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la ciudad que soñamos es la ciudad que podemos construir

the city we dream of is the one we can build ourselves

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ser nobre é ter identidade
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Escopo: São João del-Rei | Tiradentes | Ouro Preto | Minas Gerais | Brasil | Mundo

 

Tempo e memória em Pedro Nava . Rogério Medeiros Garcia de Lima

Descrição

Rogério Medeiros Garcia de Lima/Sobre o autor e outros artigos de sua autoria
Desembargador do TJMG; ensaio publicado à revista Magiscultura, Associação dos Magistrados Mineiros, Belo Horizonte-MG, nº 6, setembro 2011, pp. 4-13

“Pedro Nava surpreende, assusta, diverte, comove, embala, inebria, fascina o leitor, com suas memórias da infância.” (Carlos Drummond de Andrade, Baú de Surpresas; in NAVA, Pedro, Baú de Ossos, 1983, p. 7).

“Uma das gratificações de uma longa vida é poder revisitá-la. É ser capaz de revê-la nos seus esplendores, medos, dúvidas e angústias”. (Roberto DaMatta, A fonte da juventude, 08.06.2011).

Faleceu uma “tia afetiva” muito querida em São João del-Rei, minha terra natal. Na ocasião, relembrei a infância e os fins de tarde de domingo, quando, acompanhado por meus pais, lanchávamos na casa da saudosa “tia”. Acorreram-me à lembrança o café puro e as deliciosas torradinhas de polvilho, fabricadas em conhecida padaria da cidade.

Nessa viagem da memória, evoquei o romancista francês Marcel Proust, que publicou, no início do século passado, sua obra-prima Em busca do tempo perdido (À la recherche du temps perdu): o tempo, aparentemente perdido, pode ser resgatado pela memória.

Em passagem de No Caminho de Swann (1982:31-33), Proust molhou a madeleine – (“madalena”, espécie de bolinho francês) numa xícara de chá. O sabor da guloseima, num passe de mágica, acionou o caleidoscópio da memória do romancista, desde a meninice:

“É assim com o nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços da nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora do seu domínio e do seu alcance, nalgum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material) que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só do acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca. (...)

“E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray (pois nos domingos eu não saía antes da hora da missa) minha tia Leôncia me oferecia, depois de o ter mergulhado no seu chá da Índia ou de tília, quando ia cumprimentá-la em seu quarto.(...)

“Quando mais nada subsistisse de um passado remoto, após a morte das criaturas e destruição das coisas – sozinhos, mais frágeis porém mais vivos, mais imateriais, mais persistentes, mais fiéis – o odor e o sabor permanecem ainda por muito tempo, como almas, lembrando, aguardando, esperando, sobre as ruínas de tudo o mais, e suportando sem ceder, em sua gotícula impalpável, o edifício imenso da recordação. (...)

“Como nesse divertimento japonês de mergulhar numa bacia de porcelana cheia de água pedacinhos de papel, até então indistintos e que, depois de molhados, se estiram, se delineiam, se colorem, se diferenciam, tornam-se flores, casas, personagens consistentes e reconhecíveis, assim agora todas as flores do nosso jardim e as do parque do sr.Swann, e as ninfeias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias e a igreja e toda Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez saiu, cidade e jardins, da minha taça de chá.”

Minhas lembranças pulsaram mais forte na mente. Recordei Pedro Nava, cujos livros são indelével referência na minha formação humanística. O escritor mineiro me introduziu a Proust.

De Juiz de Fora ao Rio

Pedro da Silva Nava nasceu em Juiz de Fora (MG), no dia 5 de junho de 1903, primogênito do médico José Pedro da Silva Nava e sua esposa Diva Mariana Jaguaribe. O pai faleceu prematuramente em 1911, quando moravam no Rio de Janeiro. Voltaram para Juiz de Fora. Em 1913, com a morte da avó materna Maria Luísa, a família mudou-se para Belo Horizonte. No ano seguinte, Pedro viajou para o Rio de Janeiro e se hospedou com os tios Alice e Antônio Sales. Foi matriculado no internato do Colégio Pedro II. Retornando a Belo Horizonte, em 1921 foi aprovado no exame de admissão ao curso de Medicina. Formou-se médico em 1927, na mesma turma de Juscelino Kubitschek de Oliveira. Trabalhou em Juiz de Fora e em Monte Aprazível (SP), até se estabelecer no Rio de Janeiro. Em 1943, com um grupo de intelectuais e políticos de Minas Gerais, assinou o Manifesto dos Mineiros. O documento continha críticas à ditadura de Getúlio Vargas. A atitude acarretou sua aposentadoria forçada do cargo que ocupava na Secretaria de Saúde da Prefeitura do Rio. No mesmo ano, casou com Antonieta Penido (Nieta). Em 1948, especializou-se em Reumatologia nos hospitais de Paris. De volta ao Rio de Janeiro, criou o Serviço da Reumatologia da Policlínica Geral e fundou a Sociedade Brasileira de Reumatologia. Em 1957, ingressou na Academia Nacional de Medicina. Poeta bissexto, em 1968, aos 65 anos de idade, começou a escrever suas memórias. Alcançou enorme sucesso com a publicação dos seis volumes de sua obra memorialística: Baú de Ossos, Balão Cativo, Chão de Ferro, Beira-Mar, Galo-das-Trevas e O Círio Perfeito. Suicidou no Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1984, aos 80 anos (fonte: Arquivo Pedro Nava, acervo de Pedro Nava na Casa de Rui Barbosa).

