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Tipo: Artigos / Cartilhas / Livros / Teses e Monografias / Pesquisas / Personagens Urbanos / Diversos

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Machado, o mito e o homem . Rogério Medeiros Garcia de Lima

Descrição

Rogério Medeiros Garcia de Lima/Sobre o autor e outros artigos de sua autoria
(Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais; este ensaio foi publicado à revista MagisCultura, Associação dos Magistrados Mineiros, Belo Horizonte-MG, nº 7, abril 2012, pp. 4-11)

“Em certa casa da Rua Cosme Velho
(que se abre no vazio) venho visitar-te; e me recebes na sala trastejada com simplicidade
onde pensamentos idos e vividos perdem o amarelo de novo interrogando o céu e a noite”

(Carlos Drummond de Andrade, A um bruxo, com amor).

Machado de Assis é reputado por muitos o maior escritor brasileiro. Mulato de origem pobre, que nunca freqüentou a universidade, foi um verdadeiro “aristocrata das letras” (TEIXEIRA, Aristocrata das letras, 2012). Érico Veríssimo o considerava “nosso enigma literário mais intrigante” (1996, p. 69). O apelido “Bruxo do Cosme Velho” - conferido a partir do famoso poema de Carlos Drummond de Andrade - expressou o gigantismo do mito criado em torno do fundador da Academia Brasileira de Letras. Contudo, subjaz, à sombra do mito, o homem Joaquim Maria.

Este ensaio abordará concisamente a vida e a obra de Machado de Assis, edificante exemplo de cultura e humanidade.

I – A vida de Machado de Assis

Joaquim Maria Machado de Assis nasceu no Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1839. Era filho do mulato Francisco José de Assis, pintor de paredes, e da portuguesa Maria Leopoldina. Perdeu a mãe ainda pequeno. O pai casou-se novamente com D. Maria Inês. Francisco faleceu pouco tempo depois.

O menino cresceu, no Morro do Livramento, em companhia da madrasta, que substituiu em zelo e carinho os pais biológicos falecidos. Lavadeira e doceira, Maria Inês encarregava o enteado de vender balas e doces na porta dos colégios freqüentados por crianças abastadas. Joaquim Maria foi, enfim, um moleque de morro, moreno, magro, franzino e doentio. Era gago e sofria esporádicos ataques de epilepsia.

Desde a infância, Machado de Assis teve de lutar pela sobrevivência. Trocou a instável venda de doces por empregos mais seguros e melhor remunerados. Era inteligente e esforçado: mesmo sem haver freqüentado escolas regulares, aproximou-se de intelectuais e jornalistas, que lhe deram as primeiras oportunidades na vida.

Machado encontrou a proteção de Paula Brito, dono de uma tipografia e livraria, que publicou um soneto do neófito escritor na “Marmota Fluminense”. Dois anos depois, o mesmo Paula Brito contratou o protegido para trabalhar em sua loja. Machado corrigia originais e fazia revisão de textos. Nas horas vagas, era caixeiro e vendia livros.

A presença constante no ambiente da livraria facilitou a Machado contatos úteis com pessoas importantes. Abriram-lhe os horizontes e lhe deram chance de prosseguir a publicação de seus escritos em vários jornais e revistas. Germinava o futuro autor de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”.

Machado de Assis casou-se, em 1869, com a portuguesa Carolina Xavier, após sobrepujar o preconceito racial da família da noiva. Apaixonado, o casal viveu feliz, por mais de três décadas, no confortável casarão do bairro carioca do Cosme Velho. Ambos apreciavam a vida doméstica e Carolina auxiliava o esposo nos afazeres literários.

Carolina faleceu em 1904. Abalado, o viúvo dedicou-lhe belo soneto na abertura do livro “Relíquias de Casa Velha”.

Machado foi escritor prolífico. Escreveu romances, contos, críticas literárias, peças teatrais e crônicas.

Além de escritor, foi destacado funcionário público, ocupação que lhe garantia a sobrevivência e tranqüilidade para exercitar a literatura.

Era muito polido, tímido e conservador. Possuía hábitos rotineiros, notadamente o convívio com intelectuais e pessoas famosas. Freqüentava a célebre “Livraria Garnier”, na capital fluminense, onde se sentava em uma cadeira e discutia com circunstantes literatura e outros assuntos.

