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Tipo: Artigos / Cartilhas / Livros / Teses e Monografias / Pesquisas / Personagens Urbanos / Diversos

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Padre Vieira, imperador da língua portuguesa . Rogério Medeiros Garcia de Lima

Descrição

Rogério Medeiros Garcia de Lima/Sobre o autor e outros artigos de sua autoria

Desembargador do TJMG; artigo publicado à revista MagisCultura, Associação dos Magistrados Mineiros, Belo Horizonte-MG, nº 24, setembro de 2021, p. 22-31.

Este artigo aborda a vida e obra do Padre Antônio Vieira, grande vulto da história luso-brasileira.

Consagrou-se como missionário, pregador, pensador e político.

O poeta português Fernando Pessoa o considerava “imperador da língua portuguesa” (1).

No entanto, em 2020 a estátua de Vieira foi vandalizada em Lisboa.

Vivemos tempos estranhos, no Brasil e no mundo. O ódio se espraia – nos lares, escolas, universidades, trabalho, mídia e redes sociais. As pessoas verbalizam e agem sem racionalidade.

Daí a importância de melhor conhecer o notável jesuíta, no contexto da época em que viveu.

Nascimento e infância

Antônio Vieira nasceu em Lisboa, no dia 6 de fevereiro de 1608, em uma casa da Rua dos Cônegos, perto da Sé da capital portuguesa. Era filho de Cristóvão Vieira Ravasco, um santareno de família alentejana, e Maria de Azevedo, lisboeta:

“Apesar dos bons desejos do Padre André de Barros, primeiro biógrafo de Vieira, para lhe nobilitar a família antes de que, por influência do mais ilustre membro dela, D. João IV a tivesse aproximado da nobreza, elevando Cristóvão Ravasco à dignidade de moço da câmara, ela era de modesta burguesia, nem sequer havendo recebido da Fortuna proveitos em suprimento das honras que lhe faltavam. Burguesia modesta e mesclada de sangue africano. O avô de Vieira, criado, como o filho Cristóvão, da Casa dos Condes de Unhão, enamorara-se de uma serviçal mulata da mesma casa, de onde, por tais amores, ambos foram expulsos. O casamento sagrara e fizera esquecer tal turvação”. (2)

Mudança para o Brasil

Em 7 de março de 1609, foi regulamentada a criação do Tribunal da Relação da Bahia. (3) Cristóvão mudou-se para Salvador em 1614, onde assumiu o cargo de escrivão. Trouxe a família em 1618.

Antônio estudou no Colégio dos Jesuítas. A princípio – ele próprio afirmou – não se revelava um aluno inteligente. (4) Segundo o historiador João Lúcio de Azevedo, o menino “compreendia mal, decorava a custo, fazia com dificuldade as composições”. Porém, persistia nos estudos e rezava muito para Nossa Senhora das Maravilhas.

Um dia, enquanto orava, “sentiu como estalar qualquer cousa no cérebro, como uma dor vivíssima, e pensou que morria; logo o que parecia obscuro e inacessível à memória, na lição que ia dar, se lhe volveu lúcido e fixo na retentiva. Deu-se-lhe na mente uma transformação de que tinha consciência. Chegado às classes pediu para argumentar e com pasmo do mestre venceu a todos os condiscípulos”. (5)

Esse episódio se tornou conhecido como o “estalo de Vieira”.

Companhia de Jesus

Vieira ingressou na Companhia de Jesus, como noviço, em 1623. (6)

Os primeiros jesuítas desembarcaram na Bahia em 1549. Até a sua expulsão de Portugal e respectivas colônias, em 1759, pelo Marquês de Pombal, foram uma das forças mais ativas na conquista e colonização do Brasil. Era uma época de intolerância religiosa e etnocentrismo. Vivia-se a Contrarreforma:

“Os jesuítas lutaram contra a escravização dos indígenas, mas o plano de catequização que puseram em prática – e a consequente concentração dos índios em aldeamentos ou ‘missões’ – não apenas resultou em tragédia, em razão dos graves surtos de doenças infecciosas, como facilitou a ação dos escravagistas. Os próprios jesuítas, o padre Nóbrega à frente, tinham escravos e acreditavam na doutrina aristotélica de povos ‘inferiores’. Para defender os nativos, estimularam o tráfico de africanos. Mas quando a paz que tinham firmado com os Tamoio foi rompida pelos portugueses, os padres nada fizeram.

