São João del Rei Transparente

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Tipo: Artigos / Cartilhas / Livros / Teses e Monografias / Pesquisas / Personagens Urbanos / Diversos

Escopo: Local / Global

 

Alice de Almeida Coelho Ferreira: Alice no país dos cães . Carol Slaibi

Descrição


Alice divide seu carinho e afeto com os seus 70 cães

"A única forma de chegar ao impossível, é acreditar que é possível"
Trecho do livro Alice no país das Maravilhas, de Lewis Carroll

Ao telefone, minutos antes de pegar a lotação, pergunto a minha entrevistada como faria para chamá-la em casa. Acompanhada de uma risada saborosa, ela me responde.
 
- A minha campainha irá me avisar.
 
Mesmo estranhando essa resposta, parti em direção ao Alto das Águas. Lugar tranquilo, rodeado de verde e um céu espetacular.
 
14h. Estou na Rua João de Barro. Todas as ruas daquele paraíso tem nome de pássaros. Caminho pela estradinha de terra deserta. Logo que passo em frente a uma casa verde de tijolinhos, um som de 70 latidos começa, e a fundo uma voz feminina pedindo silêncio. Pronto, tinha chegado ao local combinado. Minutos depois, aparece ao longe, uma criatura com o sorriso aberto e um olhar doce. Alice de Almeida Coelho Ferreira. Alice, para muitos.
 
Minha proposta de um perfil a incomodou a princípio. Ela faz questão de reafirmar que a vida dela não é grandiosa. Então teria que analisar nas entrelinhas uma vida repleta de causos e acasos.
 
A primeira coisa que fez ao chegarmos à sala foi mostrar a foto dos quatro filhos na tela do computador. Logo depois a foto dos pais, acima do sofá, em suas bodas de ouro. A tela do computador, a todo o momento passava a frase de Edmund Burke: “Tudo o que é necessário para o triunfo do mal é que os homens de bem nada façam”. Quando eu perguntei o porquê da frase, a resposta veio de imediato.



- Nós temos que ser idealistas. Às vezes, temos uma ideia fora dos paradigmas, fora do conservadorismo e as pessoas acham que a gente é louca por fugir do padrão. Nós temos que ter coragem. Plasmamos aquele pensamento e quando você se dá conta, você faz. Assim foi quando comecei a construir aqui todo mundo foi contra. ‘É muito longe’, ‘Não tem nada lá’, ‘Você vai ficar sozinha’. Aí eu pensei, ‘Eu quero isso mesmo, plantar árvore, ter bichos’ e construí.
 
Há 18 anos morando nas águas e 20 como integrante da Sociedade São Francisco de Assis de proteção aos animais, Alice cuida de 70 cachorros. Todos abandonados na rua ou mal tratados em lares. Seu gasto com ração chega a 25 kg por dia, e mesmo assim ela não se cansa. Durante nosso papo, ela pediu licença para chamar a atenção da Gringa porque latia demais. Coloco-me a calcular quanto do seu sustento e dedicação são voltados para esses cachorros de rua. Meu pensamento é interrompido quando ela volta cantarolando.
 
Sua paixão por cuidar de cães, pelo visto, é genética. Seus pais adotavam cachorros abandonados para criarem, mas nunca estimularam essa caridade nos filhos. Uma causa que todos aderiram sem esforço, incluindo netos. O primeiro cachorro criado por Alice foi Guito, quando ela tinha apenas cinco anos. Um vira lata, preto e branco. Guito morreu com 18 anos, cego e surdo. Uma perda que transparece em sua feição ao falar de seu companheiro.
 
A meu pedido, descemos para poder ver de perto o canil. Alice entra pela portinha, toda cercada e avisa que irá soltar os cães em grupos afins. Espero ansiosa do lado de fora da grade, com os nervos à flor da pele por ouvir tantos latidos. A porta abre e cachorros desesperados vêm em direção à grade para poder verificar quem é o intruso do dia. Logo atrás vem Alice, segurando um Yorkshire e conversando com eles. Conhece todos por nomes e reconhece o latido de cada um.

- Todos aqui têm uma história. Esse aqui, por exemplo, foi minha neta que trouxe. Ela é fisioterapeuta e tratava de uma senhora. O cachorrinho era tão maltratado que minha neta se recusou a cuidar da senhora porque não aguentava mais o ver ser maltratado. Ela disse que o neto da senhora pisou na patinha dele até quebrar, se ele fizesse xixi apanhava. Por fim, ele tinha medo de sair do quartinho. Minha neta me perguntou se eu aceitaria cuidar. Aceitei e esta comigo agora.
 
Depois de brincar com todos, Alice pegou um pauzinho e dando três toques na parede falou em tom casual: “A hora do recreio acabou, vamos entrar”. Todos entraram sem olhar para trás ou desviar. O recreio tinha mesmo acabado.
 
Nascida em 13 de julho, aos 72 anos, Alice diz gostar de tudo e por isso se considera um pouco fora dos padrões. Já declarou para sua família que enquanto for viva vai criar bichos sim. E não se restringe a cachorros. Já teve gatos, tucano e mico. Todos estavam abandonados na rua e, depois dela, conseguiram proteção. O número 70 espanta, mas nem a própria Alice consegue explicar como chegou a esse total.
 
- Foi chegando. Só que agora não posso pegar mais porque estou no limite, mas eu me considero feliz. No meu perrengue financeiro eu não fiquei sozinha um minuto. Todos conhecidos me ajudaram e eu sempre tinha a companhia dos meus cachorros. Como que eu não vou ser feliz?
 
Num tempo em que “merda” era palavrão e usar calça jeans não era para  mulheres, Alice sempre foi à frente do seu tempo. Usava biquíni, calça jeans, burlava missa para ir ao cinema, mas nunca se envolveu com bebidas ou cigarros. Casou grávida de oito meses e nem a costureira que fez seu vestido reparou. Na verdade, quem desconfiou de sua gravidez foi o namorado.
 
- Muitas meninas estavam casando grávidas, mas era tudo escondido. A moça que fez meu vestido de noiva não notou. Só o meu cachorro sabia. Casei dia 1º de maio, e minha filha nasceu dia 23 de junho, foi um escândalo que você nem imagina.  Além disso, acho que foi o primeiro casamento à noite.
        
Se cismasse com alguma coisa, fazia. Nunca seguia ninguém, mas também não era de caçar briga. Prefere que as coisas sejam resolvidas na conversa. Não segue horários ou situações padronizadas. Isso se reflete na criação de seus cães.

- Eu não gosto de horário rígido, gosto que eles fiquem mais à vontade. Não posso acostumá-los com horário, senão eles vão sofrer porque eu preciso sair. Quando eu era menina, na hora do almoço tínhamos que esperar o papai chegar. Depois mamãe rezava e aí sim, íamos comer.  Às vezes eu nem ia. Passava meu tempo pendurada no pomar comendo frutas. Esse era meu almoço, e eu quero que eles sejam assim, livres.
 
- Eu adoro meu nome! Olha meu coelho branco de pelúcia. Eu não sou Alice?
Existe alguma dúvida?

Fotos: Carol Gouvêa
Publicado no Observatório da Cultura . 16 de agosto de 2011


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