Ajudou a fundar a Academia Brasileira de Letras, da qual foi aclamado presidente perpétuo.

Faleceu em 1908, na cidade onde nasceu e viveu. Expirou cercado de amigos, entre os quais personalidades de renome. O falecimento foi notícia nacional e o corpo foi velado na sede da Academia Brasileira de Letras. Rui Barbosa proferiu discurso de homenagem póstuma.

Machado de Assis sobrevive até a contemporaneidade, por meio de suas obras literárias magistrais.

II – A obra de Machado de Assis

A vasta e variada produção literária de Machado de Assis abrange poesia, crônica, crítica literária, crítica teatral, teatro, conto e romance (PAES e MASSAUD, 1967, p. 40). Começou a escrever na adolescência, numa época em que o Romantismo ainda fazia adeptos. Foi influenciado por essa corrente literária, assim descrita por Alfredo Bosi (1981, pp. 100-101):

“Segundo a interpretação de Karl Mannheim, o Romantismo expressa os sentimentos dos descontentes com as novas estruturas: a nobreza, que já caiu, e a pequena burguesia que ainda não subiu: de onde, as atitudes saudosistas ou reivindicatórias que pontuam todo o movimento. (...)

“Apesar das diferenças de situação material, pode-se dizer que se formaram em nossos homens de letras configurações mentais paralelas às respostas que a inteligência européia dava a seus conflitos ideológicos.

“Os exemplos mais persuasivos vêm dos melhores escritores. O romance colonial de Alencar e a poesia indianista de Gonçalves Dias nascem da aspiração de fundar em um passado mítico a nobreza recente do país, assim como – ‘mutatis mutandis’ – as ficções de W. Scott e de Chateaubriand rastreavam na idade Média feudal e cavaleiresca os brasões contrastados por uma burguesia em ascensão. De resto, Alencar, ainda fazendo ‘romance urbano’, contrapunha a moral do homem antigo à grosseria dos novos-ricos; e fazendo romance regionalista, a coragem do sertanejo às vilezas do citadino. (...)

“Como os seus ídolos europeus, os nossos românticos exibem fundos traços de defesa e evasão, que os leva a posições regressivas: no plano da relação com o mundo (retorno à mãe-natureza, refúgio no passado, reinvenção do bom selvagem, exotismo) e no das relações com o próprio ‘eu’ (abandono à solidão, ao sonho, ao devaneio, às demasias da imaginação e dos sentidos). Para eles caberia a palavra do Goethe clássico e iluminista, que chamava a esse Romantismo ‘poesia de hospital’”.

Nessa primeira fase, a produção de Machado de Assis vem contaminada de “tipismos românticos” (PAES e MASSAUD, 1967, p. 40). Contudo, a contaminação não sufoca o visível despertar daquilo tudo que acabou fazendo dele o grande escritor dos anos seguintes. Nesse período publicou “Crisálidas” (1884), “Contos Fluminenses” (1870), “Os Deuses de Casaca” (1866), “A Mão e a Luva” (1874), “Ressurreição” (1872), “Helena” (1876) e “Iaiá Garcia” (1878).

A segunda fase, iniciada com a publicação de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), representa relativa adesão ao “credo realista” (PAES e MASSAUD, 1967, p. 40).

Volta à cena Alfredo Bosi para descrever o Realismo (1981, pp. 185-186):

“No plano da invenção ficcional e poética, o primeiro reflexo sensível é a descida de tom no modo de o escritor relacionar-se com o fulcro de sua obra. O liame que se estabelecia entre o autor romântico e o mundo estava afetado de uma série de mitos idealizantes: a natureza-mãe, a natureza-refúgio, o amor-fatalidade, a mulher-diva, o herói-prometeu, sem falar na aura que cingia alguns ídolos como a ‘Nação’, a ‘Pátria’, a ‘Tradição’ etc. O romântico não teme as demasias do sentimento nem os riscos da ênfase patriótica; nem falseia de propósito a realidade, como anacronicamente se poderia hoje inferir; é a sua forma mental que está saturada de projeções e identificações violentas, resultando-lhe natural a mitização dos temas que escolhe. Ora, é esse complexo ideo-afetivo que vai cedendo a um processo de crítica na literatura dita ‘realista’. Há um esforço, por parte do escritor anti-romântico, de acercar-se impessoalmente dos objetos, das pessoas. E uma sede de objetividade que responde aos métodos científicos cada vez mais exatos nas últimas décadas do século.