“(Empenharam-se) em submeter os indígenas aos rigores do trabalho metódico, aos horários rígidos, ao latim, e à monogamia. Combateram o canibalismo, a poligamia e o nomadismo – e, assim, acabaram sendo responsáveis pela desestruturação cultural que empurrou para a extinção inúmeras tribos. Por outro lado, foi graças à ação evangélica que a língua e a gramática tupi acabaram sendo registradas e preservadas”. (7)

Decorriam quase trinta anos desde que Martinho Lutero pregara as suas 97 Teses na porta da igreja de Wittenberg, em outubro de 1517:

“Três décadas de perplexidade e inquietude haviam abalado a Igreja Católica Apostólica Romana. A reação se iniciou no inverno de 1545, com a instalação do Concílio de Trento e o recrudescimento da Inquisição. E tão logo a ‘ortodoxia’ do catolicismo se acentuou, qualquer atividade intelectual que buscasse novos ares e maiores liberdades individuais poderia ser vista (ou deliberadamente confundida) com a ‘heterodoxia’ luterana – e duramente reprimida”. (8)

Inácio de Loyola, nascido em 1491, na Espanha, era soldado por herança e vocação. Abandonou a carreira das armas quando, convalescendo de um ferimento recebido na guerra entre Espanha e França, leu sobre vida de Cristo:

“Apesar de manco, tornou-se um peregrino incansável. Em 1539, depois de ter ido à Terra Santa e de ser duas vezes preso pela Inquisição, decidiu fundar a Companhia de Jesus. Estabeleceu um núcleo militarizado para a ordem, que imaginou como um grupo de combate à Reforma Luterana. O Brasil tornou-se a primeira província além-mar da Companhia. Morto em 1557, Loyola foi canonizado em 1622”. (9)

Antônio Vieira foi ordenado sacerdote em 10 de dezembro de 1634:

“Ia encontrar, sob a roupeta inaciana, na cadeira de pregador, nas andanças de político e diplomata, condições que, se nem sempre sem travo de amargas decepções, jamais deixaram de lhe propiciar a plena realização das suas possibilidades. Liberdades de palavra, liberdades de pensamento, liberdades de ação, ninguém no seu tempo as exerceu e gozou mais largas”. (10)

Missionário e professor

Em 1627 – antes, portanto, da ordenação sacerdotal - tornou-se professor de Retórica, em Olinda.

Atuou como missionário junto aos índios, quando já exibia sua aptidão para a escrita e a oratória:

“Compreende-se com que prazer deixaria a cátedra pelas missões, substituiria a palavra que é crepitação inútil de lantejoulas do engenho, pela palavra que é fogo de alma irradiante. Não lhe são necessárias as noções de física ou astronomia do tempo; basta-lhe o contato com a natureza e a capacidade de observação que demonstrará, por exemplo, na admirável descrição dos costumes das tartarugas”. (11)

Foi Visitador da Província, quando pregava aos novos religiosos:

“Procurava transmitir o seu próprio fogo, ainda não apagado, aos jovens que o escutavam.

“Evocava certamente os seus entusiasmos apostólicos de moço, ao dizer:

‘E espero eu dos que saírem deste nosso (Colégio) também real – teólogos, filósofos e humanistas – que, quando chegarem ao Grão-Pará e rio das Amazonas, e virem naquela imensa universidade de almas, espero, digo, do seu espírito e ainda do seu juízo, que, esquecidos das ciências que cá deixam, se apliquem todos à da conversão. Quando o filho de Deus fez a sua missão a este mundo, a que ciência entre todas aplicou a sua sabedoria infinita? – Ad dandam scentiam salutis plebi ejus: À ciência somente da salvação, e essa ensinada não aos grandes do mundo, senão à plebe; aos mais baixos, aos mais despreparados, aos mais pobres, aos mais miseráveis, que são aquelas desamparadas gentes. E à vista deste exemplo verdadeiramente formidável, quem haverá que queira ser graduado em outra ciência?”. (12)

Político

Antônio Vieira sacramentou Portugal como nação eleita para estabelecer o Império de Deus na Terra, com o retorno do Messias. Sacralizou a dinastia dos Bragança e estabeleceu “ponderações agudas e misteriosas entre o ritual católico e a monarquia absoluta, definida como instrumento da divindade”. (13)

Envolveu-se em questões éticas, políticas, econômicas, religiosas e jurídicas, que agitaram interna e externamente a sociedade portuguesa. (14)

Adquiriu fama e poder como pregador da Capela Real, conselheiro e confessor do Rei D. João IV (1640-1656) e da rainha D. Luísa de Gusmão. Ocupava-se fundamentalmente dos temas da Restauração:

“No que se refere ao Brasil, seu maior objetivo é a restauração de Pernambuco, dominado pelos holandeses do Stadtholder Maurício de Nassau”. (15)

Com efeito, dois eventos históricos impactaram a época em que viveu o Padre Vieira: a) a chamada União Ibérica, anexação de Portugal pela Espanha entre 1580 e 1640, e b) as invasões holandesas no nordeste do Brasil, vinculadas à União Ibérica e à guerra de independência que as Províncias Unidas dos Países Baixos moveram contra a Espanha. Houve intensa hostilidade entre os invasores flamengos e os padres jesuítas. (16)

Considerada a vulnerabilidade de Portugal na Europa, o Padre Vieira propôs a D. João IV a transferência do Reino para os trópicos brasileiros. (17) Essa ideia viria a se concretizar em 1808, com a fuga da Família Real Portuguesa para o Brasil durante a invasão da Península Ibérica pelas tropas francesas de Napoleão Bonaparte.