Zuenir Ventura escreveu impressionante relato da morte do memorialista (2005:163-164):

“O escritor mineiro Pedro Nava tinha pelo menos duas tarefas a cumprir quando um telefonema levou-o a se suicidar no domingo, 13 de maio de 1984: receber daí a dias o título de Cidadão Fluminense na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e finalizar o sétimo volume de sua monumental série de memórias que começara com ‘Baú de ossos’, em 1972, e se encerraria com ‘Cera das almas’.

“Ele acabara de ler para sua mulher o discurso com que agradeceria a homenagem quando, às 21h, o telefone tocou.Nieta atendeu e uma voz masculina disse que queria falar com Pedro Nava. Ele pegou o aparelho, ouviu em silêncio o que lhe disseram do outro lado da linha, desligou e, transtornado, comentou que ‘nunca tinha ouvido nada tão obsceno ao telefone’. Sua mulher notou que ‘parecia que ele tinha recebido alguma chantagem’.

“Aproveitando a ida dela ao banheiro, ele pegou na gaveta um revólver calibre 32 que comprara havia quatro anos e saiu sem avisar pela porta dos fundos do apartamento. Perambulou pelo bairro da Glória, no centro do Rio de Janeiro, onde morava, e depois foi visto sentado na calçada, cabisbaixo, em meio aos travestis e prostitutas que costumavam circular na área. Às 23h30, junto a uma árvore, disparou um tiro na cabeça. Ia fazer 81 anos e era o nosso maior memorialista.”

O memorialista conta o que quer

Os livros de memórias de Pedro Nava foram bastante elogiados nos círculos literários. Para o crítico Wilson Martins, Nava elaborou “um livro que desejaríamos infinito”. (Baú de Ossos, 1983, capa)Antonio Cândido registrou (Baú de Ossos, 1983, contracapa):

“Antes de abordar o estudo de sua obra, conviria lembrar que, se estamos habituados a tratar Drummond e Murilo (Mendes) na categoria dos maiores escritores, a presença entre eles de Pedro Nava pode espantar alguns, porque a sua revelação é recente e as pessoas ainda não se habituaram a aceitar a sua eminência ou admitir que um livro de memórias possa ter a altura das grandes obras literárias. Ora, justamente porque estou convencido desde o primeiro momento de que assim é, ou seja, de que Pedro Nava é um dos grandes escritores brasileiros contemporâneos, não hesitei em situá-lo na devida companhia.”

Baú de Ossos - o primeiro livro da série - recebeu o prêmio Pen Clube de 1973 e da Associação Paulista de Críticos de Arte de 1974.

Monique leMoing, biógrafa de Pedro Nava, descreve a obra do biografado e seu processo de criação literária (A Solidão Povoada – Uma Biografia de Pedro Nava, 1996, pp. 27 e 32):

“Escreve por necessidade. Para sair dele mesmo e reclamar contra as convenções e a educação hipócrita, para encontrar a sua própria imagem, para recriar o passado – ‘sou um recriador do passado’ -, testemunhar em favor da classe média brasileira e das dificuldades que ela encontra no dia-a-dia, contar os acontecimentos importantes dos quais participou ou de que foi testemunha, reter os relatos dos acontecimentos feitos pelos outros:

‘Existe uma necessidade que todos nós temos de fazer confidências (...) confissão. De tentar deixar consignado o espírito de um período (...) uma tendência à sobrevivência (...) É ato de vaidade e de defesa querer se segurar mais um pouquinho, através da memória dos outros.

‘Nasceu a necessidade de maior comunicação comigo mesmo (...) voltar para trás, ir ao passado (...) me interessou o livro como aplicação de minha vida, de meu tempo, e exploração de mim mesmo’”.

“Pedro Nava se completa, se recompõe, se escolhe, se reencontra, ou melhor, reencontra a sua unidade na negação. Recusa da sua educação, dos interditos – recusa dos compromissos políticos e sociais, oposição radical aos valores do dinheiro. Tudo isto o conduz à atitude de desconfiança em relação às ideias recebidas, e de ódio em relação a qualquer dogmatismo. Torna-se anarquista meticuloso e discreto. Existe portanto uma distância surpreendente entre o Pedro Nava social e sociável, (...) conversando à vontade com os amigos, e o Pedro Nava das Memórias, violento, às vezes amargo como fel.”

Sobre José Egon Barros da Cunha, alter ego de Nava, leMoingacrescenta (1996:98-99):

“A originalidade de Pedro Nava no contexto dessa obra monumental é a criação do duplo: Egon. (...) Graças a essa dupla organização da ficção, ficção-fictiva que lhe oferece um certo ponto de vista, um certo retrocesso em relação a si mesmo, pode realizar uma decalagem de perspectiva muito interessante. Mais ainda: uma transposição de ponto de vista, de voz e de tempo que leva o leitor, e talvez o autor, a uma espécie de jogo entre autor-narrador e a ‘personagem’ que criou. Criação que não engana ninguém, e ele bem o sabe – jogo entre o testemunho fictivo e o leitor já avisado.

