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A prática fotográfica e as questões do direito autoral
Descrição
É o veredicto que pode receber quem usa a imagem de alguém sem autorização. A lei brasileira é rigorosa com o uso indevido da imagem, e é bom o fotógrafo tomar as devidas precauçõe
O que uma foto de Ana Paula Arósio tem em comum com a de uma baiana vendendo acarajé? Muito pouco. A não ser pelo fato de serem imagens brasileiras e de correrem o risco de serem utilizadas indevidamente em campanhas publicitárias, nas páginas de revistas, da internet ou de jornais. Explica-se: sem a devida autorização do autor da obra, do fotógrafo, ou da pessoa fotografada.
A hipótese pode parecer exagerada, considerando que a lei brasileira para o uso de imagens é uma das mais rigorosas do mundo. Mesmo assim, fotografias de pessoas famosas ou mesmo anônimas e obras de fotógrafos continuam sendo utilizadas no Brasil sem que o seu direito de uso seja cumprido como manda o figurino. Isso não quer dizer que parte do mercado não se esforce para cumprir a lei à risca. Tanto que a maioria dos bancos de imagens brasileiros prefere não comercializar fotos de “personagens”.
O problema é que, no Brasil, o direito de uso da imagem é tão “engessado” em relação a outros países que termina criando uma situação crucial para o mercado interno: a profusão de “rostos” estrangeiros nos arquivos de fotos. Enquanto no exterior a imagem de uma pessoa, quando comercializada, é de fato cedida, aqui ela é dada como uma concessão. Ou seja, o brasileiro pode autorizar o uso da imagem, mas permanece sempre com o direito de anulá-la ou então de limitar o uso se considerá-lo indevido.
Diante deste cenário, o que os fotógrafos profissionais devem fazer para se precaver e evitar dores de cabeça futuras?
Intimidade – Para fotografar uma pessoa, o recomendável é sempre conseguir uma autorização, se quiser cumprir o direito da imagem do “personagem do retrato”. A exceção fica para as fotos jornalísticas ou editoriais. “Nesse caso, é aplicado o princípio do código autoral de que o interesse público se sobrepõe ao interesse individual. Um livro sobre os habitantes de determinada região, por exemplo, trata de um assunto que a sociedade tem o direito de conhecer”, explica Paulo Gomes de Oliveira Filho, advogado especialista no tema. A imagem pode ser utilizada em publicações cujo conteúdo seja informativo, didático, científico ou cultural, desde que não infrinja outros direitos da pessoa fotografada, como o direito de privacidade.
Até as pessoas notórias (artistas, políticos, cientistas), que expõem sua imagem publicamente, têm direito à privacidade. Ao ser fotografada nua numa ilha particular grega, na década de 70, a ex-primeira dama dos Estados Unidos e então mulher do armador grego Aristóteles Onassis, Jackie Kennedy Onassis, foi vítima de agressão à intimidade. O mesmo ocorreu com Greta Garbo, atriz de Hollywood, que teve sua foto nua, numa praia particular, estampada num jornal sensacionalista. O jornal britânico “The Daily Mirror”, por exemplo, chegou a “bisbilhotar” a privacidade da princesa Diana, também através de lentes indiscretas.
Esses casos ilustram bem a definição jurídica de invasão da intimidade alheia, porque não há, por parte do titular do direito, o consentimento explícito e tácito. Mas, quando as figuras públicas são flagradas na rua, até mesmo numa situação constrangedora, a imagem pode ser utilizada, sem problema, em conteúdos editoriais.
Publicidade – Para a publicidade, não há concessões. Nenhuma imagem pode ser explorada sem o consentimento escrito do retratado. Na autorização, o fotógrafo precisa determinar a finalidade do uso da imagem (publicitária), o prazo e o território. O prazo sempre deve ser estabelecido dentro de um período razoável. “Se uma pessoa concede sua imagem por um preço irrisório, como R$ 100 ou R$ 200, o prazo razoável deve ser de até 12 meses. É uma questão de bom senso. Não existe prazo mínimo ou máximo para a concessão”, diz Oliveira Filho.
Mas o melhor é usar o bom senso. Por exemplo, uma imagem cedida por R$ 100 e usada por 10 anos pode colocar em risco todo o trabalho do fotógrafo, caso seja iniciada uma ação e o juiz entenda que se trata de uma causa “leonina” – que beneficia apenas o lado mais forte; no caso, o fotógrafo.