Outra ousada iniciativa de Vieira foi o projeto de assimilação dos judeus em Portugal:

“Amigo e conselheiro do rei João IV, traçou um plano de recuperação econômica do país, baseado no desenvolvimento mercantil, na criação de um banco e de duas companhias comerciais, segundo o modelo holandês. A ideia era suficientemente inovadora para ser combatida pela nobreza receosa da perda de privilégios; mas o que lhe valeu mesmo o ódio de muitos inimigos foi a abolição das distinções entre cristãos velhos e cristãos-novos: na prática, drástica restrição dos poderes da Inquisição”. (18)

Sebastianismo

O sebastianismo é uma antiga crença arraigada na cultura portuguesa. Surgiu após o desaparecimento do rei D. Sebastião, na batalha de Alcácer Quibir, em 1578:

“Sua definição tem desafiado há séculos escritores e historiadores. De forma geral, o sebastianismo esteve associado, desde fins do século XVI, à fé na volta de um rei salvador que viria resgatar o reino português das mãos dos castelhanos e restaurar a honra e a soberania perdidas depois da anexação de Portugal a Castela, em 1580. E, de fato, a difusão e o fortalecimento da crença sebástica, quer na versão das classes letradas, quer nas representações populares, tiveram papel importante na Restauração portuguesa ocorrida em 1640.

“(...) Essa história ou lenda indica duas características essenciais do mito do Encoberto: ele emerge sempre em contextos de crise e de derrota; ele está profundamente marcado pela luta do bem contra o mal e, no caso da Europa cristã, pela expectativa de vencer o anticristo e salvar a humanidade das garras do infiel – no caso, o muçulmano. Além disso, a espera de um rei Encoberto carrega a mensagem nostálgica de retorno a um tempo de gloria, fartura e felicidade”. (19)

Em Trancoso, Gonçalo Anes Bandarra, modesto sapateiro português, escreveu umas trovas que o tempo havia de tornar célebres:

“Era um homem rude (‘próprio para ovelheiros’, diz um auto do Santo Ofício), que se metera a ler a Bíblia em português e mantinha contatos com os cristãos-novos, a quem recorria para que lhe explicassem as passagens que não entendia. Misturando confusas citações da Bíblia, reminiscências de poesia popular tradicional, mitos espanhóis (o Encoberto, a que faz alusão, é um mito ligado à revolta das comunidades espanholas de 1520-1522), profecias que andavam de boca em boca, vestígios de lendas do ciclo arturiano, críticas sociais à corrupção e à prepotência dos grandes, compôs uma espécie de auto pastoril profético, que era inicialmente um protesto contra a doação da vila ao infante irmão do rei.

“(...) A morte de D. Sebastião em condições misteriosas em breve veio dar nova acepção às trovas do sapateiro. O rei morreu durante a batalha, mas ninguém afirmava tê-lo visto morrer, embora muitos o tivessem visto já depois de morto. (...)

“As profecias do Bandarra passaram então a ser lidas com olhos diferentes: o Messias cujo regresso anunciavam era D. Sebastião. O público leitor já não é formado só pelos cristãos-novos, mas por nobres saudosistas. Versões sucessivas foram adaptando a redação ao seu novo sentido, de tal modo que a restauração de 1640 pareceu trazer a confirmação das trovas”. (20)

O sebastianismo foi transplantado para o Brasil:

“Na Ilha dos Lençóis, localizada no litoral do Maranhão, uma das figuras mais cultuadas não é um político que mudou a realidade do local ou um artista de sucesso que divulgou sua terra natal para o Brasil. Jovens e adultos costumam celebrar a presença abstrata do Rei Sebastião, o protetor das terras, mares e areias de Lençóis. Lá, o homem que morreu por Portugal na batalha de Alcácer-Quibir, Marrocos, em 1578, é tido como um pai para os nativos e até aparece para eles, montado em um cavalo, na praia ou nas dunas, mostrando que zela pelo local. Detalhe: na Ilha dos Lençóis, não há equinos. Misturando história com religião e misticismo, os moradores, ou melhor, os Filhos do Rei Sebastião, como se autodenominam, são adeptos do Sebastianismo, mesmo sem saber direito a origem da lenda”. (21)

Em pleno século 21, o Brasil ainda espera um salvador da pátria...

O Quinto Império

O Padre Antônio Vieira era “baluarte ideológico” de D. João IV:

“Transformara o sebastianismo, ou a esperança do regresso de D. Sebastião, no restauracionismo, tentando mover o povo à aceitação do novo monarca, como se fosse este o predito nas profecias”. (22)

Estava convencido da importância do povo português no processo missionário de expansão do Evangelho. Com as grandes navegações, a Cristandade poderia cumprir suas pretensões universais e o Evangelho poderia ser levado a todas as gentes e a todas as raças:

“Na base do messianismo português, dos quais um dos maiores representantes foi o padre Antônio Vieira, encontram-se, segundo a opinião de Raymond Cantel, as esperanças cristãs e judaicas da época, assim como as esperanças políticas truncadas pela perda da independência.