“A chegada do Egon no palco não passa de um álibi para oferecer uma outra apresentação de si mesmo, para dar e receber uma imagem compatível com a que havia revelado até então. Podemos indagar sobre a intenção dele... Uma de suas respostas foi dada numa entrevista e poderá fornecer uma chave:

‘comecei a não ter mais liberdade de tratar certos assuntos em que me sentia colhido. (...) Eu não tinha muita coragem para dizer ‘eu faço, eu fiz’ ao passo que, com a simples criação do personagem – que eu sei que sou eu e que todo leitor inteligentemente reconhece que sou eu, o problema deixou de existir.’”

A biógrafa vasculhou os arquivos de Nava e encontrou anotações sobre sua técnica de escrever (1996:128-129):

“Penso bem a estrutura de um capítulo. Escrevo seu sumário, ou boneco, ou esqueleto. Procuro entre minhas notas cada uma que se adeque a cada item desse boneco. Numero entre estas notas a escolhida. Escrevo esse número ao lado de cada item do sumário. Escrevo e componho consultando um por um. Destruindo as fichas à medida que escrevia, conto isto a Drummond. Ele manda que eu guarde todas. Do fato de guardá-las nasceu mais respeito pelo meu escrito, pelo trabalho que ele me custa.”

O próprio Nava, durante entrevista à televisão em 1983, afirmou que o memorialista conta o que quer, o historiador deve contar o que sabe.

Pérolas literárias

Outras assertivas literárias recolhi em seus livros:

“A memória dos que envelhecem (e que transmite aos filhos, aos sobrinhos, aos netos), a lembrança dos pequenos fatos que tecem a vida de cada indivíduo e do grupo com que ele estabelece contato, correlações, aproximações, antagonismos, afeições, repulsas e ódios) é o elemento básico na construção da tradição familiar.” (Baú de Ossos, 1983, p. 23)

“Quem escreve é para ser lido. Certo, Monsieur de La Palisse. Mas sejamos sinceros acrescentando que muito do que escrevemos é para ser lido por nós mesmos. Não há ninguém, por mais pintado que seja, que não goste de lamber a própria cria.” (Balão Cativo, 1973, p. 268)

“Não é bem isto porque o passado e o presente não são coisas estáveis tornadas interpenetráveis pela memória que arruma e desarruma as cartas que vai embaralhando. O passado não é ordenado nem imóvel – pode vir em imagens sucessivas, mas sua verdadeira força reside na ‘simultaneidade’ e na ‘multiplicidade’ das visagens que se dispõem, se desarranjam, combinam-se umas às outras e logo se repelem, construindo não um passado, mas, vários passados. Fatias da grossura do ponto geométrico incessantemente cortadas do presente por uma espécie de máquina automática de fazer presunto. Seus roletes não caem em ordem obrigatória sobre o papel impermeável do embrulho. Vão e vêm segundo as solicitações da ‘realidade atual’ – também fictícia porque sempre em desgaste e capaz de instituir contemporaneidade com o passado, igual à que pode estabelecer com o futuro – tornando de vidro as barreiras do tempo. (...)

“Importa a verdade? Ah! Pilatos, Pilatos... Para quem escreve memórias, onde acaba a lembrança? onde começa a ficção? Talvez sejam inseparáveis. Os fatos da realidade são como pedra, tijolo – argamassados, virados parede, casa, pelo saibro, pela cal, pelo reboco da verossimilhança – manipulados pela imaginação criadora. Foi bem assim? devia ter sido assim? ou é como se tivesse sido assim?” (Balão Cativo, 1973, pp. 287-288).

“Uma saudade, saudade de mim, de meus eus sucessivos, (...) uma saudade vácuo como a que tenho de meus mortos e que me surpreendi, dando ao ‘mim mesmo’ também irrecuperável, como se eu fosse sendo uma enfiada de mortos – eu. Tudo tão recente mas já tão longe e logo deformado” (Chão de Ferro, 1976, p. 287).

“Os endereços que aponto são os de casas que vão morrer e que breve não existirão mais. Assim como acompanhamos avidamente a agonia dos que amamos para guardar para sempre a tirania de sua derradeira lembrança – acho que todos que passam diante de uma velha casa, de uma velha igreja, devem olhá-las como quem segura, se encosta, cheira, beija, lambe, degusta o corpo apetecido. É amar agora porque a mocidade foge.” (Galo-das-Trevas, 1981, p. 25)

Pedro Nava confessou certa vez que o memorialista é a forma anfíbia de historiador e ficcionista, e que ora tem de palmilhar as securas desérticas da verdade, ora nadar nas possibilidades oceânicas de sua interpretação. Para ele transfigurar, explicar, interpretar o acontecimento é que é a arte do memorialista.

Sobre o seu oficio anotou:

‘Minhas memórias nasceram da minha disponibilidade. Meu único critério é ser fiel a mim mesmo, dizer sempre a verdade. Mesmo a morte não altera, para mim, os sentimentos afetivos. Não transformaria canalhas em santos só porque já morreram. Só escrevo o que penso. O ato de escrever me desoprime, é mesmo uma libertação’.” (O Círio Perfeito, 1983, contracapa)

“As providências, o mudar o papel na máquina, a viagem pelos dicionários, a busca nos livros, assistir à flor emergente que fazemos desabrochar – subindo e rompendo -, tudo faz o criador sair de si mesmo, fugir, romper sua solidão e conviver no imaginário sem os atritos da convivência real... a criação! Seu momento transcende a pessoa e faz que supere o que pensa de si próprio o criador. Há uma espécie de transe, de visita – é a boa loucura... (...)

