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Escopo: São João del-Rei | Tiradentes | Ouro Preto | Minas Gerais | Brasil | Mundo
As Festas Juninas e os Três Santos . Ulisses Passarelli
Descrição
Há um santo para cada dia e um dia para todos os santos. Cada qual com sua particularidade comemorativa, mais ou menos popular, por vezes muito querido numa região e completamente desconhecido noutra. Mas no Brasil, de uma forma toda especial, três santos festejados em junho se destacam por sua expressão devocional parametrizada pela imagem dos valores rurais.
Santo Antônio, São João e São Pedro tornaram-se muito populares de norte a sul, com festas praticamente contíguas e de tão sintonizadas, constituíram um ciclo festivo que chamamos junino. Tal a sua força, que em muitos lugares estendeu-se julho adentro, com aspectos similares, mas com os santos meio de lado, nas já comuns festas julinas. Mas que não crie ilusão esta extensão de datas como sendo coisa recente. Um de meus mais preciosos informantes, o senhor Luís Santana, aqui em São João del-Rei/MG, natural do povoado do Pombal, falava-me que na primeira década do século XX já havia um período longo de festividades rurais naquele povoado, começando no Dia da Santa Cruz, dia 03 de maio (data da primeira fogueira e de erguer os mastros) e ia até o dia de Santana (26 de julho), data da última fogueira e de descer os mastros juninos (1) Alceu Maynard de Araújo já nos apontava essa tendência de as festas de Santa Cruz serem praticamente um prenúncio das festas juninas na cultura caipira.
Esses mastros de junho muitas vezes vem enfeitados de frutas como vi em Passos, no sudoeste mineiro (1997), ou de flores do cipó de São João (Pyrostegia venusta, bignoniaceae), como notei em São João del-Rei e Bias Fortes (1999). No norte do Brasil são enfeitados com ramos, flores, frutos e alimentos. São sinais vestigiais de fitolatria, dizem uns pesquisadores, mas outros apostam apenas no simbolismo da pujança alimentar desses festejos que acontecem quando no campo, findas as colheitas, a lavoura descansa até o replantio (2).
Richard Burton no ano de 1867 passando pelo Caminho Novo na Serra da Mantiqueira, nos arredores de Barbacena, entre esta e Juiz de Fora, notou: “Retiro é um grupo de palhoças habitadas por negros que tinham hasteado um mastro de São João, e um santo também negro” (São Benedito?)
Ainda Burton assim se expressou sobre as festas juninas de 1867:
“(...) os habitantes reúnem-se nas cidades paroquiais, vindos de todas as direções; cada lugar tem sua fogueira, desfile de bandas e as pessoas ficam sentadas toda a noite e hasteiam, alegremente, o “Mastro de São João” (...) A animada festa é mais agradável na roça do que na cidade, onde o bimbalhar dos sinos e as explosões das girândulas começam antes do amanhecer. A gente fica surdo com os ridículos foguetes, e os moleques, isto é, os negrinhos, tornam as ruas supinamente desagradáveis, lançando busca-pés, que fazem tudo o que podem para queimar as pernas das pessoas”
O devocionário popular enxergou em Santo Antônio de Pádua o casamenteiro. O taumaturgo lisboeta é festejado a 13 de junho, antecedido por treze dias de rezas preparatórias (trezena). Seu festejo via de regra contém celebrações nas igrejas, procissões, levantamento de mastros, arraiais com fogueiras e brincadeiras, como o pau de sebo e o leitão ensebado, quadrilhas, comes e bebes típicos nas barraquinhas enfeitadas de folhas de coqueiro, bananeira e pita, soltura de balões, bailes à sanfona. É o santo mais popular do cristianismo e sua oração mais conhecida é o responsório, conhecidíssimo no Brasil e Portugal, com alguns variantes, como esta são-joanense (1998):
Quem milagres quer achar |
Aplaca a fúria do mar, |
Contra os males e o demônio, |
Tira os presos da prisão, |
Busque logo a Santo Antônio |
Os doentes torna sãos |
Que aí há de encontrar. |
E faz achar. |
Sem respeitar qualquer anos |
Socorre a qualquer idade, |
Abone esta verdade |
Os cidadãos paduanos. |
São João Batista vem na mesma linha de festejos a 24 de junho, sendo em muitos lugares a festa mais importante do ciclo junino. Sua noite é tida por mágica, propícia a vários sortilégios. Quase correspondendo ao solstício de inverno do hemisfério sul é dita a noite mais fria do ano, o que nem sempre se concretiza. A água de 23 para 24, antes do raiar deste, é benta nas fontes, rios e córregos (3).