“O messianismo cristão de Vieira, de base milenarista, começa a tomar forma com a Restauração de D. João IV. Convencido do papel histórico de povo português, aceita, sem duvidar, a nova versão do credo nacional, que se adaptava às novas circunstâncias da Restauração e que identificava ‘o encoberto’ com o duque de Bragança.

“Segundo o comum da crítica, Vieira concebeu a ideia de escrever a História do futuro durante as suas viagens diplomáticas a Holanda e, especialmente, nas suas conversações com os rabinos e judeus de Amsterdam, embora, como é sabido, tenha redigido esta obra inacabada durante o processo que a Inquisição moveu contra ele. Esta grande obra profética devia tratar, fundamentalmente, da legitimidade das esperanças na instauração do Quinto Império. A nação portuguesa trazia, para Vieira, o povo eleito para instaurar e dirigir o Império de Cristo na terra, o Quinto Império profetizado por Daniel. Este império, iniciado com o nascimento de Cristo, seria consumado em breve e sucederia ao IV Império, o Romano, que persistia na casa de Áustria.

“Para Vieira, deveria ter essencialmente o caráter que teve em fases anteriores, espiritual e temporal: o poder espiritual estaria representado pelo Sumo Pontífice de Roma e o poder temporal por um príncipe cristão, o rei de Portugal. Este novo estado da Igreja e Reino de Cristo seria perfeito, completo e consumado porque permitiria o encontro e a incorporação das Dez Tribos perdidas de Israel, assim como a conversão de todos os hereges, judeus e pagãos à fé de Cristo”. (23)

Inquisição

Em meio aos conflitos dos jesuítas com colonos no Maranhão, Vieira teve de retornar a Portugal.

O Tribunal do Santo Ofício queria inquiri-lo sobre as profecias baseadas nas Trovas do Bandarra, publicadas em carta para o bispo do Japão:

“(Vieira) estava vencido e derrotado em toda a linha. (...) Em 1663, transferiu-se do Colégio do Porto para o de Coimbra, onde ficou recluso. No final de maio, foi notificado de que devia comparecer ao Tribunal do Santo Ofício. A principal acusação era o fato de tratar as Trovas do Bandarra como texto canônico. Mas havia outras razões, secretas, que se acumulavam desde os tempos de suas primeiras viagens à França e à Holanda. Depois de cinco anos e meio de humilhações, sofrimentos físicos e saúde precária, a sentença foi proferida. Não sairia em auto-de-fé porque se retratara de todos os seus erros, mas teria de ouvir a sentença frente aos inquisidores e outros religiosos e autoridades”. (24)

A sentença o proibiu de pregar e o manteve recluso no colégio. Em 1668, as penas foram perdoadas, exceto a que o vedava tratar de assuntos heterodoxos. Em 1669, Vieira foi para Roma. Em 1675, o papa Clemente IX concedeu-lhe um breve que o livrava do tribunal e o absolvia de todas as restrições e penas. Retornou a Lisboa, mas não foi acolhido pela Corte portuguesa:

“Ainda acreditava ser capaz de influenciar a Corte em favor dos cristãos-novos contra a Inquisição, quarta entidade que, sem ser fome, peste nem guerra, causava calamidades igualmente lastimosas no comum e particular do reino, como escreveu em 1690 ao conde de Castelo Melhor. Mais uma vez, sem sucesso. D. Pedro o ignorou, mantendo-o a distância. Quando voltou para o Brasil, em 1681, era a sétima e última vez que atravessava o Atlântico. (...)

“Em agosto de 1681, o papa restabeleceu a Inquisição em Portugal. Nesse ano e no seguinte, muitos comerciantes cristãos-novos foram presos. Em 1682, D. Pedro patrocinou em Lisboa um grande auto-da-fé, para o qual foram levados prisioneiros de outras cidades de Portugal. Em Coimbra, estudantes arruaceiros queimaram um boneco vestido de jesuíta, declarando que era Vieira, judeu vendido para judeus. Em 1681, ele tinha retornado para a Bahia, ‘deserto’, ‘desterro’, ‘purgatório’, como tantas vezes repete nas cartas que escreveu da Quinta do Tanque, uma chácara onde os jesuítas aclimatavam plantas da África e da Ásia em Salvador. (...)

“Em 1694, em uma carta geral para a nobreza de Portugal, Vieira se havia despedido do grande teatro do mundo. Ressuscitado das cinzas de Coimbra, ainda retocaria a arte de morrer até 17 de julho de 1697, esperando o favor real, que nunca veio”. (25)

Naufrágio

O padre Antônio Vieira atravessou o Oceano Atlântico diversas vezes. As viagens marítimas eram muito arriscadas naquele tempo. Em 1654, depois de proferir o célebre Sermão de Santo Antônio aos Peixes, em São Luís, Maranhão, Vieira partiu para Lisboa. Iria defender, na Corte, os direitos dos indígenas escravizados pelos colonos portugueses:

“Após cerca de dois meses de viagem, já à vista da ilha do Corvo, a Oeste dos Açores, abateu-se sobre a embarcação uma violenta tempestade. Mesmo recolhidas as velas, à exceção do traquete, correndo o navio à capa, uma rajada mais forte arrancou esta vela, fazendo a embarcação adernar a estibordo. Em pleno mar revolto, na iminência do naufrágio, o padre concedeu a todos absolvição geral, bradando aos ventos:

‘Anjos da guarda das almas do Maranhão, lembrai-vos que vai este navio buscar o remédio e salvação delas. Fazei agora o que podeis e deveis, não a nós, que o não merecemos, mas àquelas tão desamparadas almas, que tendes a vosso cargo; olhai que aqui se perdem connosco’.