No documento também deve estar bem definido o território de exposição da foto (em todo o Brasil ou apenas num Estado), além do tipo de mídia ou veículo que será utilizado para divulgação (jornal, revista, peça promocional, etc).
Artistas – De acordo com a Lei 6.533, que regula a atividade de artistas e técnicos em espetáculos, o direito de uso de imagem não pode ser cedido por causa do princípio de ordem pública aplicado na proteção do chamado hiposuficiente. Em outras palavras: a lei entende que, numa negociação, o mais frágil vai sucumbir ao mais forte e, para a própria proteção do mais frágil, define que a cessão da imagem não tem validade.
Isso quer dizer que, no Brasil, mesmo constando num contrato “cessão do uso de imagem”, o “personagem” do retrato pode anulá-la ou limitá-la. “Essa lei foi uma decorrência do lobby de artistas contra a produção de novelas que usavam suas imagens onde e quando bem quisessem. Hoje, para cada utilização da imagem que não seja a finalidade original, o artista deve ser remunerado suplementarmente. O percentual fica a critério de negociação entre as partes”, conta Oliveira Filho.
Agenciamento – Por isso, boa parte dos fotógrafos brasileiros preferem utilizar contratos de agenciamento para uso de imagens de pessoas, em vez de pagar pela cessão do direito. Para cada utilização da imagem, o fotógrafo remunera o modelo. “O contrato de agenciamento estabelece a possibilidade de o fotógrafo comercializar a imagem fixando as finalidades e a remuneração à medida que a foto for sendo locada. O tempo é indeterminado”, explica o advogado. Já o contrato de concessão de uso de imagem tem o tempo e o preço, pago no ato, determinados para um uso específico. Em países como Estados Unidos, França e Inglaterra, existe a possibilidade de cessão de direito de imagem definitivamente.
Varejo – Expor fotos de rostos em molduras, no tamanho 3×4 ou ampliadas, ainda mais se forem de casamentos, batizados ou qualquer outra situação que envolva o direito de imagem e de nome, que estão entre os chamados direitos personalíssimos, também fere a lei. “O fotógrafo está impedido de usar essas fotos em outras situações que fujam do contexto da pessoa retratada. Inclusive os negativos devem ser entregues ao cliente junto com a ampliação”, entende Oliveira Filho. Mas há juristas que interpretam que o direito autoral prevalece sobre o direito de imagem e os negativos devem permanecer com o fotógrafo. De qualquer forma, um estúdio que expõe fotos de clientes na rua está sujeito a sofrer algum processo. Também não está dentro da lei emoldurar fotos de pessoas famosas para decorar o estúdio ou a loja.
Obras plásticas – Quando um fotógrafo clica imagens de obras plásticas, como esculturas e pinturas, precisa indicar a fonte, o nome do autor e o local. Se a foto for usada para fins comerciais, o fotógrafo precisará obter autorização do autor da obra, se ela ainda não tiver caído em domínio público. Fotografar uma fachada de uma residência, embora exista o direito de propriedade, é permitido desde que não se trate de uma obra arquitetônica. Se for o caso, é preciso obter a autorização do arquiteto.
No batente – O fotógrafo paulistano Cláudio Edinger, que clicou vários internos do Juqueri (hospital psiquiátrico de São Paulo) e fez um livro contundente com essas imagens, obteve a autorização por escrito do diretor da instituição para realizar o trabalho. “A minha intenção sempre foi entender a loucura, não expor nada. Em todos os meus trabalhos, eu procuro pedir autorização para fazer as fotos”, diz. Edinger conta que algumas revistas usam suas fotos e não pagam. “Eu ligo, negocio com a revista e tudo acaba bem. Eu sempre faço um contrato que estabelece que a foto só pode ser usada uma vez, para determinada matéria.”
Segundo o fotógrafo Márcio Rebelo, ex-presidente da Associação Brasileira dos Fotógrafos de Publicidade (Abrafoto), hoje no Brasil existe um limite – não imposto legalmente, mas praticado no mercado – de dois anos para uso da imagem de modelos, porque os modelos brasileiros estão estourando no mercado internacional (vide Gisele Bündchen). “O sindicato de modelos e atores gosta de limitar o tempo de uso da foto por dois anos”, conta Rebelo. “Eu uso meus amigos modelos. Ponho eles no casting da produção e faço uma negociação quando vou produzir fotos”, conta.