“É ocioso discutir os limites da literatura. Literatura é tudo aquilo feito com bom estilo, tudo que é bem escrito e que é tocado, ainda que de leve, pela mão da poesia.” (O Círio Perfeito, 1983, pp. 410, 411 e 413)

De anarquista a socialista

Sobre leituras intensas e desorganizadas, na biblioteca do tio Antônio Salles:

“‘Leu tudo, sem ordem, sem processo e sem medida.” (Viana Moog: Eça de Queirós e o Século XIX)

“Foi assim que eu li. Seguindo o exemplo de tio Salles, que tinha imitado, sem saber, o que fizera Eça de Queirós. Diante da que se me oferecia tal qual um mar oceano – mergulhei! E me senti logo como peixe n’água.” (Balão Cativo, 1973, p. 190)

Em relação à política, Pedro Nava – como já assinalado - foi um dos signatários do Manifesto dos Mineiros:

“Durante o Estado Novo, a eficiente censura de Vargas à opinião pública tinha silenciado as vozes dissidentes. Antes de 1945, houve apenas uma declaração importante da oposição. Em outubro de 1943, um grupo de intelectuais e políticos de Minas Gerais emitiu um cauteloso manifesto, pedindo a redemocratização do Brasil e citando a história política de Minas Gerais como prova de que a liberdade de opinião eo governo constitucional eram aspirações naturais dos brasileiros.” (Skidmore, 1979:72-73)

Poderíamos imaginar que Nava, a exemplo de muitos políticos e intelectuais subscritores daquele manifesto contra o presidente Vargas, simpatizasse com o liberalismo burguês e o moralismo da União Democrática Nacional (UDN). No entanto, tinha sua peculiar posição política:

“Política, aqui no Brasil (...) é sempre a ideia de uma melhora que vem (...) aos nossos políticos falta essa qualidade, essencial aos médicos: o prognóstico (...) sempre me sinto inseguro dentro do Brasil. (...)

“Politicamente sou um socialista (...) depois de ter sido anarquista durante quase toda a minha vida (...) eu optei pelo socialismo para fugir do idealismo, do impossível, da quimera que é a anarquia. (...)

“A minha simpatia vai para os regimes nos quais o homem vive na sua grandeza, na sua plena liberdade e dignidade e com todos os seus direitos à educação, à liberdade, ao voto.”

“Acho absurda toda censura qualquer que seja.”

“Acho que a pessoa tem mais direito ao médico do que ao delegado de polícia.” (leMoing, 1996:166-167)

Fazia leitura crítica do Brasil:

“País de analfabetos formados e analfabetos mesmo.” (Galo-das-Trevas, 1981, p. 112)

A descrença no homem

Nava era seco, irônico e, não raro, pessimista na sua visão de mundo e do ser humano:

“Ele tem uma admiração imensa pela mocidade, que acha fabulosa. De fato é a sociedade que corrompe o homem, os jovens merecem respeito. O que lamenta é que os seres amados não o criaram nessa ótica de vida numa sociedade onde falta o senso moral que a ele foi inculcado?

“Três pessoas me fizeram o mal de me convencer que a vida era ótima, que todos os homens eram honestos, que todas as mulheres eram santas. Encontrei no meu dia-a-dia exatamente o contrário. (...)

“Os ensinamentos de minha Mãe, de meus tios, me davam a ilusão de um mundo justo e bom criado à sua imagem e semelhança. Vim descobrir, à minha custa, como estava muito enganado, isto é, que a vida é má, o semelhante pior, o vizinho quando não indiferente é inimigo, que a inveja é o pão nosso de cinza de cada dia, que o homem domesticado é frequente no imanir e voltar à sua bruteza habitual.” (leMoing, 1996:27)

Coligi das suas memórias:

“Vinde a nós, ‘portugas’, ‘galegos’, ‘mondrongos’ – mesmo se fordes da mesma massa dos ‘degredados’ que chegaram com os primeiros povoadores. O que esses tão falados degredados eram, não tinha nada demais. Ladrões? Assassinos? Nada disto. Criminosos sexuais, simpáticos bandalhos. Basta ler as ‘Ordenações’ e verificar a maioria dos motivos de degredo para o Brasil: comer mulher alheia, deflorar, estuprar, ser corno complacente e mais, e mais, e mais ainda – entretanto, nada de se temer. Fazem lembrar as delinquências brejeiras de que um juiz mineiro que conheci, dizia, com inveja e depois de julgar – serem, exatamente, as que ele, juiz, tinha vontade perpetrar...” (Baú de Ossos, 1983, p. 207)

“Fica-se envergonhado de pertencer à mesma humanidade – não digo dos pobres bajuladores primários, mas dos bajuladores aperfeiçoados que, não contentes de lamberem as solas dos que sobem, metem as suas na cara dos que caem.” (Baú de Ossos, 1983, p. 230)

“‘Com dez anos vim para o Rio.
Conhecia a vida em suas verdades essenciais. Estava maduro para o sofrimento
E para a poesia’.