“Após essa exortação, obteve de todos a bordo um voto a Nossa Senhora de que lhe rezariam um terço todos os dias, caso escapassem à morte iminente. (...)

“Entre os sermões que pregou, em diversos locais da Ilha (Terceira), destacou-se o que proferiu na Igreja da Sé, na Festa do Rosário, celebrada anualmente a 7 de outubro, com aquele templo repleto.

“Uma semana mais tarde, Vieira passou à Ilha de São Miguel, onde proferiu o sermão de Santa Teresa, um dos mais destacados de sua autoria. Dali partiu para Lisboa, a bordo de um navio inglês, a 24 de outubro. Após atravessar nova tempestade, o religioso chegou finalmente ao destino, em novembro de 1654”. (26)

Orador: os sermões

Segundo o historiador israelense Yuval Noah Harari, “o Homo sapiens conquistou o mundo, acima de tudo, graças à sua linguagem única”. (27)

Mário Gonçalves Viana, ao comentar a oratória do Padre Antônio Vieira, anotou:

“Há oradores que têm conseguido modificar o rumo da História, dominando multidões ensandecidas e desvairadas, ou encaminhando para o bem as almas transviadas. É por isso que Alves Mendes, um dos mais belos ornamentos do púlpito português, procurou definir a oratória nos seguintes termos entusiásticos e vibrantes: ‘A oratória é a rainha das artes, o orador rei dos artistas, escrevi eu algures e repito-o agora. A oratória é arte soberana; o seu império é o mundo, o seu cetro a palavra, que não só domina o mundo, mas criou o mundo; porque para haver mundo houve palavra. (...) A palavra, que traduziu a força da onipotência divina, revela e traduz a máxima força humana, instrui e constrói, vence e convence, alumia e extasia, move e comove, afama e infama, reforma e transforma; evangeliza a ciência, que é um prodígio, e difunde a Religião, que é um milagre. (....) O orador planeja como o arquiteto, cinzela como o estatuário, matiza como o pintor, canta como o músico, fantasia como o poeta, pensa como o filósofo, argumenta como o dialético, batalha como o guerreiro, representa como o ator, adestra-se como o ginasta, impõe-se como o moralista e abnega-se como o apóstolo. Sobe à tribuna, à cátedra, ao púlpito; fala, galvaniza, arrebata; encarna no seu verbo toda a sua alma e funde nesta alma toda uma assembleia: chama-se Demóstenes, Ésquines, Hortênsia, Cícero, Crisóstomo, Bossuet, Vieira, Mirabeau, Castelar, José Estevão e Fontes’”. (28)

A oratória de Vieira se insere na arte Barroca:

“No entender de alguns, o Barroco tornou-se a arte da Contrarreforma, visto as características básicas do movimento estético servirem aos desígnios doutrinários e pedagógicos da Igreja na luta antirreformista. A Contrarreforma teria absorvido a estética barroca, fazendo dela uma espécie de estratégia de sua ação catequizadora, de onde o caráter pragmático assumido pelas expressões da arte literária barroca, particularmente as em prosa. (...)

“O Padre Antônio Vieira é a maior personalidade, humana e cultural, dessa época, à qual sua estatura invulgar deu nível e da qual serviu de símbolo perfeito. Com efeito, nele se encontram reunidas, formando estranho compósito, as linhas de força que constituem o complexo quadro do Barroco português”. (29)

Por fim, enalteceu Hernâni Cidade:

“Na catequese dos índios, como nas disputações das aulas, como na redação da Charta Annua, uma grande aptidão ia se revelando – o domínio da palavra oral e escrita e, por ela, o domínio das almas que a fascinação do símbolo plástico ou pinturesco, a precisão e vivacidade do termo próprio, a clareza da frase túmida de sentido, cada vez melhor subjugavam.

“Ei-lo preparado para os destinos reclamados pelo seu temperamento. Sublimava-os deste modo, em ânsia de apostolado e defesa de índios e judeus, primeiro na ampla ilimitação do sertão e das selvas, depois nas intrigas da corte, o que era fundamentalmente impetuosa tendência à expansão da própria personalidade, pela influência, pela luta, pela conquista.