Em garrafas e potes a água é recolhida para fazer remédios o ano todo, para se beber pouco a pouco, para banhar uma ferida ou o corpo todo, banindo males e doenças. Em muitos lugares, noite tarda, é usual a procissão da lavagem do santo, quando a imagem é levada ao rio e banhada ante o canto de benditos e rezas. O carvão ou tição da fogueira joanina é bento, conservado para o ano todo riscar cruzes e estrelas protetivas nas portas, muros, porteiras. Jogado no terreiro durante uma tempestade, amansa a tormenta, previne o raio fulminante.
Na Colônia do Marçal, em São João del-Rei recolhemos esta simpatia para se fazer no dia de São João ou no de São Pedro (1999):
“escreva no papel branco os nomes das pessoas que você gosta e depois enrola esses nomes como se estivesse enrolando um cigarro e coloque num copo com água com os papéis dentro. Tampa o copo com a mão e coloca perto do fogo e reze uma salve-rainha, até chegar ao “mostrai”. Depois coloque debaixo de uma folhagem todos os nomes que estão no copo. No outro dia sem falar com ninguém vai até a folhagem e termine a salve-rainha e fala pra São João e São Pedro com quem você vai se casar e olha o papel que está aberto”.
Um costume assaz interessante registrei-o em São João del-Rei, no Bairro Senhor dos Montes, em Santa Cruz de Minas, no bairro Córrego: no dia de São João, tomando-se à mão varas, correias e chicotes, se dá uma surra no tronco das fruteiras, enunciando-se o seguinte ensalmo:
Fogo na fogueira,
Estava para queimar,
O que não deu esse ano,
Para o ano vai dar!
Esta fórmula mágica é um mecanismo de catarse que garante a queda dos ramos doentios, dos frutos secos e “aluados" (4) das flores estéreis, banindo pragas e mau olhado. Então, no ano seguinte o pomar aumenta a produtividade. Eis um elemento claro da força agrária dessa festa.
Senhor São Pedro vem por último, protetor das viúvas, com festejo a 29 de junho. Sua festa ultimamente esmaeceu mas tem as mesmas linhas gerais. É em geral mais forte onde o mar ou os grandes rios tem importância econômica para as comunidades de pescadores, sendo então comuns as procissões marítimas com barcos enfeitados e as puxadas de mastro. São Pedro, o primeiro papa, é o guardião das chaves do céu. São muitos os contos populares que narram suas peripécias apostólicas, colocando-o como um turrão que faz trapalhadas ante Jesus. A crença indica a mãe de São Pedro como uma verdadeira megera.
É no dia de São Pedro que o homem do povo toma de um facão ou machadinha e dá piques (talhos) no tronco das mangueiras em sentido perpendicular ou diagonal como método que garante uma melhor produtividade. Naquele talho escorre parte da seiva. Ainda é muito freqüente esta prática em São João del-Rei e arredores.
No Maranhão e Amazônia as festas desses santos são animadas pela presença de numerosos grupos dançantes de bumba-meu-boi / boi-bumbá e os de tambor-de-crioula. No agreste e sertão acorrem os bacamarteiros, os ternos de zabumba. Pelo litoral são as rodas de coco, improviso ao som ritmado do ganzá. Ainda em 1997 vi na praia de Caraúbas (Maxaranguape/RN), a capelinha de melão, espécie de pastorinhas do inverno, cantando não ao Menino Jesus mas a São João Batista.
As religiões de matriz africana também querem muito bem a esses santos. Muitos terreiros fazem festas nos seus dias votivos. O sincretismo é variável de uma região para outra, mas via de regra é o seguinte: Santo Antônio se vincula a Ogum, mormente o Rompe-mato ou o Matinada; São João e São Pedro a Xangô (5):
Santo Antônio e meu São Jorge
São dois santos guerreiros,
Santo Antônio firma ponto,
São Jorge firma terreiro.
Outro:
Meu Pai São João Batista é Xangô,
O dono do meu destino até o fim.
