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Semana Santa . Jota Dangelo
Descrição
Era outro tempo. Na minha infância /adolescência, a Semana Santa tinha algo diferente, como se um manto de tristeza cobrisse a cidade e as pessoas se sentissem culpadas de alguma coisa que ia acontecer. A impressão que eu tinha, nos meus dez, 12, 15 anos, é que as pessoas sussurravam umas com as outras. Pelo menos na casa das minhas tias era assim, uma atmosfera de túmulo, de cemitério.
No Lava-Pés, na Quinta-feira Santa, a orquestra Ribeiro Bastos tocava um solo ao pregador de Stradella: essa melodia nunca mais saiu da minha cabeça, como não saiu o Tantum Ergo, de Rosini, tocado no domingo da ressurreição. Uma ponta de inveja estava presente em todos os coroinhas (e eu, aos dez anos, era um deles): para alguns protagonistas daquela liturgia era distribuído um cartucho gigante de amêndoas, todo enfeitado por fora com papel de seda frisado com agulhas de crochê sobre travesseiros. Nós, coroinhas, só recebíamos o cartucho comum, dentro do qual procurávamos, ávidos, as amêndoas de coco e as que eram revestidas de chocolate. Estas últimas, nunca mais vi nos cartuchos atuais. Os coroinhas disputavam os turíbulos da procissão de domingo da ressurreição para ocuparem lugar de destaque no cortejo, levar o turíbulo era uma honra. Vivíamos a prática da fé mais pelo medo do inferno do que por estarmos convencidos da verdade católica. Ter fé é uma virtude venerável, mas fé é também um atributo incompreensível para crianças. Na minha infância, o pecado era uma ameaça constante, uma possibilidade de punição na vida eterna, tão vaga e inconsistente para quem mal começava a ter noção do que era a vida terrena. Era um tempo em que, para mim, o demônio era concreto, com rabo e chifres, sem contar o temível garfo gigante que empunhava. Hoje entendo que seria impossível falar de Céu sem criar o Inferno, e de Deus sem criar o Diabo. Pelo menos para contrapor o bem e o mal e tivéssemos que exercer nosso livre arbítrio, escolhendo um ou outro.
A Sexta-feira Santa era de luto. À atmosfera lúgubre de toda a semana, acrescentava-se o silêncioquase absoluto. E as pessoas se vestiam de preto, homens e mulheres, os primeiros quase sempre de
temo e gravata. Comércio fechado. Bares, restaurantes, botecos, quiosques, tudo fechado. Talvez
fosse amaldiçoado aquele que abrisse uma fresta de porta de um boteco qualquer. Acho que até os
bebuns mais célebres da cidade se abstinham de álcool na Sexta-feira Santa. Na casadas minhas tias,
um único prato ao almoço: macarrão com sardinha e pão torrado, herança da culinária italiana daminha
avó, a vovó Donana, do sul da Itália. Até hoje, os descendentes da família fazem este macarrão, uma
vez por ano, justo na Sexta-feira Santa. Entretanto, como a Aleluia era festejada no sábado ao meio-dia, depois de meia-noite da sexta-feira já era sábado depois de meia-noite da sexta-feira já era sábado e, portanto, já era permitido comer carne. Famílias combinavam uma ceia em restaurantes da cidade para depois da meia-noite. Eu já estudava Medicina quando nos reuníamos, nós, os amigos, numa ceia noturna, na madrugada de sábado de Aleluia, ora no Bife de Ouro, do Joanino Lobosque, ora no Pinguim, de Italo Cassano. E aí, pernas para que te quero: era um porre monumental. Afinal, já era sábado, e não precisávamos temer os castigos divinos: não estávamos infringindo nenhum preceito da Santa Madre Igreja. Era Aleluia! Aleluia!
Fonte: Gazeta de São João del-Rei . 16 de Abril de 2011