“Compreende-se com que prazer deixaria a cátedra pelas missões, substituiria a palavra que é crepitação inútil de lantejoulas do engenho, pela palavra que é fogo de alma irradiante. Não lhe são necessárias as noções de física ou astronomia do tempo; basta-lhe o contato com a natureza e a capacidade de observação que demonstrará, por exemplo, na admirável descrição dos costumes das tartarugas”. (30)

Selecionei, entre os diversos sermões do Padre Vieira, algumas passagens da minha predileção:

“Alegria parece a guerra de fora; mas quem a experimenta, este conhece bem os trabalhos de uma e o bem da outra; porque assim como na doença se conhece o bem da saúde, e na tormenta do mar o bem da terra, assim não há tempo em que melhor se julgue e entenda o bem da paz, que quando se carece dela”.

“O rico que quer mais do que pode, é pobre; e o pobre que quer menos do que pode, é rico. O rico que quer mais do que pode, é pobre, porque lhe falta o mais que quer; e o pobre que quer menos do que pode, é rico, porque lhe sobeja o mais que pode”.

“A melhor e a pior coisa que há no mundo é o conselho. Se é bom é o maior bem; se é mau é o pior mau”.

“Para falar ao vento, bastam palavras; para falar ao coração, são necessárias obras”.

“Cada um é filho do que faz e não é outra coisa”.

“A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens”.

“Com os voadores tenho também uma palavra, e não é pequena a queixa. Dizei-me, voadores, não vos fez Deus para peixes? Pois porque vos meteis a ser aves? O mar fê-lo Deus para vós, e o ar para elas. Contentai-vos com o mar e com nadar, e não queirais voar, pois sois peixes”.

“Furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse”.

“O em que se manifesta a majestade, a grandeza e a glória de vossa infinita onipotência, é em perdoar e usar de misericórdia. Em castigar, venceis-nos a nós, que somos criaturas fracas; mas em perdoar, venceis-vos a vós mesmo, que sois todo poderoso e infinito. Só esta vitória é digna de vós, porque só vossa misericórdia pode pelejar com armas iguais contra vossa justiça; e sendo infinito o vencido, infinita fica a glória do vencedor”.

Morte

Vieira viveu os seus últimos dias na Bahia. Estava decaído e quase cego. Todavia, teve forças para organizar a publicação dos seus Sermões. Faleceu aos 89 anos de idade:

“Em 1681, ao retornar para a Bahia, depois do apogeu e da queda de sua carreira em Portugal, Antônio Vieira descobriu que estava ficando cego. Parecia a derrota final: conselheiro do rei, confessor de rainhas, preceptor de príncipes, agora se via alijado dos jogos políticos do reino, esquecido e desprezado. Seus projetos haviam todos fracassado e a volta ao Brasil podia ser entendida como um melancólico auto-exílio. No entanto, embora a cegueira continuasse avançando até se tornar total, Vieira – austero e longevo – ainda teria dezesseis anos de vida pela frente. E esse período ele usou para dar forma final e editar os quinzes volumes com seus 207 sermões. O projeto iria lhe assegurar imortalidade literária e fama internacional ainda em vida. Mesmo que relutasse em separar palavra e ação, vida e obra, a verdade é que Vieira era, acima de tudo, um homem de letras. (...)

“Vieira morreu em 18 de julho de 1697. Com os ‘óculos do espírito’, sabia ‘como o mundo e sua glória são uma farsa de comédia, que passa; um entremez, que se acaba com o riso; uma sombra, que desaparece; um vapor, que se desfaz; uma flor, que se murchou; um sonho, que não tem verdade’”. (31)

Tempos estranhos

Vivemos tempos estranhos. Em 2020, a memória do Padre Vieira foi profanada na capital portuguesa:

“Com a palavra ‘descoloniza’ pintada a vermelho, a estátua do Padre António Vieira, que está instalada no Largo Trindade Coelho, em Lisboa, desde 2017, surgiu vandalizada esta quinta-feira à tarde.

“Isto acontece numa altura em que nos EUA e em alguns países europeus verifica-se uma onda protestos que tem levado ao derrube de estátuas de figuras associadas a colonizadores e esclavagistas, na sequência das manifestações contra a morte do afro-americano George Floyd durante uma violenta detenção policial em Minneapolis.

“Filósofo jesuíta, escritor e orador, o Padre António Vieira (1608-1697) foi uma das maiores personalidades portuguesas do século XVII, destacando-se como missionário no Brasil, tendo sido um defensor dos direitos dos povos indígenas, lutando conta a sua exploração”. (32)

Laurentino Gomes registrou no seu célebre livro Escravidão:

“O padre Antônio Vieira atribuía o comércio de escravos a um grande milagre de Nossa Senhora do Rosário, porque, segundo ele, tirados da barbárie e do paganismo na África, os cativos triam a graça de serem salvos pelo catolicismo no Brasil. Foi esse o teor da homilia que pregou para uma irmandade de escravos de um engenho na Bahia, em 1633:

‘A mãe de Deus, antevendo esta vossa fé, esta vossa piedade, esta vossa devoção, vos escolheu de entre tantos outros de tantas e tão diferentes nações, e vos trouxe ao grêmio da Igreja, para que lá [na África] não vos perdêsseis, e cá [no Brasil] como filhos seus, vos salvásseis. Este é o maior e mais universal milagre de quantos faz cada dia, e tem feito por seus devotos a Senhora do Rosário. [...] Oh, se a gente preta tirada das brenhas da sua Etiópia, e passada ao Brasil, conhecera bem quanto deve a Deus, e a Sua Santíssima Mãe, por este que pode parecer desterro, cativeiro e desgraça, e não é senão milagre, grande milagre!’”. (33)