“Os mestres dessa objetividade seriam, ainda uma vez, os franceses: Flaubert, Maupassant, Zola e Anatole, na ficção; os parnasianos, na poesia; Comte, Taine e Renan, no pensamento e na História. Em segunda plana, os portugueses, Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão e Antero de Quental, que tratavam em Coimbra uma luta paralela no sentido de abalar velhas estruturas mentais. No caso excepcional de Machado de Assis, foi a busca de um veio humorístico que pesou sobre a sua eleição de leituras inglesas.

“O distanciamento do fulcro subjetivo (que já se afirmava na frase de Théophile Gautier: ‘sou um homem para quem o mundo exterior existe’) é a norma proposta ao escritor realista. A atitude de aceitação da existência tal qual ela se dá aos sentidos desdobra-se na cultura da época” (grifos no original).

Eça de Queirós acentuava (PROENÇA FILHO, 1969, p. 207):

“O Romantismo era a apoteose do sentimento; o Realismo é a anatomia do caráter. É a crítica do homem. É a arte que nos pinta a nossos próprios olhos – para nos conhecermos, para que saibamos se somos verdadeiros ou falsos, para condenar o que houver de mau na nossa sociedade”.

Machado de Assis encontrou no Realismo atmosfera propícia à exaltação e manifestação de seu talento. Amadureceu todas as suas virtualidades. Recebeu influência que correspondia às tendências de seu espírito. No gosto da análise psicológica, pôs-se à margem de ortodoxias asfixiantes e criou, nesse período, a obra original e pessoal que lhe perpetuou o nome (PAES e MASSAUD, 1967, p. 40):

“Pôs-se acima das estéticas, tornou-se por si só uma ‘ilha’ estética, e procurou a compreensão do Homem como essência e não como existência. A sondagem psicológica, atingindo as profundezas do subconsciente e apelando para o auxílio da memória, aproxima-o do romance simbolista e faz dele um pré-proustiano. Alia-se a tudo isso forte pendor para as grandes abstrações, para as ‘situações’ universais, realizadas com ironia e humor, que revelam transfiguradamente os aspectos tragicômicos da condição humana. Desse universalismo de fundas raízes na realidade brasileira decorre a posição de primeira plana que ocupa em nossa literatura, a que se junta o superior exemplo de intelectual que deixou para os vindouros.

“O melhor de sua obra produziu-o na segunda fase de sua carreira, muito embora as criações anteriores denotem um nítido aperfeiçoamento das matrizes românticas a que estavam filiadas. Em lugar de relevo, colocam-se seus contos e romances, em ordem descendente: Machado de Assis foi, antes de tudo, um contista, e contista modelar ainda hoje, apesar da metamorfose sofrida pela ‘fôrma’ desde os fins do século passado”.

Afrânio Coutinho, entre as diversas qualidades que apreciava em Machado, destacava “a maneira pela qual desenvolvia, em torno dos assuntos, considerações filosóficas mescladas de humorismo, ou a moralidade de suas histórias” (Machado de Assis – Obra Completa, v. II, nota introdutória).

Manuel Bandeira identificava no autor de “Dom Casmurro” uma escrita que parece passada a limpo: “não há nunca um excesso, um desleixo” (MONTELLO, 1997, contracapa). E Josué Montello (1997, pp. 17-18) comparava-o ao célebre escritor francês Honoré de Balzac:

“É sabido que Balzac – a quem se atribui ter aumentado o registro civil com os seus personagens – acreditava mais nesses seres imaginados do que naqueles que lhe estendiam a mão. (...)

“Como deixar de identificar, na vasta galeria de personagens machadianos, aqueles que vieram da realidade para a ficção, ou os que, supostamente imaginados, encontrariam cá fora os seus modos naturais? O Bento, a Capitu, o Rubião, o Palha, o Tio Cosme, para apenas apanhar alguns exemplos na multidão, são seres vivos que hão de ter tido os seus modelos. Ou que, com o passar do tempo, e o sopro da fantasia, naturalmente se compuseram na imaginação do escritor, para exprimir contingências humanas”.