Se um dia me faltar, a fé no meu Senhor,
Derruba essas pedreiras sobre mim.
Para o ciclo junino as festas externas às igrejas se climatizam na configuração cenográfica de um ambiente rural, ou pelo menos, supostamente do campo.
É uma imagem idealizada, meio às avessas a bem da verdade, porque, à primeira vista ridiculariza os valores rurais levando ao exagero o aspecto e o comportamento do rurícola. Assim os dançantes da quadrilha, a dança típica dessa quadra do ano, põe roupas com remendos exagerados, chapéus desfiados, calças esgarçadas, rabiscam no rosto cavanhaques e bigodes desgrenhados, cigarrões de palha são adereços indispensáveis. Botinas graúdas favorecem o andar trôpego. As mulheres não ficam para trás com seus vestidos de chita e outras estampas berrantes, fora da moda; tranças postiças, maquiagem exagerada e até por vezes um dente é borrado de preto simulando vasta cárie ou ausência de elemento dentário.
O local das danças é chamado arraial, ou melhor, “arraiá” e ganha nomes próprios: Arraiá do Arranca-unha, Arraiá do Pito Aceso, Arraiá da Vila Mendes, etc. É limpo e enfeitado. De terra batida, gramado ou cimentado, não importa, ganha arcos de bambu, carreiras de bandeirolas e rabiolas coloridas, balões multicores nos cantos, espigas de milho atadas às varas das barraquinhas de vender comida típica do período, sujeita a regionalismo: por aqui, canjica, quentão, broas, pamonhas, curau, pé de moleque; no vasto nordeste onde estas festas alcançam uma dimensão extraordinária e economicamente importantíssima, geradora de fluxo turístico, surge dentre outros a indispensável canjica, o mungunzá, os bolos variados (preto, de milho, de carimã, da moça, etc.). E por aí vai. Nas áreas frias sulinas o pinhão é querido e o vinho.
A música se faz fartamente presente através da sanfona, ou seu irmão _ acordeon. Outros instrumentos acompanham e marcam: quadrilhas, xotes, baiões, xaxados, forrós, arrasta-pés ...
Na apresentação das quadrilhas um dos momentos mais aguardados é o casamento caipira (matuto, tabaréu), um entrecho muito apreciado já comentado em outro texto que escrevi sobre as quadrilhas. É bem visível que esta representação é um entremeio dramatizado que foi enxertado nas quadrilhas, não fazia parte do modelo francês original. É uma criação brasileira, e com tamanha sintonia com a quadrilha que com elas compôs um corpo perfeito. Ora, um antigo jornal (6) de São João del-Rei / MG, noticiou a um século esta representação teatral: “casamento do caipira (Nhô) é uma pantomina de successo”. Seria esta uma pista? O casamento hilário seria uma representação de palco que rodou Brasil afora, caída nas graças do povo que a manteve no contexto das quadrilhas? É só uma possível possibilidade, aguardando pesquisa.
Por estas alturas é interessante repensar o significado do universo rural colocado com jocosidade nas festas juninas. Aqueles remendos das roupas, os trejeitos dos dançantes, os babados dos vestidos e toda a irreverência do arraiais e seus figurantes, seria apenas mero deboche? O corre-corre urbano, a vida na selva de pedra não induz a horas tantas a saudade da paz campesina?
A figuração do mundo rural nestas festas e danças é puramente alegórica e por fim faz parte da própria identidade destas manifestações. O olhar mais focal pode ser assaz revelador.
Estas festas além de quebrarem a rotina como todas em geral o fazem, podem também ser um oportuno canal de manifestar os valores da ruralidade, ainda que sob a ótica urbana calcada pela ironia, mas isto pode ser um disfarce social. O roceiro ainda vive em cada um de nós? Caso positivo, para manifestá-lo precisamos de uma fantasia e um contexto?
Esta ambigüidade é que justifica o que disse atrás sobre “imagem idealizada às avessas”. Toda esta provocação (e não afirmação) visa apenas induzir pesquisas futuras neste ramo, que quiçá podem ser frutíferas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- ARAÚJO, Alceu Maynard. Folclore Nacional. 2.ed. São Paulo: Melhoramentos, 1964.
- BURTON, Richard Francis. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho (1867). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EdUSP, 1976.
- CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.] 930p.il.
- LIMA, Rossini Tavares de. Folclore das Festas Cíclicas. São Paulo: Irmãos Vitale, 1971.
- PELLEGRINI FILHO, Américo. 2.ed. Folclore Paulista: calendário & documentário. São Paulo: Cortez/Sec.Est.de Cult., 1985. 240p.il.
- Os cronistas viram e disseram. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São João del-Rei, n.4, 1986. p.55.
INFORMANTES:
- Aloísio dos Santos (piques nas mangueiras)
- Cláudia Aparecida da Costa (simpatia para casamento)
- Elvira Andrade de Salles (surra nas fruteiras, mastros)
- José Camilo da Silva (mastros)
- Luís Antônio Sacramento Miranda (surra nas fruteiras)
- Luís Santana (festas no Pombal)
- Luthero Castorino da Silva (responsório)
(2) A origem pagã e agrária destas festas é clara e fartamente documentada por iminentes folcloristas, que sobejamente demonstraram os reais valores das festas rurais: Alceu M.Araújo, A.Pellegrini Filho, L.C.Cascudo, R.Tavares de Lima. São de consulta indispensável. Não é plano desta postagem, discorrer sobre o histórico das festas juninas.
(3) Dêniston Diamantino recolheu um excelente documentário de tradições juninas no vídeo “São João na Roça” (Opará Vídeos, Belo Horizonte, 2000), de consulta fundamental como fonte fidedigna de pesquisas.
(4) Aluado: que pertence à lua. Minha informante, Elvira Andrade de Salles me garantia que a lua sugava a energia do fruto, que assim ficava “aluado”: crescimento afetado, sem polpa, sem adocicado.
(5) Concepções de um pai de santo de umbanda e uma mãe de santo de candomblé de São João del-Rei. Os pontos foram ouvidos em outros terreiros da cidade, que não os dos informantes, por volta de 2001.
(6) O Repórter, n.312, 02/05/1912
Contradanças & Quadrilhas
Não se sabe bem ao certo, se deduz, praticamente, que uma velha dança camponesa da Inglaterra feudal, então muito em voga, disseminou-se pela Europa, servindo de base para o desenvolvimento de várias outras expressões coreográficas.
Teria sido durante a Guerra dos Cem Anos (séc.XIV e XV) que a França conheceu esta dança, então chamada “country dance” (dança do campo, rural), nome por demais genérico e logo afrancesado para “contredance”.
Dançada por duas fileiras, uma de homens, outra de mulheres, frente a frente (vis a vis), em ritmo binário, melodias variáveis, ganhou grande importância na França nos séculos seguintes, bem como noutros países daquele continente, tendo inclusive inspirado obras de alguns compositores clássicos.
A contredance francesa chegou a Portugal plausivelmente, trazida por soldados do período das guerras napoleônicas. Aclimatou-se fácil e ganhou grande popularidade com o nome aportuguesado em “contradança" (1). Por sua vez foi trazida ao Brasil pelos colonos portugueses e se estabeleceu em várias regiões ganhando cores locais (2).
Aqui o contexto mais geral que assumiu foi o de uma suíte de danças, tal como em Matosinhos, o maior bairro de São João del-Rei/MG, quando na Festa do Divino de 1899 apresentou-se com grande sucesso uma contradança, graças aos abnegados esforços do farmacêutico Desidério Rodarte (3).
Ela se modificou em outras danças ou lhes serviu de base ou modelo, mas em geral manteve o elemento rítmico e a fila dupla. Mas ora particularmente nos interessa os rumos tomados pela contradança na França. Possivelmente no final do século XVIII ou começo do seguinte, uma das suas modificações, dançada por quatro pares, ganhou o nome de “quatrille” (de quatre, quatro em francês). Alcançou enorme sucesso na corte francesa.
A França era um modelo aristocrático para outras cortes e não tardou que esta dança viesse ao mundo português, traduzida em “quadrilha”. A princípio manteve o formato original, sem canto, com acompanhamento instrumental, em 6/8 e 2/4, cinco partes com final agalopado e evoluções ordenadas pronunciadas em francês por um mandador (Portugal) ou marcador / marcante (Brasil).