Estou entre os que consideram anacronismo o “uso indevido de valores e referências de uma época para julgar ou avaliar personagens, acontecimentos ou fenômenos de outra”. (34) “Para compreender a ação de qualquer homem, é preciso integrá-lo na época em que viveu e considerar a própria mentalidade do tempo, a cuja influência ninguém pode escapar por completo”. (35)

Concluo com o contundente artigo de Arnaldo do Espírito Santo, Maria Cristina Pimentel e Ana Travassos Valdez, professores da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa:

“Leiam Vieira. Antes de o julgar leiam-no todo, com inteligência e sensibilidade. E para concluir, de novo Vieira, com ironia amarga, a propósito de ser queimado em estátua quando vivia: ‘Não merecia António Vieira aos Portugueses, depois de ter padecido tanto por amor da sua pátria e arriscado tantas vezes a vida por ela, que lhe antecipassem as cinzas e lhe fizessem tão honradas exéquias’ (Cartas, t. III, 465)”. (36)

Referências bibliográficas

1 – WERNECK, Paulo. O código Vieira - Alfredo Bosi e “A Chave dos Profetas”, jornal Folha de S. Paulo, edição de 09.10.2011, caderno Ilustríssima.

2 – CIDADE, Hernâni. Padre António Vieira. Lisboa: Arcádia, sem data, p. 11.

3 – CALMON, Pedro. História do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, vols. II, 1959, p. 475.

4 - VIEIRA, PADRE ANTÔNIO. Enciclopédia Barsa. Rio de Janeiro: Encyclopaedia Britannica Editores Ltda., vol. 14, 1969, p. 79.

5 - ESTILL, C. A. (2006). O estalo de Vieira à espera da leitura. Revista de Psicopedagogia, 23, 145-151; disponível em http://npsi-dev.blogspot.com/2015/12/o-estalo-de-vieira.html/, acesso em 25.01.2021.

6 - VAINFAS, Ronaldo (direção). Dicionário do Brasil Colonial: 1500-1808. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 444.

7 - BUENO, Eduardo. Brasil: uma História. São Paulo: Ed. Ática, 2003, p. 48.

8 – Idem, p. 50.

9 – Idem, p. 50.

10 – CIDADE, Hernâni, ob. cit., p. 13.

11 – Idem, p. 19.

12 – Idem, p. 21-22.

13 - HANSEN, João Adolfo. Padre Antônio Vieira – Sermões, in Introdução ao Brasil. Um banquete no trópico. São Paulo: Editora Senac, org. Lourenço Dantas Mota, 1999, p. 25.

14 – Idem, p. 30.

15 – Idem, p. 34-35.

16 - VAINFAS, Ronaldo (direção). Dicionário do Brasil Colonial: 1500-1808, p. 314 e 570; e LEVY, Daniela. De Recife para Manhattan: os judeus na formação de Nova York. São Paulo, Planeta, 2018, p. 50.

17 - WILCKEN, Patrick. Império à deriva: a corte portuguesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Rio de Janeiro: Objetiva, trad. Vera Ribeiro, 2010, p. 112-113.

18 – SCLIAR, Moacyr. O surpreendente Padre Vieira, O Globo, Rio de Janeiro, 22.01.2005, caderno Prosa & Verso.

19 - VAINFAS, Ronaldo (direção). Dicionário do Brasil Colonial: 1500-1808, p. 523.

20 - SARAIVA, José Hermano. História concisa de Portugal. Mira-Sintra, Portugal: Publicações Europa-América, 5ª ed., 1979, p. 169-171.

21 – Na Ilha dos Lençóis, o Rei Sebastião é um pai para os nativos, que o veem, portal Globo Universidade, 24.04.2012, disponível em http://redeglobo.globo.com/globouniversidade/noticia/2012/04/na-ilha-dos-lencois-o-rei-sebastiao-e-um-pai-para-os-nativos-que-o-veem.html, acesso em 12.08.2020.

22 - NEVES, António da Silva. Bandarra, o profeta de Trancoso. Mira-Sintra, Portugal: Publicações Europa-América, 1990, p. 100-101.

23 - A Evangelização e o Quinto Império em Antônio Vieira. IHU Online, revista do Instituto Humanitas Unisinos, São Leopoldo/RS, n° 244, 19.11.2007.

24 - HANSEN, João Adolfo. Padre Antônio Vieira – Sermões, p. 45-52.

25 – Idem.

26 - O naufrágio de Vieira ao largo das Flores e do Corvo, portal Pico da Vigia, 23.01.2014, disponível em https://picodavigia2.blogs.sapo.pt/o-naufragio-do-padre-antonio-vieira-ao-306185, acesso em 26.06.2021.