(Manuel Bandeira, ‘Infância’, in Estrela da Vida Inteira)

“Eu também. Com dez anos subi o nosso Caminho Novo, mudado para Belo Horizonte. Já tinha provado tudo que nasce do contato com o semelhante. Amizade, carinho, ódio, rancor, ciúme, rudimentos de amor. Experimentara proteção, ajuda, perseguição, desamparo e a gelatina da indiferença. Fora preterido e escorraçado. Vedete e passado para trás. Sentira o arrocho dos círculos concêntricos do mundo e vira a Morte se intrometendo. Aprendera a carne, começando pela pornografia. Sabia chorar e dissimular. Conhecia, pois, a vida em suas verdades essenciais e estava pronto para a transida solidão da poesia. Vai, Pedro! toma tua carga nas costas e segue.” (Balão Cativo, 1973, p. 85)

Compôs trovinha para o Príncipe, seu cachorro de infância (Balão Cativo, 1973, p. 67):

“Pela estrada da vida subi morros,
Desci ladeiras, e afinal te digo:
Se entre os amigos, encontrei cachorros,
Entre os cachorros, encontrei-te, Amigo!”

Recorda o presidente da República Nilo Peçanha, que gostava de passear na praia de Icaraí, em Niterói, onde morava. Era casado na aristocracia fluminense e o casal presidencial não tinha filhos:

“Todo seu carinho e da esposa pertenciam ao cachorrinho peludo que criavam e que era chamado ‘Jiqui’. Esse nome era repetido com unção pelos engrossadores que viviam presenteando o totó com coleiras luxuosas onde ele vinha gravado em plaquinhas de prata ou de ouro. Todos adoravam o Jiqui...” (Chão de Ferro, 1976, p. 112)

Da importância de ser honesto

“Como traduzir? mais corretamente ‘honest’. Por honesto, evidentemente, e por extensão, analogia, também por verdadeiro, autêntico, genuíno, natural, intrínseco, básico, fiel, direito, verossímil. Quem tem dessas qualidades é correto e puro. E se é assim, tem vergonha. Então é lícito verter o texto shakespeariano.

- Que horas são?

- São horas de ter vergonha.” (Galo-das-Trevas, 1981, p. 5)

“‘A vida é um romance sem enredo’ (de um manuscrito de José Egon Barros da Cunha).” (O Círio Perfeito, 1983, p. 19)

Não era hipócrita nos seus desafetos, como revela o alter ego Egon:

“Logo concebeu um ódio que longe de atenuar, o tempo foi acrescentando. Durou vida afora, chegou até às eras de todos no Rio. Hei de mijar na cova desses putos! pensava o Egon. Não mijou. Mas foi muito gratificado que leu-lhes o necrológio nos jornais anos e anos depois. Desejou que a terra lhes fosse leve – com o Pão de Açúcar por cima e o Corcovado de quebra...” (Galo-das-Trevas, 1981, p. 154)

Todavia, temperava o fel com a admiração confessa pelos grandes professores. Numa entrevista veiculada na década de 1980, dizia que o homem decente que está ensinando, mesmo sem querer, infunde sua decência no jovem que está aprendendo. Citava Mendes Pimentel: “O lente é o aluno mais experiente.” (O Círio Perfeito, 1983, p. 56)

E mais:

“Essa última qualidade – o preparo e o amor ao estudo – é que faz os doutores mais cheios de coleguismo e comportamento confraternal. O duro que dão em cima livros, o trabalho que dá o bem saber – fazem-n’os valorizar essas qualidades nos outros e o tempo passado debruçados nos livros e nos doentes não tem intervalos de folga para a mexida, a fofoca, o dizquedisse, a intrigalhada, a perfídia, a calúnia. A certeza do próprio valor cria os tolerantes com o valor alheio.” (Galo-das-Trevas, 1981, p. 366)

Medicina e bondade

Em Pedro Nava, casaram-se o médico e o humanista:

“Ensinava, honestamente, que as doenças não têm cura mas que todas têm tratamento. Este é outro segredo do médico. Auxiliar o equilíbrio somático acompanhando a natureza na sua reconstrução provisória. Nunca remando contra a maré. Sabendo desde o princípio que toda a Medicina é o ato gratuito de saber diagnosticar. Depois medicar pouco e na hora, não ser ativista terapêutico. Entender o doente. Conversar com o doente. Saber ouvi-lo com paciência. Amparar com o remédio sintomático. Consolar com a presença, a palavra oportuna, a bendita mentira, o santo perjúrio. Ser bom e simples. Guardar e repetir a cada instante a melhor coisa que ensinou Miguel Couto em frase um pouco rebuscada: ‘Se toda a Medicina não está na bondade, menos vale dela separada.’ (...)

“Foi citado várias vezes o grande Couto. Talvez seja a necessidade de lembrar um nome de nossa Medicina que não deve ser olvidado. Não posso nunca esquecer da pergunta que ouvi, há bem seus muitos anos, de interno meu – sextanista – que diante de minha insistência em citar aquele médico perguntou-me – ‘Mas Doutor Nava, afinal quem era esse Miguel Couto em quem o senhor tanto fala?’ Isso se passou com um doutorando de 1949 – apenas quinze anos depois da morte desse que, a seu tempo, era o maior médico brasileiro – a própria encarnação da Clínica Médica Brasileira... Preste-se ao menos atenção ao fato de existirem no Rio – uma rua e um hospital com o nome ilustríssimo.” (Galo-das-Trevas, 1981, p. 404).

