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Escopo: São João del-Rei | Tiradentes | Ouro Preto | Minas Gerais | Brasil | Mundo
Música colonial: tesouro do passado; presente para o futuro . Mauro Lovatto
Descrição
Certa vez, enquanto ensaiávamos para a Semana Santa, na sede da Orquestra Ribeiro Bastos, uma equipe da TV pública da Alemanha fazia imagens para um documentário a ser exibido naquele país por ocasião dos 500 anos da América. A música colonial mineira era um dos temas selecionados para ilustrar o encontro de culturas proporcionado a partir da descoberta de Cristóvão Colombo. Num dado instante, o maestro José Maria Neves interrompeu o ensaio com o coral e a orquestra para “passar” um dos solos de soprano com os instrumentos de cordas. Havia dois técnicos alemães postados bem em frente à orquestra ajeitando os cabos da gravação e demais equipamentos, quando a cantora começou a entoar o solo da Missa Grande, de Antônio dos Santos Cunha. Os dois alemães pararam de fazer seu trabalho para, boquiabertos, admirar a beleza da voz da cantora. Talvez eles estivessem pensando: “Como é que aqui, tão longe da Europa, berço da música clássica, estejamos vendo uma pessoa comum cantar um número tecnicamente difícil com tanta maestria…”
Nunca me esqueci dessa cena e sempre percebo o contentamento que experimentam os são-joanenses e os turistas que acompanham as apresentações religiosas e concertos da Ribeiro Bastos. Acredito que os meus colegas da Lira Sanjoanense, os músicos da Sinfônica e das bandas de música também tenham a mesma impressão.
Quem vê e ouve uma apresentação musical de um grupo tradicional de São João del-Rei muitas vezes não imagina o que está por trás. A história mostra que o fazer musical está intimamente relacionado com a vida cotidiana desta cidade, moldando vidas, forjando destinos. Um dos documentos mais antigos prova que, no longínquo ano de 1717, o Conde de Assumar, autoridade indicada pelo Rei para governar São Paulo e as Minas do Ouro (nome que se dava a esta região naquela época), foi recebido por uma banda de música no morro do Bonfim. Na verdade, quando chegaram a estas Minas Gerais, há pouco mais 300 anos, os portugueses obviamente trouxeram sua cultura e seu modo de se expressar no mundo. Para minimizar as agruras de ter de viver num país ensolarado, cheio de animais selvagens e índios ferozes, construíram na terra tropical uma civilização de gosto artístico europeu ou o mais parecido possível da pátria de onde vieram, muitos a contragosto.
Mais do que um fenômeno de natureza econômica, o chamado Ciclo do Ouro foi um fato cultural e artístico da maior importância. O ouro, a prata e as pedras preciosas que reluziam nas minas e nos veios dos rios moldaram uma civilização baseada no que o século 18 tinha de mais requintado. Homens livres e escravos, transformados em artistas, construíram monumentos e obras suntuosas. O Brasil, pela primeira vez, viu nascer uma sociedade de caráter urbano.
Uma das artes que mais se desenvolveram foi a música, predominantemente aquela produzida para o culto religioso, de onde girava a vida cultural da sociedade mineradora. No início, os músicos e compositores eram profissionais pagos pelas irmandades e pelo Poder Público.
Com o esgotamento das minas, e a consequente diminuição da atividade econômica, houve uma substituição de artistas profissionais por amadores. Isso sem deixar de lado a qualidade da música produzida. Que o diga o imperador Dom Pedro II, que, em 1881, ao visitar São João del-Rei inaugurando a ferrovia, anotou no seu diário de viagem que a música deste lugar era a melhor que já tinha ouvido em Minas. O amadorismo dos músicos salvou da extinção o fazer musical cotidiano e fez com que surgissem musicistas e composições de extrema qualidade. Só para citar alguns compositores, o Padre José Maria Xavier, autor de grande parte do repertório da Semana Santa, e de outros menos executados hoje, como João da Mata, Carlos dos Passos e Presciliano Silva, que estudou em Milão e foi discípulo do célebre Carlos Gomes. Ainda hoje, a cidade continua sendo um celeiro de grandes artistas. Bons exemplos não faltam, como o violoncelista Santiago Sabino, que tocou na Sinfônica de Londres e construiu uma sólida carreira na Europa, ou, mais recentemente, o maestro Marcelo Ramos, que aos 30 anos tornou-se regente de uma das mais importantes orquestras do país.
