, a utilização dessa liberdade para a realização dos seus valores e por isso é que ele tem responsabilidade social”.

O Superior Tribunal de Justiça assumiu posição vanguardeira, ao decidir:

“A norma de sobre-direito magistralmente recomenda ao Juiz, na linha da lógica razoável, que, ‘na aplicação da lei, o Juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum’. Em outras palavras, é de repudiar-se a aplicação meramente formal de normas quando elas não guardam sintonia com a realidade” (Recurso Especial nº 64.124-RJ, min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, publicação da Escola Judicial Desembargador Edésio Fernandes, Tribunal de Justiça-MG, Diário do Judiciário-MG, 16.05.1997).

“Urge preocupar-se com o Direito Justo. A justiça social não pode ser postergada. Toda lei tem a ampará-la uma norma, um princípio. A lei é mero compromisso histórico com o Direito. Se ele não realiza a justiça, deve ser corrigido. Palavras de RADBRUCH: ‘não se pode definir o Direito, inclusive o Direito positivo, senão dizendo que é uma ordem estabelecida com o sentido de servir à Justiça” (Embargos de Divergência no Recurso Especial nº 75.864-SC, min. Luiz Vicente Cernicchiaro, idem, Diário do Judiciário-MG, 23.05.1997).

“Ao juiz, em sua função de intérprete e aplicador da lei, em atenção aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum, como admiravelmente adverte o art. 5º, LICC, incumbe dar-lhe exegese construtiva e valorativa, que se afeiçoe aos seus fins teleológicos, sabido que ela deve refletir não só os valores que a inspiraram mas também as transformações culturais e sócio-políticas da sociedade a que se destina” (Recurso Especial nº 162.998-PR, min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, Diário do Judiciário da União, 01.06.1998).

“Se a interpretação por critérios tradicionais conduzir à injustiça, incoerências ou contradições, recomenda-se buscar o sentido eqüitativo, lógico e acorde com o sentimento geral” (Recurso Especial nº 122.499-SP, min. Milton Luiz Pereira, Diário do Judiciário da União, 15.05.2000).

“O jurista, salientava Pontes de Miranda em escólio ao Código de 1939 XII/23, ‘há de interpretar as leis com o espírito ao nível do seu tempo, isto é, mergulhado na viva realidade ambiente, e não acorrentado a algo do passado, nem perdido em alguma paragem, mesmo provável, do distante futuro’. ‘Para cada causa nova o juiz deve aplicar a lei, ensina Ripert (Les Forces Créatives du Droit, p. 392), considerando que ela é uma norma atual, muito embora saiba que ela muita vez tem longo passado’; ‘deve levar em conta o estado de coisas existentes no momento em que ela deve ser aplicada’, pois somente assim assegura o progresso do Direito, um progresso razoável para uma evolução lenta” (trecho do voto do ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, relator do Recurso Especial nº 196-RS, in Revista dos Tribunais, vol. 651, janeiro de 1990, pp. 170-173).

Superando o clássico positivismo jurídico, os juízes não mais devem aplicar simplesmente a lei. É preciso aplicá-la de modo a encontrar o justo no caso concreto. É marcante sua atuação, no que concerne à segurança, à igualdade e liberdade individuais; ao sentido e alcance da pessoa jurídica; à definição do Estado e à sua submissão ao direito; às transformações da ordem individualista, contribuindo à socialização dos direitos subjetivos; ao princípio da boa-fé nas relações jurídicas; ao princípio da eqüidade; às grandes transformações ocorridas na responsabilidade civil, onde, em boa parte, a evolução resultou de seu trabalho; em suma; à proteção dos direitos do indivíduo, fazendo deste o verdadeiro fim do direito. A jurisprudência realiza concretamente o Estado de Direito (AZEVEDO, 1996:153-154).

Os juízes devem ser juízes da República. Sua missão não se limita a uma simples busca da justiça, segundo fórmulas processuais preestabelecidas. Deles depende a vigência de todo o sistema institucional de uma comunidade política. Os juízes são juízes da coisa pública, de todas as suas instituições e não só da legalidade formal. A eles a Constituição também confiou o conhecimento daquelas causas que versam sobre as instituições republicanas (DROMI, 1996:237).

É verdade que a Constituição Federal de 1988 somente prevê perda ou suspensão de direitos políticos em caso de “condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos” (artigo 15, inciso III).

Contudo, a mesma Carta Magna também estabelece a mesma conseqüência para o caso de “improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º” (artigo 15, inciso V).

Vejamos a regra do artigo 37, § 4º, da Lei Maior:

“Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível”.

E correlata regra do § 9º do artigo 14 daquela Constituição, com redação conferida pela Emenda Constitucional de Revisão nº 4/94:

“Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta”.