Feita dança palaciana na época da Regência, da corte carioca, dos salões da alta sociedade, muito breve ganhou as camadas populares, difundindo-se profundamente pelo litoral e interior. Uma página magistral a respeito nos dá Câmara Cascudo, que de tão esclarecedora é uma consulta indispensável (4).
Pelo imenso interior brasileiro a quadrilha ganhou as mais variadas influências de outras danças regionais pré-existentes ou que chegaram depois. O francês da marcação se corrompeu estropiadamente no linguajar sertanejo, ou mesmo cedeu espaço ao português coloquial; velhas marcações foram abandonadas, adaptadas ou substituídas por outras de criação nacional. A quadrilha original então desapareceu do Brasil, perdida no turbilhão das mudanças. A dinâmica imensa do folclore criou suas variantes:
- Lanceiros: de influência inglesa era uma modalidade de quadrilha. Existe um registro para o Amazonas (5), municípios de Manaus e Tefé. Dançavam com uma lança curta na mão, os pares se enfrentando, com entrada pomposa, trajes nas cores verde e amarelo: chapéu de palhinha, jaquetão e calção. Em Minas Gerais também foi conhecida.
- Solo-inglês: “espécie de lanceiros, muito dançado na Maioridade e no Segundo Império, na corte e nas províncias. Dançavam-no aos pares, havendo vênias, trocados de lugar e volteios” (Cascudo, op.cit. verbete: Solo-inglês). Desapareceu no fim do século XIX.
- Baile sifilítico ou sifilito: versão caricata da quadrilha na Bahia e Goiás, de que não se dispõe de muitas informações.
- Saruê: corruptela de “soirée”, sarau. Quadrilha registrada no Brasil Central, “misto de figuras das quadrilhas francesa e americana, com passos de danças originais do sertão, marcas estapafúrdias” (Cascudo, op.cit. verbete: Saruê. Baseado em Antônio Americano do Brasil, Cancioneiro de Trovas do Brasil Central, 1925).
- Esquinado: dança outrora popular no nordeste e sudeste do Brasil, desaparecida na primeira metade do século XX (6).
- Mana chica: quadrilha muito peculiar irradiada a partir do norte fluminense (7) para o Espírito Santo (8) e Minas Gerais. Sua origem é atribuída ao município de Campos onde desenvolveu outras variantes regionais: mana Joana e maricota. Há uma marcação como a da quadrilha mas um acompanhamento com palmas e por fim um intenso sapateado, quase um desafio. Recolhi em 1996 graças à gentileza de uma senhora octagenária de Barbacena/MG, Dona Josefina, uma interessante versão:
Mana Chica, Mana Chica, {BIS} |
Mana Chica, Mana Chica, {BIS} |
Mana Chica do sertão, |
Mana Chica de Goiás, |
Mana Chica me chamou {BIS} |
Ela montada em sua bêsta {BIS} |
E pegou na minha mão! |
Meu burrinho rinchando atrás. |
Ai... Mana Chica! {BIS} |
Aonde você vai? |
Ela montada em sua bêsta, {BIS} |
Meu burrinho rinchando atrás. |
Ainda outra quadra da mesma informante:
Eu joguei o barco n'água
eu avistei o remador;
Quando o barco foi virando,
Mana Chica me chamou!
- Numerada: tipo de quadrilha que se dançava em São João del-Rei com a particular característica dos dançantes irem aos poucos formando uma fila única, sob o comando do marcador, sempre se referindo a expressões ferroviárias: “locomotiva!” (o primeiro casal se perfilava), “vagão de carga” (outro casal aderia à fila) – sempre em balancê – “vagão de passageiros”, “guindaste”, “trem pagador”, “turma do lastro”, etc. A cada marcação, novo casal se punha na mesma fila, acoplando novos vagões e em seguida partiam em ritmo fazendo uma marcha que simulava uma viagem de Maria-fumaça (9).
Desaparecidas as versões acima listadas sobreviveu porém aquela que teve de todas a maior capacidade adaptativa, a mais ampla aceitação popular: a quadrilha caipira, como é chamada no centro-sul do país ou quadrilha matuta, como se diz no nordeste.
Guardando consigo a matriz da quadrilha francesa, permitiu um sem-número de variações regionais com novas marcações bem ao gosto interiorano, ganhando um ar brejeiro. Nas cidades ganhou mais força que nas vilas, com nítida influência popularesca, de letrados que nela imprimiram novo formato de valorização das tradições nacionais, num folclorismo (10) evidente.