Critica-se em Machado suposta indiferença em relação às questões políticas, como apontava, por exemplo, Érico Veríssimo (1996):

“Não participou da propaganda republicana, como não participou da batalha pela abolição. Era um puro homem de letras que não se importava com política ou problemas sociais”.

No entanto, o autor de “Quincas Borba” é defendido por Mario Matos (Machado de Assis, Contador de Histórias, p. 23):

“Temos defendido Machado de Assis da coima de ter sido, como artista, indiferente às questões políticas e sociais que se agitaram no Brasil. Não foi tanto assim. Em seus contos, vemos o problema da escravidão tratado por maneira comovente em ‘O Caso da Vara’, me ‘Pai Contra Mãe’, nos quais o bárbaro dos costumes aparece ao vivo. Há, aqui, também a sátira política em ‘Sereníssima República’, ‘O Caso do Bonzo’ e ‘Papéis Velhos’. Quanto ao primeiro, o autor explica, em nota final do volume (‘Papéis Avulsos’), que se trata de sentido restrito: ‘Este escrito, publicado primeiro na ‘Gazeta de Notícias’, como outros do livro, é o único em que há um sentido restrito: as nossas alternativas eleitorais. Creio que terão entendido isso mesmo, através de forma alegórica”.

Igualmente Rina Sirihal (A Obra de Machado: Memórias Póstumas de Brás Cubas, 1970):

“Machado transferiu suas ambições políticas para as personagens dos contos e romances, que viria a escrever até o fim da vida; faz sátira social e crítica dos maus costumes políticos dominantes; foi na qualidade específica de escritor, fazendo a crítica política da sociedade brasileira, que Machado de Assis ‘participou’, efetiva e excelentemente, da vida política do país. (...)

“Esse o processo permanente de Machado: a destruição da personagem, a revelação da má argila de que somos feitos. Sua mensagem, como romancista, é de pessimismo, de descrença na validade da condição humana”.

Filio-me aos defensores de Machado. Para ser “político”, um escritor não precisa ser filiado a partido ou participar de passeatas. O “Bruxo do Cosme Velho” exercia sutil crítica aos maus costumes brasileiros. Exemplifico com passagem do romance “Esaú e Jacó”, onde narra a hesitação de Custódio, dono da “Confeitaria do Império”, que mandara pintar nova placa para seu estabelecimento. A cena se desenrola em diálogo do confeiteiro com o Conselheiro Aires:

“Na véspera, tendo de ir abaixo, Custódio foi à Rua da Assembléia, onde se pintava a tabuleta. Era já tarde; o pintor suspendera o trabalho. Só algumas das letras ficaram pintadas, - a palavra ‘Confeitaria’ e a letra ‘d’. a letra ‘o’ e a palavra ‘Império’ estavam só debuxadas a giz. Gostou da tinta e da cor, reconciliou-se com a forma, e apenas perdoou a despesa. Recomendou pressa. Queria inaugurar a tabuleta no domingo.

“Ao acordar de manhã não soube logo do que houvera na cidade, mas pouco a pouco vieram vindo as notícias, viu passar um batalhão, e creu que lhe diziam a verdade os que afirmavam a revolução e vagamente a república. A princípio, no meio do espanto, esqueceu-lhe a tabuleta. Quando se lembrou dela, viu que era preciso sustar a pintura. Escreveu às pressas um bilhete e mandou um caixeiro ao pintor. O bilhete dizia só isto: ‘Pare no D.’ Com efeito, não era preciso pintar o resto, o que seria perdido, nem perder o princípio, que podia valer. Sempre haveria palavra que ocupasse o lugar das letras restantes. ‘Pare no D.’”.

Não obstante, o pintor não leu o bilhete a tempo e concluiu a pintura da tabuleta “Confeitaria do Império”.

“Custódio confessou tudo o que perdia no título e na despesa, o mal que lhe trazia a conservação do nome da casa, a impossibilidade de achar outro, um abismo, em suma. Não sabia que buscasse; faltava-lhe invenção e paz de espírito. Se pudesse, liquidava a confeitaria. E afinal que tinha ele com política? Era um simples fabricante e vendedor de doces, estimado, afreguesado, respeitado, e principalmente respeitador da ordem pública...