Além de uma série de histórias e “causos” contados entre os seus integrantes, as orquestras e bandas da cidade guardam um precioso tesouro. São partituras que remontam ao século 18 e que reconstroem a história da música erudita produzida no Brasil. Esses acervos são conservados, muitas vezes, a duras penas, pelos dirigentes desses grupos. Além de programas que renovem permanentemente os quadros de cantores e instrumentistas, são necessárias iniciativas de preservação e difusão dos acervos musicais. É preciso fazer com que a música colonial mineira, tesouro do passado, seja vista pela comunidade como um presente para o futuro. Iniciativas como a criação do curso de Música pela UFSJ e do Centro de Referência Musicológica José Maria Neves (Cerem) apontam veredas interessantes para se trilhar esse caminho.
Mauro Lovatto - Jornalista e integrante da Orquestra Ribeiro Bastos
Fonte: Site Semana Santa 2010 . São João del-Rei
Nunca me esqueci dessa cena e sempre percebo o contentamento que experimentam os são-joanenses e os turistas que acompanham as apresentações religiosas e concertos da Ribeiro Bastos. Acredito que os meus colegas da Lira Sanjoanense, os músicos da Sinfônica e das bandas de música também tenham a mesma impressão.
Quem vê e ouve uma apresentação musical de um grupo tradicional de São João del-Rei muitas vezes não imagina o que está por trás. A história mostra que o fazer musical está intimamente relacionado com a vida cotidiana desta cidade, moldando vidas, forjando destinos. Um dos documentos mais antigos prova que, no longínquo ano de 1717, o Conde de Assumar, autoridade indicada pelo Rei para governar São Paulo e as Minas do Ouro (nome que se dava a esta região naquela época), foi recebido por uma banda de música no morro do Bonfim. Na verdade, quando chegaram a estas Minas Gerais, há pouco mais 300 anos, os portugueses obviamente trouxeram sua cultura e seu modo de se expressar no mundo. Para minimizar as agruras de ter de viver num país ensolarado, cheio de animais selvagens e índios ferozes, construíram na terra tropical uma civilização de gosto artístico europeu ou o mais parecido possível da pátria de onde vieram, muitos a contragosto.
Mais do que um fenômeno de natureza econômica, o chamado Ciclo do Ouro foi um fato cultural e artístico da maior importância. O ouro, a prata e as pedras preciosas que reluziam nas minas e nos veios dos rios moldaram uma civilização baseada no que o século 18 tinha de mais requintado. Homens livres e escravos, transformados em artistas, construíram monumentos e obras suntuosas. O Brasil, pela primeira vez, viu nascer uma sociedade de caráter urbano.
Uma das artes que mais se desenvolveram foi a música, predominantemente aquela produzida para o culto religioso, de onde girava a vida cultural da sociedade mineradora. No início, os músicos e compositores eram profissionais pagos pelas irmandades e pelo Poder Público.
Com o esgotamento das minas, e a consequente diminuição da atividade econômica, houve uma substituição de artistas profissionais por amadores. Isso sem deixar de lado a qualidade da música produzida. Que o diga o imperador Dom Pedro II, que, em 1881, ao visitar São João del-Rei inaugurando a ferrovia, anotou no seu diário de viagem que a música deste lugar era a melhor que já tinha ouvido em Minas. O amadorismo dos músicos salvou da extinção o fazer musical cotidiano e fez com que surgissem musicistas e composições de extrema qualidade. Só para citar alguns compositores, o Padre José Maria Xavier, autor de grande parte do repertório da Semana Santa, e de outros menos executados hoje, como João da Mata, Carlos dos Passos e Presciliano Silva, que estudou em Milão e foi discípulo do célebre Carlos Gomes. Ainda hoje, a cidade continua sendo um celeiro de grandes artistas. Bons exemplos não faltam, como o violoncelista Santiago Sabino, que tocou na Sinfônica de Londres e construiu uma sólida carreira na Europa, ou, mais recentemente, o maestro Marcelo Ramos, que aos 30 anos tornou-se regente de uma das mais importantes orquestras do país.
Além de uma série de histórias e “causos” contados entre os seus integrantes, as orquestras e bandas da cidade guardam um precioso tesouro. São partituras que remontam ao século 18 e que reconstroem a história da música erudita produzida no Brasil. Esses acervos são conservados, muitas vezes, a duras penas, pelos dirigentes desses grupos. Além de programas que renovem permanentemente os quadros de cantores e instrumentistas, são necessárias iniciativas de preservação e difusão dos acervos musicais. É preciso fazer com que a música colonial mineira, tesouro do passado, seja vista pela comunidade como um presente para o futuro. Iniciativas como a criação do curso de Música pela UFSJ e do Centro de Referência Musicológica José Maria Neves (Cerem) apontam veredas interessantes para se trilhar esse caminho.
Mauro Lovatto - Jornalista e integrante da Orquestra Ribeiro Bastos
Fonte: Site Semana Santa 2010 . São João del-Rei