Ora, a redação supra é posterior à edição da Lei Complementar nº 64/90 (Lei de Inelegibilidade), a qual considera inelegíveis, para qualquer cargo, entre outros, “os que forem condenados criminalmente, com sentença transitada em julgado, pela prática de crime contra a economia popular, a fé pública, a administração pública, o patrimônio público, o mercado financeiro, pelo tráfico de entorpecentes e por crimes eleitorais, pelo prazo de 3 (três) anos, após o cumprimento da pena” e “os detentores de cargo na administração pública direta, indireta ou fundacional, que beneficiarem a si ou a terceiros, pelo abuso do poder econômico ou político apurado em processo, com sentença transitada em julgado, para as eleições que se realizarem nos 3 (três) anos seguintes ao término do seu mandato ou do período de sua permanência no cargo” (artigo 1º, incisos “e” e “h”, grifei).

Haveria necessidade, portanto, do Congresso Nacional alterar a referida legislação complementar. Entretanto, é notória a dificuldade dos parlamentares em aprovar normas desse jaez...

Releva, em face da omissão legislativa, o papel do Poder Judiciário. Por isso, a despeito da respeitabilidade do Supremo Tribunal Federal, entendo que a decisão adotada na precitada ADPF nº 144, embora se reporte à necessidade do trânsito em julgado das decisões condenatórias e ao relevante princípio constitucional da presunção da inocência, viola o mais relevante princípio da moralidade administrativa, consagrado pela artigo 37, caput, da Constituição de 1988, e que tem aplicação imediata à situação aqui debatida.

Segundo Di Pietro, “a imoralidade administrativa surgiu e se desenvolveu ligada à idéia de desvio de poder, pois se entendia que, em ambas as hipóteses, a Administração Pública se utiliza de meios lícitos para atingir finalidades metajurídicas irregulares. A imoralidade estaria na intenção do agente” (2003:78).

Celso Antônio Bandeira de Mello (1996:85-86):

“A competência só é validamente exercida quando houver sido manejada para satisfazer a finalidade que a lei visou, obedecidos os requisitos procedimentais normativamente estabelecidos, presentes os motivos aptos para justificar o ato, adotada a forma instrumental prevista e através de conteúdo juridicamente idôneo. (...)

“Todo e qualquer ato administrativo, provenha de onde provier - Legislativo, Executivo ou Judiciário - tem requisitos para sua válida expedição. Dentre eles, de par com o estrito respeito à finalidade que a lei assinala para o ato, avulta a exigência de que a conduta administrativa esteja estribada nos pressupostos fáticos, isto é, nos motivos, que a norma jurídica tomou em conta ao autorizar ou exigir dada providência” (grifos no original).

O artigo 2º, parágrafo único, da Lei Federal nº 9.784/99, determina que, nos processos administrativos no âmbito da Administração Pública Federal, serão observados, entre outros, os critérios de: “(...) IV - atuação segundo padrões éticos, de probidade e boa-fé”. Também estabelece o § 2º do artigo 13 da Constituição do Estado de Minas Gerais (1989): “A moralidade e a razoabilidade dos atos do Poder Público serão apuradas, para efeito de controle e invalidação, em face dos dados objetivos de cada caso”.

Para Caio Tácito, a moralidade integra a legitimidade do exercício da competência administrativa (Hauriou). Pressupõe o exame dos motivos do ato administrativo, em conexão com o vínculo legal à finalidade. O administrador não pode colocar seus poderes a serviço de interesses pessoais exclusivos e de conceitos que discrepam de valores morais respeitáveis (RDA, 218:1-10).

Com o objetivo de sujeitar ao exame judicial a moralidade administrativa, o desvio de poder passou a ser visto como hipótese de ilegalidade (DI PIETRO, 2003:78):

“Ainda que, no desvio de poder, o vício esteja na consciência ou intenção de quem pratica o ato, a matéria passou a inserir-se no próprio conceito de legalidade administrativa. O direito ampliou o seu círculo para abranger matéria que antes dizia respeito apenas à moral”.

Odete Medauar (1993:93) afirma que o princípio da moralidade se imbrica com o da impessoalidade. Um dos aspectos da imoralidade diz respeito ao uso de poderes administrativos com o fim de propiciar favorecimentos a si e a outrem, situação que envolve a impessoalidade como um dos fatores da imoralidade. Segundo a autora, é princípio de difícil tradução verbal, porque é impossível enquadrar em um dos dois vocábulos a ampla gama de condutas e práticas desviantes das verdadeiras finalidades da Administração Pública. Caracterizado sob perfil das regras de conduta extraídas da disciplina da Administração, sob perfil do fim do interesse público, da boa administração, boa-fé e lealdade da Administração. O princípio deve ser observado não apenas pelo administrador, mas também pelo particular que se relaciona com a Administração Pública (v. g., no procedimento licitatório não pode haver conluio entre licitantes).

Conclui Di Pietro (2003:79):

“Sempre que, em matéria administrativa, se verificar que o comportamento da Administração ou do administrado, que com ela se relaciona juridicamente, embora em consonância com a lei, ofende a moral, os bons costumes, as regras da boa administração, os princípios de justiça e de eqüidade, a idéia comum de honestidade, estará havendo ofensa ao princípio da moralida
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