- Mas o que é que há? Perguntou Aires...
- A república está proclamada.
- Já há governo?
- Penso que já; mas diga-me V. Exª: ouviu alguém acusar-me jamais de atacar o governo? Ninguém. Entretanto... Uma fatalidade! Venha em meu socorro, Excelentíssimo. Ajude-me a sair deste embaraço. A tabuleta está pronta, o nome todo pintado. – ‘Confeitaria do Império’, a tinta é viva e bonita. O pintor teima em que lhe pague o trabalho, para então fazer outro. Eu, se a obra não estivesse acabada, mudava de título, por mais que me custasse, mas hei de perder o dinheiro que gastei? V. Exª crê que, se ficar ‘Império’, venham quebrar-me as vidraças?
- Isso não sei.
- Realmente, não há motivo; é o nome da casa, nome de trinta anos, ninguém a conhece de outro modo...
- Mas pode pôr ‘Confeitaria da República’...
- Lembrou-me isso, em caminho, mas também me lembrou que, se daqui a um ou dous meses, houver nova reviravolta, fico no ponto em que estou hoje e perco outra vez o dinheiro
- Tem razão... Sente-se.
- Estou bem.
- Sente-se e fume um charuto.

“Custódio recusou o charuto, não fumava. Aceitou a cadeira. Estava no gabinete de trabalho, em que algumas curiosidades lhe chamaram atenção, se não fosse o atordoamento do espírito. Continuou a implorar socorro do vizinho. S. Exª, com a grande inteligência que Deus lhe dera, podia salvá-lo. Aires propôs-lhe um meio-termo, um título que iria com ambas as hipóteses, - ‘Confeitaria do Governo’. (...)

“Curvou-se, recuou e saiu. Aires foi à janela para vê-lo atravessar a rua. Imaginou que ele levaria da casa do ministro aposentado um lustre particular que faria esquecer por instantes a crise da tabuleta. Nem tudo são despesas na vida, e a glória das relações podia amaciar as agruras deste mundo. Não acertou desta vez. Custódio atravessou a rua, sem parar nem olhar para trás, e enfiou pela confeitaria dentro com todo o seu desespero”.

III – Frases de Machado de Assis

Machado de Assis foi inigualável fraseador. Selecionei, em pequena amostragem, algumas das famosas frases que elaborou.

Em Memórias Póstumas de Brás Cubas:

“Ao verme, que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança, estas Memórias Póstumas”.

“Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. (...)

“A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se não te agradar, pago-te com um piparote, e adeus”.

“Quem não é um pouco pachola neste mundo?”.

“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

Em Dom Casmurro:

“Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, ‘olhos de cigana oblíqua e dissimulada’. (...) Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade do estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me” (do personagem Bentinho, sobre os olhos da namorada - e futura esposa - Capitu).

“E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve!”.

Em Esaú e Jacó:

“Não é a ocasião que faz o ladrão (...); o provérbio está errado. A forma exata deve ser esta: ‘A ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito’”.

Em Memorial de Aires:

“Tudo é possível debaixo do sol - e a mesma coisa sucederá acima dele - Deus sabe”.

“Não há alegria pública que valha uma boa alegria particular”.

Em O Alienista:

“A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente”.

Em Quincas Borba, o protagonista explica a Rubião o que é o princípio de “Humanitas”, onde assinala “o caráter conservador e benéfico da guerra”:

“Supõe tu um campo de batatas e duas tribos famintas. As batatas apenas chegam para alimentar uma das tribos que assim adquire forças para transpor a montanha e ir à outra vertente, onde há batatas em abundância. (...)

“Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor, as batatas”.

Da crônica Rosas e borboletas (1893, cf. MONTELLO, 1997):

“É meu velho costume levantar-me cedo e ir ver as belas rosas frescas murtas, e as borboletas que de todas as partes correm a amar no meu jardim. Tenho particular amor às borboletas. Acho nelas algo das minhas idéias, que vão com igual presteza, senão com a mesma graça”.

Da crônica O que sobrou (1893, cf. MONTELLO, 1997):

“Inverdade é o mesmo que mentira, mas mentira com luva de pelica. Vede bem a diferença. Mentira só, nua e crua, dada na bochecha, dói. Inverdade, embora dita com energia, não obriga a ir aos queixos da pessoa que a profere”.