Sobre o médico, colega e amigo Joaquim Nunes Coutinho Cavalcanti escreveu:

“Durante toda sua longa vida de médico ele veio conservando muita coisa do tanto que aprendera com seu amigo não só tecnicamente, como na profissionalidade e no desinteresse a que está sempre obrigado o médico diante do doente pobre. Humildemente obrigado diante do doente pobre... E na certeza de que não está praticando caridade nem fazendo um favor. Apenas cumprindo uma obrigação. (...)

“É preciso acrescentar aqui suas qualidades humanas. A bondade, abnegação, a participação, o altruísmo, seu sofrimento com o sofrimento alheio, seu interesse que ia além do ‘caso clínico’ para estender-se ao homem, a suas lutas, suas misérias, sua posição social, seus pensamentos, seus sofrimentos. Era o médico dotado do poder de desdobrar-se no pai, no irmão, no companheiro, no amigo, no mentor de seus clientes.” (O Círio Perfeito, 1983, pp. 128 e 149)

Amizade mineira

Travou sólida amizade com Afonso Arinos de Melo Franco, desde 1915, quando foram contemporâneos no Colégio Pedro II, Rio de Janeiro. O convívio rendeu belas citações sobre amizade:

“A gente se conhece no colégio, vira amigo, convive de irmão, de confidente. Isto é sentimento para sempre. Uns perdemos de vista. Outros reencontramos no caminho da vida, logo com a mesma afeição e a mesma confiança de amigos. Passaram anos e logo retomamos. Porque nos conhecemos e sabemos que somos os mesmos: porque cada homem bom ou mau traz dentro de si, com qualidades positivas ou negativas, o menino que nasceu assim.” (Chão de Ferro, 1976, p. 114)

“Está explicada a razão do bem querer de um pelo outro – porque a amizade assenta-se na coincidência de gostos ou de interesses – também os intelectuais – de duas pessoas. E ela só se conserva mantida por esses elos.” (O Círio Perfeito, 1983, pp. 320 e 391)

Amizade e admiração eram recíprocas entre Afonso Arinos e Pedro Nava. Arinos fez referência a figuras notáveis de sua geração, inclusive Pedro Nava “escrevendo a monumental obra autobiográfica, um panorama sociológico formidável.” (Afonso Arinos na UnB, 1981, p. 24)

A solidão no trem, a fala com Deus

Nava descobriu a solidão durante viagem de trem ao Rio de Janeiro, para estudar no Colégio Pedro II:

“Descobri apavorado e encantado que eu era um indivíduo autônomo destinado a viver minha própria vida e a encarar desde aquele comboio serrabaixo – a solidão que todos têm de enfrentar um dia. Assumi, ai! de mim, a minha e foi assim que desembarquei só na Central.” (Chão de Ferro, 1976, p. 111)

Não o entusiasmava a religião:

“Fui escasseando minhas visitas ao templo e mais ou menos nessa época, depois de curta reconciliação, deixei também definitivamente o aprisco da nossa querida Igreja Católica Apostólica Romana. Como a Sinhá-Cota, aboli os intermediários e passei a entender-me diretamente com Jesus, meu Salvador.” (Chão de Ferro, 1976, p. 233).

“Usava daqueles bigodaços de cortina – para disfarçar o corte espesso e sensual da boca e os belos dentes, que eram todos perfeitos. Estava de negro, insígnia religiosa à lapela e até chegar à mesa, andou numa atitude modesta, olhos baixos e as mãos peludas uma na outra – ao jeito do comungante se aproximando do repasto eucarístico.” (descrevendo um personagem em Galo-das-Trevas,1981, p. 235)

A morte e o amor

Angustiavam-lhe a doença e a morte:

“Já estará? em mim. Onde? ai de mim! que assim me interrogo nas noites longas. Onde? Estará? no pulmão a que dei tanto fumo. No fígado? a que dei os espíritos e as especiarias e a cuja neutralização atirei a toxicidade das vitualhas engolidas rabelaisianamente. ‘Mea culpa’. Na pequena curvatura? Na bexiga? Próstata? partes cansadas do baixo ventre? Nos fatigados ossos? armação, estrutura, vigamento que sustentou meu corpo no bem e no mal... Bato na madeira, rezo, faço figa, passa-fora, fica lá-nele, fica na galáxia – SAI, CÂNCER.” (Galo-das-Trevas, 1981, p. 80)

A vida amorosa de Pedro Nava foi abalada pelo suicídio da namorada Zilah (Lenora) no Rio de Janeiro.

Em Beira-Mar, reporta-se a uma moça por quem teve paixão passageira:

“No dia em que a vi de mãos dadas com um brutamontes do futebol. Tudo, menos aquele. Era como ver camélias mastigadas por um porco.”

Durante passeio pela Praça da Liberdade, na bucólica Belo Horizonte dos anos 1920, Egon, um tanto poético e apaixonado, derramou um frasco de perfume francês sobre a cabeça da namorada:

“- Olha o que eu trouxe para você...

“O que ter-lhe-ia? passado pela cabeça para ela dizer que não aceitava aquele presente, que não queria – ah! e você insistindo assim me magoa e me aborrece... Ele ouvia forçando a tampa e desatarraxando aquela extremidade. Quando teve na mão direita o vidro aberto falou de repente:

“- Depressa, minha flor, depressa, fecha os olhos!