Bancos de Imagens – A Kino Fotoarquivo possui imagens de pessoas em seu acervo, mas todas licenciadas. “Temos uma preocupação em preservar a pessoa e a nossa posição no mercado. Só recebemos fotos com a LUI (Licença de Uso da Imagem), a autorização assinada”, diz Ivania Santana, sócia da Kino, que comercializa imagens dos índios bororos. “A remuneração aos bororos é feita por meio de um acordo com os salesianos, instalados próximos da tribo. Temos muito cuidado para que não ocorra o uso indevido das fotos”, afirma.
E dá um exemplo desse zelo: segundo conta, uma rede de cursinhos para vestibular quis usar a imagem de um índio com a cabeça raspada e pintada de vermelho para destiná-la a uma campanha cuja frase resumia “Nós somos bicho”. “Não podemos permitir. Primeiro porque índio não é bicho. Segundo, porque a cabeça raspada pintada de vermelho significa luto para os bororos”, diz Ivania.
Rostos estrangeiros – Já a Pulsar Imagens e Editora não trabalha com arquivo de pessoas. “Hoje, o acervo de fotos de pessoas no Brasil é pequeno porque quase não existe autorização. Os fotógrafos e o mercado só atentaram para o direito de uso da imagem há cerca de cinco anos. A prática da maior parte dos fotógrafos que constituem os bancos de imagem vem do fotojornalismo”, explica Laura Del Mar. Por isso, “no Brasil falta a nossa cara nos livros didáticos que falam de nossa etnia”, completa.
Segundo Laura, a Pulsar interrompeu a comercialização de imagens de pessoas por causa de uma ação que acabou em pizza. Uma foto de uma mulher falando ao orelhão na rua, com o rosto meio sombreado, deu origem à ação. “A mulher acionou a editora do livro que acionou a Pulsar. A editora pediu uma perícia, já que o rosto estava sombreado, e concluiu-se que a mulher da foto não era a mesma”, conta Laura. O blefe teve seus desdobramentos positivos para a Pulsar. Serviu de alerta para não mais usar imagens sem autorização.
QUANDO VAI PARA JUSTIÇA
Segundo Oliveira Filho, o mercado normalmente cumpre a lei. Até porque cerca de 80% dos litígios são solucionados antes da promoção da ação judicial. Mas a maioria das ações que se concretizam está concentrada no mercado de publicidade. São movidas principalmente por autores e pessoas fotografadas. No escritório de Oliveira, em São Paulo, atualmente há cerca de 800 ações relacionadas ao direito autoral na publicidade, reclamadas por agências concorrentes, autores de obras e titulares de imagens (pessoas retratadas).
ANÔNIMO – Em Aracaju, uma grande empresa está sendo processada por um vaqueiro, porque usou a imagem dele num catálogo de lista telefônica. “O vaqueiro está pleiteando R$ 400 mil, mas dificilmente ganhará essa quantia. Nesses casos, o juiz leva em consideração a notoriedade da imagem, a amplitude de seu uso e o valor de mercado que um personagem como ele cobraria para conceder esse uso”, avalia Oliveira. Uma imagem com essas características, sendo de uma pessoa anônima, não valeria mais do que R$ 500,00. Mas devido ao uso não autorizado, sendo o dano além de moral também patrimonial, pode chegar a R$ 2 mil.
FAMOSA – Há outras ações que envolvem pessoas públicas em campanhas publicitárias, nas quais o uso da imagem efetivamente incrementa a venda de produtos e serviços e, aí sim, as cifras são bem mais altas. O advogado conta um desses casos de mau uso da imagem, ocorrido com uma modelo de São Paulo. Em 95, ela assinou contrato com uma multinacional de cosméticos para aparecer em um único catálogo. Entretanto, para surpresa dela, a fotografia foi impressa em 48 catálogos no Brasil e no exterior. Supondo que por um catálogo a modelo tenha ganho, na época, cerca de R$ 1 mil, ela teria de ter recebido, no mínimo, R$ 48 mil. Este “deslize” cometido pela gigante de cosméticos se configura no dano patrimonial à modelo. Além dele, há o dano moral. Como a modelo foi fotografada nua da cintura para cima, para ser exibida em único catálogo, a quebra do contrato afetou sua vida pessoal. A modelo casou-se, mudou de profissão e, no entanto, teve de continuar convivendo com a exposição dessa imagem. O processo, movido pelo escritório de Oliveira Filho está em fase final. A indenização solicitada, seis anos atrás, quando foi iniciado o processo, era de cerca de R$ 500 mil. Hoje, o advogado acredita que o juiz venha a arbitrar até mais.
Sobre Jorge Felz