Da crônica O panarício (1893, cf. MONTELLO, 1997), onde o protagonista, na primeira pessoa, narra sonho em que se transformara num panarício dolorido, que incomodava uma moça que não correspondia aos seus “suspiros”:

“Deixem-me sonhar, se é sonho. A realidade é o luto do mundo, o sonho é a gala. (...)

“Questão de amores. Eu suspirava por uma moça, que fugia aos meus suspiros”.

Da crônica Recepções de ministérios e de partidos (1895, cf. MONTELLO, 1997):

“O silêncio era o conselho do sábio. Diz um provérbio árabe que ‘da árvore do silêncio pende o seu fruto, a tranqüilidade.’ Diz mal ou diz pouco este provérbio, porque a prosperidade é também um fruto do silêncio”.

Da crônica Jantar da Revista Brasileira (1896, cf. MONTELLO, 1997):

“A impunidade é o colchão dos tempos; dormem-se aí sonos deleitosos. Casos há em que se podem roubar milhares de contos de réis... e acordar com eles na mão”.

Da crônica A fuga dos doidos (1896, cf. MONTELLO, 1997):

“Assim vivia, e não vivia mal. A prova de que andava certo é que não me sucedia o menor desastre, salvo a perda da paciência; mas a paciência elabora-se com facilidade – perde-se de manhã, já de noite se pode sair com dose nova”.

IV – O legado de Machado de Assis

Da pobreza à fama, eis a trajetória de Machado de Assis. Como lembrava Érico Veríssimo (1996), ele publicou “Memórias Póstumas de Brás Cubas” aos trinta e seis anos de idade, vivia casamento feliz com a esposa Carolina e tinha boa posição como funcionário do governo:

“Daquele livro em diante, sua fama aumentou de modo constante e quando chegou aos cinqüenta Joaquim Maria, conhecido por todo o país como Machado de Assis, era a figura mais distinguida e respeitada da cena literária brasileira. Era polido, calmo e modesto. Costumava ir, nos fins de tarde, depois de sair do escritório, à livraria Garnier, ponto de encontro tradicional dos literatos. Os jovens escritores vinham a ele em busca de encorajamento. Os mais famosos homens de letras da época geralmente apreciavam e admiravam Machado de Assis, que tinha a reputação de ser um marido exemplar bem como um funcionário público de primeira categoria, um homem de hábitos conservadores, muito estrito em questões de horário e método, um tanto frio demais nas maneiras e extremamente tímido e sensível. Os críticos e leitores que o conheciam pessoalmente mal podiam acreditar que escrevera aqueles livros tão cheios de personagens e acontecimentos, os quais, a julgar pelas aparências, eram a própria negação da vida e dos princípios do autor”.

As fotografias, que sobreviveram ao tempo, mostram um Machado sóbrio, de óculos sem aro, barbicha, costeletas discretas e penteadas, terno e colete.

Os amigos íntimos o chamavam de “Machadinho”. Tradicionalmente sua vida é narrada de modo linear (Machado de Assis – Literatura Comentada, p. 3):

“Nem grandes travessuras de criança, nem grandes aventuras de rapaz, nem mesmo grandes amores. Paixão grande de verdade, só por Carolina, recebida como esposa em matrimônio sacramentado. Vida perfeita, portanto, para uma biografia de escola, onde boêmios e não boêmios ganham asas de anjo, onde todos ficam bem-comportados, obedientes, estudiosos”.

No entanto, a recente publicação da correspondência de Machado de Assis, em livros editados pela Academia Brasileira de Letras, revela traços destoantes do perfil mítico até agora delineado. O escritor e acadêmico Sergio Paulo Rouanet, coordenador das edições, afirma: “O Machado dessas primeiras cartas é muito diferente da convenção. No lugar da figura ensimesmada de casaca preta, surge um boêmio namorador” (TEIXEIRA, Machado, o moço, 2008). Aventuras amorosas, aliás, teria vivido também na maturidade e depois de casado (GASPARI, A interminável CPI da Capitu, 2006; GIRON, Machado de Assis (1839-1908) teve uma amante?, 2012).

Nada que desmereça nosso grande escritor. Ao contrário, um Machado feito de carne e osso cresce em admiração aos nossos olhares contemporâneos.