27 - HARARI, Yuval Noah. Sapiens – Uma breve história da humanidade. Porto Alegre/RS: L&PM Editores, trad. Janaína Marcoantonio, 2016, p. 27.

28 - VIANA, Mário Gonçalves. Pe. António Vieira – Sermões e lugares selectos. Porto, Portugal: Editora Educação Nacional, 1941, p. 6-8.

29 - MOISÉS, Massaud. A literatura portuguesa. São Paulo: Cultrix, 17ª ed., 1981, p. 91-94.

30 - CIDADE, Hernâni. Padre António Vieira, p. 19.

31 - BUENO, Eduardo. Brasil: uma História, p. 55.

32 - Estátua do padre António Vieira vandalizada em Lisboa, Diário de Notícias, Lisboa, edição de 11.06.2020, seção País

33 - GOMES, Laurentino. Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Rio de Janeiro: Globo Livros, volume 1, 2019, p. 337-338.

34 – Idem, p. 338-339.

35 - VIANA, Mário Gonçalves. Pe. António Vieira – Sermões e lugares selectos, p. 53-54.

36 – ESPÍRITO SANTO, Arnaldo do, PIMENTEL, Maria Cristina e VALDEZ, Ana Travassos. Não Merecia António Vieira aos Portugueses..., Diário de Notícias, Lisboa, disponível em https://www.dn.pt/pais/nao-merecia-antonio-vieira-aos-portugueses-12308463.html, acesso em 13.06.2020.

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Instagram Associação dos Magistrados Mineiros, dispoível em https://www.instagram.com/p/CUsJ_kkr3Kh/?utm_medium=share_sheet, acesso 06.10.2021

A revista MagisCultura, edição 24, foi destaque na imprensa. O jornalista Manoel Hygino abordou, em sua coluna no jornal Hoje em Dia, o ensaio intitulado “Padre Vieira, imperador da língua portuguesa”, de autoria do desembargador Rogério Medeiros Garcia. Em sua coluna, o jornalista destaca que o artigo “é algo que merece atenção muito especial pelo tema, pelo nome de Vieira e pelo vasto conhecimento que do tema tem o magistrado”.

Leia a coluna e faça o download da revista no site da Amagis.

MANOEL HYGINO

Os sermões de Vieira

Manoel Hygino / 05/10/2021 - 06h02 Jornal Hoje Em Dia Belo Horizonte https://www.hojeemdia.com.br/opini%C3%A3o/colunas/manoel-hygino-1.332583/os-serm%C3%B5es-de-vieira-1.857010

Extenso artigo do desembargador Rogério Medeiros Garcia de Lima foi publicado e deve estar chegando aos assinantes da revista “MagisCultura”, da Associação dos Magistrados Mineiros”, edição correspondente a setembro de 2021. O título: “Padre Vieira, imperador da língua portuguesa”. É algo que merece atenção muito especial pelo tema, pelo nome de Vieira e pelo vasto conhecimento que do tema tem o magistrado.

A despeito do prestígio do imenso orador sacro, é bom assinalar, como o faz Medeiros, que, em 2020, a estátua de Vieira foi vandalizada em Lisboa. O magistrado de São João del-Rei observa, com propriedade: “Vivemos tempos estranhos, no Brasil e no mundo. O ódio se espraia – nos lares, escolas, universidades, trabalho, mídia e redes sociais. As pessoas verbalizam e agem sem racionalidade. Daí a importância de melhor conhecer o notável jesuíta, no contexto da época em que viveu”. E comparando-a à em que estamos, acrescento.

Vieira nasceu em Lisboa em 1608, e viveu 89 anos, período em que se destacou nos dois continentes, após ingressar na Companhia de Jesus em 1623, “uma das forças mais ativas da conquista e colonização do Brasil. Era uma época de intolerância religiosa e etnocentrismo”. Os sacerdotes lutavam contra a escravização dos indígenas, mas o plano jesuíta de catequização “não apenas resultou em tragédia, em razão dos graves surtos de doenças infecciosas, como facilitou a ação dos escravagistas”.

Não é possível aprofundar no tema, aconselhando-se ir direto ao artigo em exame. Nele, Vieira é estudado como político, professor, missionário, orador e ideologista, sempre se portando com grande independência e coragem. Segundo Mário Gonçalves Viana, ele “substituiria a palavra que é crepitação inútil de lantejoulas do engenho pela palavra que é fogo de alma irradiante”. E sofreu pressões e perseguições em decorrência.

Como registrou meu amigo Ivan Lins, da ABL, ele, repetida e temerariamente, investiu contra os abusos dos grandes, do tempo, como se vê, entre muitos outros, no “Sermão do bom ladrão, pregado em 1655, perante D. João IV e sua corte”. “Estavam presentes os maiores dignitários do reino, juízes, ministros e conselheiros da coroa, mas todo o tempo falou em ladrões e ladroagens, valendo-se do púlpito com único respiradouro da opinião pública, na falta da imprensa e da tribuna política”.

Inspirando-se em São Tomás de Aquino defende a tese de os príncipes serem obrigados a restituir o que tiram de seus súditos sem ser para a conservação do bem comum.

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