Os trajes, os trejeitos, a contextualização busca então evocar tudo o que na cidade se julga camponês, caipira, matuto, caboclo, pois que, o homem da roça foi então configurado como um protótipo brasileiro. Há porém uma ambigüidade, posto que ao pé da letra há uma afetação, um exagero no representado, que caminha para a depreciação dos valores rurais, haja vista na zona rural as danças não transcorrerem como na cidade as representam. Não há roupas remendadas ou chapéus esfarrapados. Na roça quando vão para uma festa usam a melhor roupa. Ninguém então usa de trejeitos.
Mas detalhes à parte, estes aspectos já se incorporaram ao universo das quadrilhas.
É freqüente a realização de um entremeio dramático chamado “casamento caipira”, um simulacro de cerimônia matrimonial muito sarcástica, picaresca. O casal surge em cena trazido numa carroça ou charrete, ou mesmo a pé. Um dos quadrilheiros aparece trajado de padre, um sacerdote trapalhão; outro faz o sogro, violento, bruto, armado; o noivo é gaiato e malandro, faz de tudo para embromar o pai da noiva. Vem trajado com um terno surrado, pouco elegante. Para completar a trupe a noiva, moça com vestido branco, véu e grinalda, maquiagem exagerada, fazendo-se ora de assanhada ora de tímida. O quarteto encena de improviso um casamento forjado, com muito improviso, humor e gaiatice. O pai não quer o casório, a noiva quer muito. O noivo tenta escapar e o padre não consegue celebrar. Por fim tem de fazer o casamento forçado pelo pai da noiva, sob ameaça de morte. Tudo acaba bem, embora na bagunça e a festa de casamento transcorre com a dança da quadrilha. Em Coronel Xavier Chaves/MG, na Vila Mendes, um grupo chamado “Arraiá dos Fundo” vem desempenhando uma quadrilha com o casamento caipira com uma extraordinária originalidade.
Aqui nos arredores de São João del-Rei vários grupos tem atividade relevante e podem ser vistos em várias áreas, merecendo destaque as festas com quadrilhas na Colônia do Marçal e nas Águas Santas. Nos anos 1970 se tornaram memoráveis os encontros de quadrilha que aconteciam no Largo Tamandaré, sob os auspícios do saudoso Sr. Djalma Assis.
Vinculadas aos festejos juninos e depois também julinos, as quadrilhas são presença certeira nas festas de Santo Antônio, São João Batista e São Pedro, e por vezes sem santo algum, mas sempre no inverno, ao lado das fogueiras, dos enfeites de arcos de bambu, de bandeirinhas, balões multicores, fogos de artifícios – traques, busca-pés, bombinhas. Todo um complexo cultural se formou em torno delas e mesmo econômico, girando fortemente recursos humanos e financeiros onde elas alcançaram maior popularidade. Movimentam o turismo como vemos a imprensa noticiar no nordeste brasileiro. Fabricantes de roupas, vendedores de adereços e de comidas típicas, tocadores de sanfona, zabumba, etc., sonorizadores, gravadores de músicas, propagandistas e até coreográfos e estilistas, encontraram nas quadrilhas um importante meio de renda. As quadrilhas estilizadas desenvolvem a cada ano temas próprios e absorvem novidades da cultura de massa, novos ritmos se sobrepondo aos forrós e arrasta-pés. Novos motivos estéticos para desenvolver os uniformes a cada ano: temas do cangaço, dos filmes de mocinho e bandido, de novelas televisivas, etc.
Assim vemos a moda country, o cowboy cinematográfico e até a contemporaneidade funkeira, e outros mais, dominar a quadrilha urbana, sobretudo dos grandes centros. A quadrilha estilizada conserva um público jovem e surge nas escolas, bairros, associações ao contrário das quadrilhas típicas ou tradicionais, mais propriamente comunitárias.
Umas e outras porém são um exemplo extraordinário da capacidade adaptativa do folclore, o poder da popularização. A quadrilha francesa não existe mais por aqui, mas a brasileira continua inabalável.
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Canal dos Ingleses . Ulisses Passareli e Luís Antônio Sacramento Miranda