Afinal, o filósofo Heráclito desdissera Parmênides (FRANCA, 1978, p. 40):

“Parmênides afirmara a imutabilidade do ser. Heráclito opõe-lhe a mutabilidade de todas as coisas, (...) tudo se acha em perpétuo fluxo, a realidade está sujeita a um vir-a-ser contínuo”.

Em outras palavras (DROIT, 2011, p. 84):

“Tudo muda sem cessar. Tudo devém, tudo é móvel, sempre prestes a transformar-se. ‘Tudo flui’, diz Heráclito (em grego: ‘panta rhei’), tudo cede – de maneira permanente, contínua, indefinida. Nada no mundo se mantém fixo, estável, eterno. No oposto do pensamento de Parmênides e dos eleatas, que centram a sua reflexão sobre o imutável, o imóvel, o Ser – que, ele, nunca muda, enquanto o resto devém -, Heráclito defende que nada há que não seja mutável e que não flua.

“É neste sentido que é preciso entender a célebre fórmula: ‘Não te banharás duas vezes no mesmo rio’. Ela significa, evidentemente, que o rio nunca é o mesmo: de um instante para o outro, a água que o constitui num dado momento desaparece e outra a substitui. Não é nunca, portanto, no mesmo rio que te banharás. Mas também se poderá interpretar que tu próprio, o banhista, nunca és o mesmo: de um momento para o outro, aquilo a que chamas ‘eu’ modifica-se. O rio flui, o banhista também. Portanto,nunca se repetirá o mesmo banho, o encontro do mesmo banhista e do mesmo rio”.

O estereótipo de uma vida linear sugere frieza e monotonia. O genial Oscar Niemeyer, real e metaforicamente, rebelou-se contra o ângulo reto e optou pelas curvas. Na sua arrojada arquitetura, desprezou “deliberadamente o ângulo reto tão louvado e a arquitetura racionalista feita de régua e esquadro, para penetrar nesse mundo de curvas e formas novas que o concreto armado oferece” (NIEMEYER, 1998, p. 261).

Com Guimarães Rosa (Grandes Sertões: Veredas, p. 20), enfim, figura-se o mais recentemente descoberto legado de Machado de Assis:

“O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isso: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão”.

BIBLIOGRAFIA

BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 3ª ed., 1981.

DROIT, Roger-Pol. Voltar a Ler os Clássicos. Lisboa: Temas e Debates, trad. Pedro Vidal, 2011.

FRANCA, Padre Leonel. Noções de História da Filosofia. Rio de Janeiro: Agir, 22ª ed., 1978.

GASPARI, Elio. A interminável CPI da Capitu, jornal Folha de São Paulo, edição de 15.02.2006, p. A-10.

GIRON, Luís Antônio. Machado de Assis (1839-1908) teve uma amante?, jornal O Globo, Rio de Janeiro, edição de 17.01.2012, seção de Opinião.

Machado de Assis – Literatura Comentada. São Paulo: Abril Educação, org. Marisa Lajolo, 1980.

Machado de Assis – Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar Ltda., org. Afrânio Coutinho, 3 vols., 1959.

MATOS, Mário. Machado de Assis, Contador de Histórias, in Machado de Assis – Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora José Aguilar Ltda., org. Afrânio Coutinho, 3 vols., 1959, vol. II, pp. 11-24.

MONTELLO, Josué. Memórias Póstumas de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.

PAES, José Paulo e MASSAUD, Moisés (organizadores). Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1967, p. 40.

PROENÇA FILHO, Domício. Estilos de Época na Literatura. Rio de Janeiro: Editora Liceu, 2ª ed., 1969.

ROSA, João Guimarães. Grandes Sertões: Veredas. São Paulo: Abril Cultura, 1983.

SIRIHAL, Rina Bogliolo. A Obra de Machado: Memórias Póstumas de Brás Cubas, in MACHADO DE ASSIS, Memórias Póstumas de Brás Cubas. Belo Horizonte: Editoria Itatiaia, 1970, introdução.

TEIXEIRA, Jerônimo. Aristocrata das letras, revista Veja, São Paulo, Editora Abril, edição de 18.01.2012, pp. 120-121.

_______. Machado, o moço, revista Veja, São Paulo, Editora Abril, edição de 03.12.2008, pp. 130-134.

VERÍSSIMO, Érico. Breve História da Literatura Brasileira. São Paulo: Globo, 3ª ed., 1996.

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