“Maquinalmente, instintivamente ela os fechou e ele derramou-lhe na cabeça o vidro inteiro de perfume. Um cheiro se espalhou no ar tão invasor, tão intenso, tão imperioso, mas tão abafado, e tão surdo, como o das madeiras, só que cortado aqui e ali por gumes acídulos como os do odor das magnólias e das cravinas. Rindo toda ela abriu os olhos passando a mão para evitar que aquela onda escorresse até aos olhos, rindo toda, feliz, espontânea e alegre ao quase inesperado gesto do Egon.” (O Círio Perfeito, 1983, pp. 75-76)

Minas para sempre, carioca amador

Minas Gerais mereceu páginas memoráveis em sua obra:

“Minas é no céu da nossa pátria o prodigioso cometa que vem infalivelmente, passa perto, tudo inflama como sua cauda de fogo e depois vai, perde-se no infinito. (...) Pronto, sumiu, não volta mais: Minas acabou! Engano – ela resiste reconcentra sua matéria reentra no caminho gravitacional. Vem de novo, torna a passar. Vem irregularmente, mas vem. Não falta nem faltará. Veio em 1720 quando Felipe dos Santos foi arrastado num chão de ferro por não sei quantos cavalos-vapor; em 1792 com Tiradentes na ponta duma corda; em 1842, em 1930... Minha ‘Antologia’ dava Minas de novo, quando Joaquim Norberto relatava os mistérios e os terrores da conspiração, quando mostrava Alvarenga, Cláudio, Gonzaga, Toledo e Rolim traçando nossa flâmula e escolhendo sua divisa. ‘Libertas aequo spiritus’? Não! ‘Aut libertas, autnihil’? Também não! ‘Libertas quaeseratamen’? Esta, sim! Ótima! ainda que tarde. Passará o Barbacena, passará a Justiça Régia, passará a Alçada, passarão os grilhões e a mão larga, espalmada, ossuda e salgada do Tiradentes ficará para sempre fazendo sinal de esperar, de aguardar a volta do cometa...” (Chão de Ferro, 1976, p. 45)

“Todas as cidades de Minas podem contar seu caso de aparição. As mais decrépitas são as mais assombradas. Ouro Preto, mais que São João d’el Rei. Diamantina, mais que Sabará. Mariana muito mais que Ouro Preto e Diamantina. O Serro do Frio mais que Mariana. E esses fantasmas viajam com a gente. Emigram para o resto do Brasil com cada mineiro que muda de Minas. Enchi a Rua da Glória com os que trouxe comigo, mais a lembrança dos meus burgos moribundos, dos meus sobradões barrocos, dos meus profetas, das minhas igrejas. Irremediável. Indelével. Minas eterna Minas perene... Como rimos quando falam no projeto de dividi-la em outras unidades federativas. Que importa? Serão gotas separadas de azougue. Encostando, juntam. Para acabar com Minas seria preciso esquartejar cada mineiro. E isso é possível? ‘Quales’ nada!... Ficará sempre um para recomeçar.” (Chão de Ferro, 1976, p. 311)

Mineiros são os melhores interlocutores do país:

“Conversamos não procurando falar o tempo todo mas ouvir metade do tempo. Assim calamos e estamos usando o outro termo do papo que é prestar atenção. É por isso que somos os melhores interlocutores do Brasil. Nunca ficamos no eu eueu insuportável. Gostamos da segundo pessoa e ressalvamos sempre seu amor próprio quando elogiamos terceiros. Mal comparando. Sem desfazer nos presentes. E não chateamos, despedimos, logo: vamossimbora. Até outro dia, o senhor desculpe qualquer coisa.” (Chão de Ferro, 1976, p. 295)

Desvelava também seu fascínio pelo Rio de Janeiro:

“Esse encanto pelo Rio, eu o encontro em cada bairro que morei. (...) Desde meu nascimento subindo e descendo o Caminho Novo – morei vinte anos em Minas. Dois, em São Paulo. Finalmente, cinquenta e três nesta Muy Leal e Heróica. Sou mineiro dos que dizem – mineiro graças a Deus! Mas por minha Mãe tenho origens paulistas, montanhesas, baianas e cearenses. Por meu Pai, maranhenses e outra vez cearenses. Sou um brasileiro integrado na tricomia da raça. Com tantos sangues provincianos de que me orgulho tenho aspiração a mais: quero ser ainda – carioca amador.” (Galo-das-Trevas, 1981, p. 6)

De jabuticabas e rum creosotado

Selecionei ainda passagens pitorescas das memórias de Nava.

Quem viveu a infância no interior de Minas Gerais, conhece o prazer de saborear jabuticabas ao pé das jabuticabeiras. Pedro Nava resgatou a meninice e as árvores no quintal da casa da avó materna Inhá Luísa, em Juiz de Fora:

“Eram ‘hors-concours’, eram gigantescas. Tinham tratamento o ano inteiro. Poda especial. Galho seco catado. Adubo de todo o restolho da cozinha que ia para o redor de suas raízes, de mistura com estrume. As folhas e jabuticabas que caíam, as cascas e os caroços das que eram chupadas durante as ‘barrigadas’ eram varridas para junto do tronco, ali fermentavam, destilavam o resíduo que entrava terra adentro com a água das chuvas. Esses tratos faziam das árvores da Inhá Luísa verdadeiros fenômenos da terra de promissão. Quando era tempo, as frutas negras e lustrosas se comprimiam desde rente ao chão. Tronco e galhos ficavam parecendo cabeças cheias de cachos noturnos, como os da prima Crisólita, como de minha tia Risoleta, como os de São Filipe Apóstolo no plano inferior da ‘Transfiguração’ do Rafael, da Pinacoteca do Vaticano.” (Balão Cativo, 1973, pp. 25-26)

Desfiou seu humor obsceno na transcrição de trovinha sobre parentes de Juiz de Fora, na primeira década do século 20 (Balão Cativo, 1973, p. 32):

“Estas são aquelas Souzas,
Parentas daqueles Alvas,
Que gostam daquelas cousas,
Que têm as cabeças calvas...”.

Rememorava saudoso os bondes do Rio, no início do século 20 (Balão Cativo, 1973, pp. 25-26):

“Saudade dessas idas à cidade com tio Salles... Saudade do Rio Velho, do Muda, do Tijuca em que voltávamos para casa ao calor da tarde. Saudade do bonde cheio de anúncios. Lá estava o de que eu gosto mais.

“‘Veja ilustre passageiro,
O belo tipo faceiro,
Que o senhor tem ao seu lado.
E entretanto acredite,
Quase morreu de bronquite!
Salvou-o o RUM CREOSOTADO!’”

Em Beira-Mar, conta que o ex-governador mineiro Milton Campos tinha pavor de viajar de avião. Certa vez, voando durante uma tormenta, a aeromoça perguntou se estava com falta de ar. Milton respondeu:

- O que estou é com falta de terra.

Memória e futuro

Para concluir, a relevância da obra memorialística é exaltada pela notável historiadora mineira Lucilia de Almeida Neves Delgado (Aldeia Universal, 14.05.2011):

“São múltiplas as possibilidades de diálogo da história com a memória, pois ambas visitam o passado a partir do presente. A história é construção de conhecimento sobre o tempo pretérito. Já a memória nutre vivências individuais ou coletivas com lembranças ou esquecimentos. Inúmeros objetos ou lugares da memória, como fotografias, móveis, músicas, revistas, jornais, filmes, museus, edificações, monumentos, cartas e literatura, tornam-se, não raras vezes, fontes especiais para elaboração do saber histórico.

“A literatura, quando instruída pela memorialística, é esteio inesgotável, tanto para o registro de experiências, como para expressão de características de tempos históricos específicos.”

Arremata Afonso Arinos de Melo Franco (Afonso Arinos na UnB, 1981, p. 24) com a influência das gerações antigas sobre as gerações mais jovens:

“Eu tenho esperança de que essa nossa experiência, meditada, estudada, criticada, mais compreendida, será o elemento com que vocês vão contar no futuro para enfrentar os outros problemas que se denunciam no nosso horizonte, problemas que eu não consigo ainda desvendar no mistério do amanhã, mas que consigo apreender pela sua espantosa realidade.

“(...) O que vale é explicar, é entender por que esses homens de 60 anos para cima viveram, sofreram, experimentaram, enfrentaram o desconhecido e como elaboraram, como compreenderam, como disciplinaram, como sintetizaram os elementos díspares dessas modificações e confundiram-nas num amálgama nacional, ao mesmo tempo retensivo do que é necessário ser retido no nosso País, para que ele não exploda numa série de faíscas inoperantes de conflitos sem solução, mas que não cesse o caminho para o desenvolvimento e as transformações do futuro.”


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Afonso Arinos na UnB: Conferências, comentários e debates de um Seminário realizado de 07 a 09 de abril de 1981. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981.

Arquivo Pedro Nava, acervo de Pedro Nava na Casa de Rui Barbosa; disponível em http://pedronava.clientes.tecnopop.com.br/linha.php, captado em 06.06.2011.

DaMATTA, Roberto, A fonte da juventude, jornal O Estado de S. Paulo, edição de 08.06.2011, caderno Cultura.

DELGADO, Lucilia de Almeida Neves, Aldeia Universal, jornal Estado de Minas, Belo Horizonte, edição de 14.05.2011, caderno PensarBrasil.

LE MOING, Monique. A Solidão Povoada – Uma Biografia de Pedro Nava. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.

NAVA, Pedro. Balão Cativo – Memórias 2. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.

___________ Baú de Ossos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 6ª Ed., 1983.

___________ Beira-Mar – Memórias 4. Rio de Janeiro: José Olympio, 1978.

___________ Chão de Ferro – Memórias 3. Rio de Janeiro: José Olympio, 2ª ed., 1976.

___________ Galo-das-Trevas – Memórias 5. Rio de Janeiro: José Olympio, 3ª ed., 1981.

___________ O Círio Perfeito – Memórias 6. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 3ª ed., 1983.

PROUST, Marcel. No Caminho de Swann. São Paulo: Abril Cultural, trad. Mário Quintana, 1982.

SKIDMORE, Thomas. Brasil: De Getúlio a Castelo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 6ª ed., 1979.

VENTURA, Zuenir. Minhas Histórias dos Outros. São Paulo: Planeta, 2005.

NOTA DO AUTOR: O exemplar de Beira-Mar, quarto volume das memórias de Pedro Nava, extraviou-se em uma das muitas mudanças que a carreira de magistrado me impôs. Todavia, conservei os trechos aqui citados em anotações de meus arquivos, embora sem menção às páginas da obra das quais foram transcritos.

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